Debate religioso não é apologética




Fonte: Doutrina Católica
Autor: Augusto Cesar Ribeiro


“Tu me chamarias e eu te responderia, desejarias rever a obra de tuas mãos” (Jó 14,15)


Deus nos chama a todo momento. Nós O ouvimos pelo menos? Se não, como responder-Lhe?


Ele deseja rever a obra mais extraordinária de suas mãos: seu filho homem. E como esta obra se apresenta diante de seu Criador?


A vida contemporânea leva o homem a um mergulho tão profundo na correria e nas dificuldades do dia-a-dia, que ele nem se lembra do seu Criador. Seus lábios, muitas vezes, nem murmuram o nome do Pai ou o nome de Jesus.


“Quando os seus o souberam, saíram para agarrá-lo. Pois diziam: ‘Ele está louco’(Mc 3,21). Louco é bicho perigoso. Ninguém sabe o que ele pode e vai fazer. Tem de ser pego. Tem de ficar preso. Ora, se tem. Pois a ordem não pode ser machucada. Imaginemos, por exemplo, um ônibus de linha cujo motorista inventasse todo santo dia um novo percurso. Sua loucura acabaria infetando os passageiros, que não chegariam ao seu destino como queriam. Não, não se pode suportar a imprevisibilidade dos loucos. É preciso reduzi-los à ordem nem que seja na marra, com amarras. É assim que acontece numa discussão de religião em que se deseja impor pontos de vista pessoais, enfiando-os goela abaixo. Na marra. Com amarras. Discutir religião é como discutir futebol ou política.


É fácil generalizar as coisas. Como também é fácil banalizar os fatos e os sentimentos. Há uma tendência de querer colocar todos num denominador comum. Que todos vivam do mesmo jeito. Que todos tomem as mesmas decisões. Que todos sejam instrumentos uns dos outros. Mas Jesus Cristo pensa além de todas as banalidades e questões que, os que nada têm a fazer e a conversar, ficam preenchendo o tempo alheio, as caixas de e-mail e os programas de debates. Jesus pensa em termos de eternidade. Pensa em termos de Reino dos céus.


Em vez de crer a gente se perde na discussão. Nunca se viu alguém sair vencedor em um debate ou discussão. Na discussão, cada um defende seu ponto de vista e vai para casa como veio. Pobre como veio. A discussão nunca enriquece as pessoas.


Bonitos são o diálogo e a conversa. Entre os que conversam e dialogam não há perdedores. Todos são vencedores. O diálogo enriquece a todos. No diálogo, as idéias e as experiências são somadas e não defendidas.


Diante de Jesus os judeus estavam perdendo tempo. Discutiam entre si. Em vez de dialogar com o Cristo, em vez de buscar esclarecimento numa conversa com o Cristo, começaram, entre eles, discutir. Resultou em nada. Todos saíram, não somente com a mesma fé com o qual chegaram, mas até perderam aquela que tinham.


O diálogo é a expressão de quem acredita no outro. O outro tem algo a comunicar. Os judeus perderam a vez de dialogar com a presença mais rica e plena que contavam. O Cristo se oferece a si mesmo. Doa-se a si mesmo. Era a grande lição do amor que podiam aprender. O amor que se dá. O amor que se entrega. Não somente entrega coisas, mas entrega-se a si mesmo. Fecharam o diálogo, e nada de novo aconteceu em suas vidas.


Com Deus não se discute. Em Deus se crê. Tudo nele é perfeito. Suas palavras e obras são verdade. Não há o que se discutir. A atitude da criatura é crer e adorar. É admirar e louvar. É extasiar-se e contemplar. Ou melhor ainda: é silenciar, acolher e amar.


“O Senhor lhe respondeu: Hipócritas! Cada um de vocês não solta do curral o boi ou o jumento para dar-lhe de beber, mesmo que seja em dia de sábado?” (Lc 13,15). O chefe da sinagoga ficou encolerizado porque Jesus curou a mulher encurvada em dia de sábado. Mas não teve coragem de repreender Jesus. Dirigiu-se ao povo, pedindo que viesse se curar durante a semana, e não aos sábados.


Jesus enfrenta o chefe e assume a questão. E vai logo desmascarando a hipocrisia que encobria o falso zelo religioso. Pois se até o boi ou o jumento podiam ser soltos em dia de sábado para matarem a sede, como é que uma pessoa humana não podia ser libertada do seu mal em dia de sábado?


Foi uma dura batalha que ele sustentou contra o legalismo religioso. Bateu firme contra os preconceitos que tornavam a religião um peso para o povo, impedindo-o de respirar com liberdade. Defendeu o direito dos discípulos colherem espigas para matarem sua fome em dia de sábado. Curou o homem de mão aleijada, e provocou o debate sobre o sentido do sábado antes de curar o hidrópico na sinagoga. E sentenciou com clareza: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado”. No mesmo sentido fulminou a estreiteza dos fariseus que o viam comendo junto com os pecadores, desafiando-os a compreenderem o projeto de Deus: “eu quero a misericórdia e não o sacrifício”.


Ninguém quer desafiar ninguém a que conheça o projeto de Deus. Muito menos ajudar nessa tarefa. O que os grandes fomentadores de discussões querem é que nós conheçamos os seus próprios projetos pessoais e nos escravizemos a eles.


É decididamente a serviço da vida e da dignidade das pessoas que se posiciona o Evangelho de Cristo. Esta a verdadeira religião que agrada a Deus. “Eu vim para que todos tenham vida, e vida em abundância”. Ele disse todos, e não alguns. A partir desta convicção somos convidados a repensar o sentido de nossa fé e de nossas práticas religiosas que, decididamente, não estão condicionadas a debates acirrados com direito a comissão julgadora para apontar quem venceu a discussão. Cada debatedor é membro único de seu sectarismo próprio, já que cada um deles entende a Bíblia como quer. E pensa que, o que ele "achou", é a verdade inspirada pelo Espírito Santo, a domicílio. Discutir religião é juntar as letras e dizer coisas do tipo: “M-A, MA; L-A, LA = BAÚ”.


Jesus estava louco. Vejam só: reuniu um bando de seguidores, no mínimo desocupados; começou a pregar; e já havia gente pensando que ele fosse grandes coisas, até em cura já andavam comentando. O negócio era sério. Deixá-lo solto? Mas nem pensar.


Eh! Jesus, como é duro romper o cerco da ordem mesquinha. Dentro dessa ordem, a pessoa pode andar como em fila para o matadouro, e ninguém diz nada contra porque ordem é ordem. As pessoas podem ser exploradas no seu trabalho e, eventualmente, gastar aí mais energias que o dinheiro ganho poderá depois repor, mas ninguém diz nada porque isso é da ordem econômica e ordem econômica é mais ordem que a própria ordem.


Por isso tudo, Jesus, pare. Por enquanto só estão a prendê-lo. Garanto que você ainda vai acabar na cruz. Veja só: se seus parentes pensam o que pensam de você, o que não pensarão os escribas (que detêm o monopólio da interpretação dos textos sagrados), os fariseus (com o seu monopólio de santidade e julgamento moral), os saduceus (com seus interesses políticos), os sacerdotes (com seus ganhos no templo) e as autoridades romanas (com sua paz armada até os dentes)? Controle sua loucura, faça de conta que essa ordem é ordem mesmo e não a desordem institucionalizada. Não mexa com o dinheiro dos ricos, nem com o poder das autoridades e, muito menos, a hipocrisia dos religiosos. Se seguir esses conselhos, até que vão achá-lo um doido razoável. Não, não se pode suportar a imprevisibilidade dos loucos. É preciso reduzi-los à ordem nem que seja na marra, com amarras.


“Falar é prata, calar é ouro”. Eis um provérbio muito apreciado pela sabedoria popular. Há momentos em que saber calar é uma verdadeira arte; mais: é um dom de Deus. “Quem poupa palavras conhece a ciência... Até o tolo passa por sábio, quando se cala, e por prudente, quando fecha os lábios” (Pr 17,27-28). Os místicos conhecem melhor que ninguém o valor do silêncio para se chegar à experiência constante de Deus. João da Cruz, inclusive, joga com os paradoxos, ao falar de “música calada e solidão sonora”. De igual modo, ele sabe adaptar para si as palavras vigorosas do Salmista: “Fechei-me no silêncio, emudeci... ardeu-me, no peito, o coração, e, em minha reflexão, ateou-se o fogo” (Sl 39,3-4).


Às vezes, o calar é um protesto: “Jesus, porém, se calava” (Mt 26,63). Outras vezes, traduz a ignorância, a covardia, a ironia ou alguma maquinação diabólica: “Mas eles (os fariseus) ficaram calados... e, saindo dali, puseram-se a conspirar com os herodianos para matá-lo” (Mc 3,4.6).


Este tipo de calar não passa pela cabeça de Pedro e seus colegas: “Não podemos deixar de falar do que vimos e ouvimos” (At 4,20). Menos ainda pela de Jesus, que ordenara a Paulo: “Não temas, fala e não te cales. Porque eu estou contigo” (At 18,9-10)! Aqui, o falar é que é ouro.


“Tendo provado o vinagre, disse Jesus: “Tudo está consumado” e, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19,30)


Esta cena da Cruz tem um silêncio impressionante, fato consumado, agora a própria cruz tem por si só a sua fala. O amor fala mais no impacto, no desafio, na dor. O amor só se revela quando se entrega para que o outro comece a viver a partir dessa entrega. Já não tinha mais nada para dar, tinha dado tudo, só faltava o último sopro do Espírito. Mas o amor verdadeiro não termina nunca; não morre, silencia.


Ocasionalmente, na dor, na aflição, na solidão, o homem O chama e reclama que Ele não responde, que Ele virou-lhe o rosto. Quantas vezes temos escutado pessoas dizerem: “Não vou mais rezar, porque Deus não me atende”. Mas, atendemos nós a Ele? Não é que Ele se vingue, fazendo ouvidos moucos na hora da nossa necessidade. É que se não aprendemos, no dia-a-dia, a escutar-Lhe a voz, a ouvir-Lhe a mensagem em acontecimentos, muitas vezes, aparentemente banais, não aprendemos a sutileza com que Ele se manifesta.


Quem morre por um ideal morre serenamente, com aquela tranqüilidade de quem deu o melhor de si. Não há desespero nem barulho; há aquela quietude de mãe e pai sentados na varanda e vendo os filhos crescendo com muita luta.


Quem entrega o Espírito dá um presente vivo que renasce sempre nos outros. Não se mata um ideal; ele renasce sempre em outra pessoa, em outro lugar.


“Tudo está consumado!” não significa a passividade, o desânimo de não saber mais o que fazer; mas sim a satisfação pelo serviço prestado, pelo dever cumprido, “o toque de otimista confiança do operário que realizou bem a sua obra” (Benoît).


Morrer voluntariamente por uma grande causa é uma morte que não é morte: é vida! Desde então a cruz revela o impacto de uma entrega total e também a calma que passa uma vida abnegada. Aquele silêncio dos enamorados frente a um amor que vale a pena ser abraçado, a cabeça inclinando-se para repousar no colo do coração.


A discussão fica para os beligerantes.

Postar um comentário

Deixe seu Comentário: (0)

Postagem Anterior Próxima Postagem