Em defesa da Idade Média

 


Em defesa da Idade Média


Autor: D. Amaury Castanho



Tendo lecionado História da Igreja, no Curso de História da então Universidade Católica, hoje a PUC de Campinas, estou indignado com as referências negativas e injustas feitas freqüentemente à Idade Média. Sinto-me no direito de fazer algumas perguntas aos defensores da modernidade e detratores dos tempos medievais.


A primeira delas é sobre quando termina a Idade Antiga e quando tem início a Idade Média. A segunda é sobre quando termina o tempo medieval. A terceira, sem dúvida mais importante, é sobre que obras e que livros os críticos da Idade Média já leram a respeito dos séculos que intermedeiam entre a Idade Média e a Renascença. Arrisco mais uma pergunta: o que é que na Idade Média pode ser comparado ao genocídio dos judeus pelos nazistas, aos expurgos e mortes de 100 milhões (sic!) de homens e mulheres nas ditaduras de Josef Stalin e Mao Tsé-Tung, à tragédia provocada pelas duas bombas atômicas lançadas pelos norte-americanos contra Hiroshima e Nagasaki? E atentem os detratores da Idade Média que essas tragédias humanas são do século XX, “ultracivilizado”, do qual apenas acabamos de sair.


Investir contra a Idade Média, relembrando usque ad nauseam alguns excessos das Cruzadas e da Inquisição, desconhecendo as geniais obras do grande Santo Agostinho de Hipona, o incansável trabalho dos monges copistas dos séculos V ao X, os objetivos eminentemente religiosos das Cruzadas dos séculos XI e XII, com o conseqüente encontro entre as culturas do Ocidente e do Oriente, a construção das Catedrais góticas e o surgimento das mais célebres Universidades dos séculos XII a XV, é prova de supina ignorância, é injustiça de uma gravidade inqualificável.


Não estou tentando convencer o leitor de que os filhos e filhas da Igreja acertaram em tudo que foi realizado nos séculos da Baixa, Média e Alta Idade Média. Há, sim, algumas páginas e alguns fatos negativos. Porém, nem de longe esses desacertos de uma instituição integrada e pastoreada por homens e mulheres chegam a ter a gravidade dos que estiveram à frente da Revolução Francesa, no século XVIII, das violências do século XIX e das duas Grandes Guerras do século XX, bem mais perto de nós, em um contexto em que os injustificados fatos envolvendo a Alemanha hitlerista, a União Soviética stalinista e a China marxista, durante a “Revolução Cultural” chegando aos dias de hoje.


Ao leitor desejoso de conhecer melhor a Idade Média que não é a “idade das trevas”, mas sim um “regime ou tempo de cristandade”, em que o valor maior era a ortodoxia da fé, a conduta respeitosa da natureza e dos princípios ético-morais cristãos, recomendo a leitura pelo menos dos livros do grande medievalista Etiénne Gilson e do acadêmico Daniel Rops, ambos da França. Gilson viveu entre 1884 e 1978. Rops chegou bem mais perto de nós. Haveria outros pensadores e historiadores que poderia citar, o que me parece dispensável diante da estatura de Gilson e Rops.


Transcrevo para o leitor interessado na verdade dos fatos, a referência feita a E.Gilson no “Breve Dicionário dos Pensadores Cristãos”, de Pedro R. Santandrián: “Dificilmente se pode resumir o trabalho de E. Gilson como filósofo tomista, historiador, pesquisador da filosofia, teologia e espiritualidade medieval... Graças a ele temos uma nova visão do que foi a ciência, a filosofia, a arte, a espiritualidade e a Igreja no período medieval. Seus estudos sobre a filosofia medieval – “A Filosofia na Idade Média” – sobre Santo Agostinho e São Bernardo de Claraval, Abelardo, São Boaventura e Santo Tomás de Aquino... fazem dele um dos pensadores e pesquisadores mais sólidos da doutrina cristã” (página 239).


Do acadêmico Daniel Rops, lembro entre os seus monumentais volumes dedicados à história da Igreja, especialmente o III, dedicado exatamente à “Igreja das Catedrais e das Cruzadas”, com 815 páginas. Está traduzido do original francês para a nossa língua, em edição de 1961, na cidade do Porto, Portugal e, bem recentemente, pela Editora “Quadrante”, de São Paulo.


O que tenho lido nesses e outros historiadores, filósofos e medievalistas, permite-me afirmar, tranqüilamente, que poucas outras épocas da história humana foram tão fecundas, particularmente para a Teologia, a Filosofia e as Artes. É certo que os longos séculos da Idade Média foram séculos de fé, que as heresias anti-cristãs foram severamente contraditadas e até punidas. Porém, não é menos certo que, sem os monges copistas da Idade Média, não teriam chegado até nós as obras clássicas do Ocidente e do Oriente anteriores a Cristo.


Os que tiveram a oportunidade de contemplar as monumentais Catedrais góticas da França, Alemanha, Inglaterra, Itália e outras nações da Europa cristã, os que conhecem a gênese das Universidades de Salerno e Bolonha, Paris e Oxford, Praga e Heidelberg, Salamanca e Coimbra, entre dezenas de outras, têm pelo menos o dever, se forem justos, de respeitar os tempos medievais.


As Catedrais góticas da França, Alemanha, Inglaterra, Itália e Espanha, erguem-se ainda em nossos dias nos céus das maiores cidades da Europa, com uma arquitetura mais que arrojada, com vitrais e rosáceas de uma beleza inimitável, amplas para conterem praticamente toda a população católica das cidades em que foram erguidas dos séculos XII a XV. Os arquitetos de hoje perguntam-se como foi possível ao homem medieval, sem a avançada tecnologia dos nossos dias, erguer esses monumentos de pedra, história, arte e fé.


Termino relacionando alguns dos Santos e Santas da Idade Média: Santo Agostinho de Hipona e São Bento, São Bernardo de Claraval e São Francisco de Assis, São Domingos de Gusmão, Santo Tomás de Aquino e São Boaventura, Santa Clara e Santa Catarina de Sena e tantos outros, que honram a nossa Igreja e engrandecem o mundo. Eles continuam sendo protótipos de um generoso e radical seguimento de Cristo até o heroísmo e o mais elevado grau de santidade.


Dom Amaury Castanho, Bispo Emérito da Diocese de Jundiaí


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