A Educação na Idade Média
Autor: Ricardo da Costa
A busca da Sabedoria como caminho para a Felicidade: Al-Farabi, Hugo de São Vítor e Ramon Llull
Os medievais refletiram muito a respeito da Felicidade, do Bem, do Belo, da Verdade, enfim, todas as categorias supremas pelas quais a vida humana aspira. Na Idade Média, a Educação era vista como um instrumento para se alcançar a Sabedoria, que conseqüentemente, levaria o homem à Felicidade, um bem desejado por si mesmo e mais perfeito que todos os outros bens (Al-Farabi, 2002: 43-44).
Nossa proposta nesse artigo é demonstrar e compreender como os medievais pensaram a educação: como o estudo adequado, isto é com disciplina, método e, principalmente, amor à sabedoria, levaria os jovens estudantes à Sapiência (Hugo de São Vítor, 2001: 10). Para isso, selecionamos arbitrariamente três filósofos medievais: Al-Farabi (c. 870-950), Hugo de São Vítor (c. 1096-1141) e Ramon Llull (1232-1316). Três homens, três intelectuais no sentido pleno e perfeito da palavra - e não no sentido gramsciano, conceito anacrônico para o período medieval e equivocadamente desenvolvido por Jacques Le Goff em seu Intelectuais na Idade Média (De Libera, 1999).
Estes três medievais personificam maravilhosamente um tempo que buscou a ciência como um fim nobre em si, e não visando um objetivo específico que, no fim das contas – como vimos ao longo da História – muitas vezes passou a ser mais importante que o próprio ato de conhecer. Pelo contrário, na Idade Média os estudantes eram orientados a considerarem importante todo o conhecimento científico, não terem vergonha de aprender com qualquer um e não desprezarem os outros depois de terem alcançado o saber (Hugo de São Vítor, 2001: 155). Assim, trilharemos um caminho de amor e bondade para tentar compreender as categorias mentais dos medievais a respeito da educação.
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Na Antigüidade Ocidental a Educação era entendida como uma transmissão de técnicas adquiridas, tendo, sobretudo, a finalidade de possibilitar o aperfeiçoamento dessas técnicas através da iniciativa dos indivíduos (Luzuriaga, 1978: 57). A Pedagogia não tinha a dignidade de ciência autônoma, sendo considerada parte da Ética ou da Política, e, por isso, elaborada unicamente em vista do fim que estas propunham ao homem. Os expedientes ou os meios pedagógicos só eram estudados em relação à primeira educação, ministrada na infância - ler, escrever e contar (Manacorda, 1989: 85).
A reflexão pedagógica era dividida em dois ramos isolados: um de natureza puramente filosófica, elaborado por conceitos éticos, e outro de natureza empírica ou prática, visando preparar a criança para a vida. O ato de educar era baseado no ser, utilizado para a formação e amadurecimento do homem e a busca de sua consecução completa ou perfeita. Ele era uma passagem gradual da potência ao ato, da infância até a fase adulta (Abbagnano, 2000: 306).
No entanto, o status da criança no mundo antigo era praticamente nulo. Sua existência dependia do poder do pai; poderia ser rejeitada se fosse menina ou se nascesse com algum problema físico. Seu destino, caso sobrevivesse, era abastecer os prostíbulos de Roma e o sistema escravista (De Cassagne: http://www.uca.edu.ar/). Até o final da Antigüidade, boa parte das crianças pobres eram abandonadas ou vendidas; as ricas enjeitadas - por causa de disputas de herança - eram entregues à própria sorte (Roussel, s/d: 363). Seria necessário a revolução pedagógica levada a cabo pelo cristianismo para que a criança passasse a receber uma orientação educacional direcionada e de cunho ético-integral (Costa, 2002: 17-18).
A base do currículo educacional medieval foi dada pelo Casamento da Filologia e Mercúrio, do cartaginês Marciano Capela, escrita por volta de 410-427. Nesta obra, o autor, influenciado pela enciclopédia de Varrão (Sobre as Nove Disciplinas), tratou das sete Artes Liberais como damas de honra daquele casamento (1. Gramática, 2. Retórica, 3. Dialética, 4. Aritmética, 5. Geometria, 6. Astronomia e 7. Harmonia), deixando de lado a Medicina e a Arquitetura, por tratarem de coisas terrestres que “...não têm nada em comum com o céu.” (Nunes, 1979: 75)
Platão já havia mostrado a distinção entre o que se chamou de Trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e Quadrivium (Aritmética, Geometria, Astronomia e Música). Ao que tudo indica, Boécio (480-524) foi o primeiro a chamar de Quadrivium as quatro disciplinas aqui relacionadas. O termo Trivium só foi utilizado mais tarde (Monroe, 1977: 113-114; Nunes, 1979: 78). As Artes Liberais eram denominadas artes pois implicavam não somente o conhecimento, mas também uma produção que decorria imediatamente da razão, como várias outras - por exemplo, o discurso e a retórica, os números e a aritmética), as melodias e a música, etc. (Le Goff, 1993: 57).
Assim, ao lado das sete Artes Liberais, desenvolveu-se durante a Idade Média um novo o conceito de educação. Como os pensadores de então acreditavam que as palavras (a linguagem) possuíam em si a possibilidade de resgatar a experiência humana esquecida (Lauand, 1998: 106), o próprio conceito significava literalmente a idéia: educação, educe, “fazer sair”, “extrair”. Para os educadores de então, o conhecimento já existia inato no estudante. Restava saber de que modo o aluno seria conduzido da ignorância ao saber. Cabia ao professor acender uma centelha na criança, formá-la, não asfixiá-la (Price, 1996: 88). O estudo era utilizado principalmente para o desenvolvimento da vida do espírito, para a elevação espiritual. Hoje isto se perdeu de uma tal forma que uma das características marcantes da pedagogia moderna consiste no fato de ela ter conseguido dissociar, cada vez mais profundamente ao longo dos últimos 700 anos, o estudo da busca de Deus, de valores éticos e morais, enfim, das virtudes, causa primeira da profunda crise ética pela qual passamos nos dias de hoje.
Até o aparecimento da literatura vernácula (séculos XI e XII), os monges cristãos foram os responsáveis pela manutenção e produção de praticamente todos os textos escritos. Eles preservaram a cultura antiga. Graças a seu meticuloso trabalho realizado nos mosteiros, os monges copiaram os escritos antigos, salvando-os assim das invasões bárbaras da Alta Idade Média (Nunes, 1979: 80-83). Além disso, eles lideraram uma revolução cultural sem precedentes: inventaram nossa caligrafia (minúscula carolíngia), o livro (folio) e nossa forma de leitura (em silêncio), expandindo ao máximo a capacidade cerebral de reflexão profunda (Parkes, 1998: 103-122; Hamesse, 1998: 123-146).
Feitas essas considerações preliminares sobre o conceito de educação e a importância do período medieval para a preservação do conhecimento antigo e suas importantes contribuições para a linguagem, a divisão das artes e as novas formas de se pensar o conhecimento, passamos agora aos filósofos escolhidos para mostrar ao leitor como o saber era entendido, e de que forma o estudante poderia atingir a felicidade em suas buscas íntimas com seu objeto de estudo.
Al-Farabi
Um dos grandes do pensamento muçulmano, Al-Farabi viveu entre 870 e 950. Nascido nas terras da Transoxiana, ali provavelmente começou sua formação intelectual com cristãos nestorianos. Além de escrever comentários sobre textos aristotélicos, produziu notáveis e influentes obras, a maioria delas dedicadas ao estudo das condições sociais e individuais em que o homem pode alcançar a felicidade (Ramón Guerrero, 2002: 21).
Em sua obra O caminho da Felicidade (Kitab al-tanbih 'alà sabil al-sa'ada), Al-Farabi quer ensinar ao leitor a melhor forma de se atingir a plenitude do belo, isto é, através do estudo, da reflexão. Existem, diz ele, três caminhos para a felicidade: a ação (ouvir, olhar, etc.), as afeições da alma (apetite, prazer, gozo, ira, medo, desejo, etc.) e o discernimento por meio da mente. Para que estes caminhos sejam percorridos, é necessário que o viajante tenha plena liberdade de escolha (o que ele chama de livre-eleição). Além disso, deve buscar saber e praticar as virtudes, faculdades que são um hábito da alma. Por esse motivo, o homem tem a mesma capacidade de fazer o feio que de fazer o belo (curiosamente, há pouco tempo, questionado em uma entrevista exclusiva sobre os atentados islâmicos ao World Trade Center, o historiador Eric Hobsbawn afirmou o mesmo).
De qualquer modo, devemos buscar os hábitos belos. Segundo Al-Farabi são: 1) Valentia, 2) Generosidade, 3) Moderação, 4) Perspicácia, 5) Sinceridade e 6) Afabilidade (Al-Farabi, 2002: 48). Os hábitos, para serem hábitos, devem ser praticados. Por exemplo
A arte de escrever só se consegue quando o homem pratica de maneira usual a ação (...) A excelência da ação de escrever procede do homem somente por destreza na escrita, e a destreza para escrever só se adquire quando antes se acostuma o homem a uma excelente ação de escrever (...) Esta excelente ação de escrever é possível ao homem (..) por causa da faculdade que possui por natureza (Al-Farabi, 2002: 52)
Assim, caro leitor, se deseja ser hábil em uma arte, pratique-a! Se quer ser inteligente, estude, se quer escrever, escreva. Em outras palavras: aprenda fazendo, conselho simples e óbvio conhecido pelos medievais, hoje abandonado por muitas pedagogias ditas modernas.
Por oposição, os hábitos morais feios são a enfermidade da alma, e o homem livre é aquele que consegue discernir o que é dado pela reflexão. O homem é uma besta quando não reflete e também não consegue decidir nada (Al-Farabi, 2002: 62). A finalidade do discernimento intelectual em Al-Farabi sempre será a busca do belo, daquilo que causa prazer e fruição ao espírito. Os fins também são três, como os caminhos: o agradável, o útil e o belo, pois “...todas as artes buscam o belo ou o útil.” (Al-Farabi, 2002: 67)
Por fim, Al-Farabi afirma que as artes necessárias para se trilhar o caminho da felicidade são três: Filosofia, Lógica e Gramática. A Filosofia se divide em Teórica (Matemática, Física e Metafísica) e Prática (Ética e Filosofia Política, ou da cidade). A Felicidade Suprema é alcançar a Filosofia:
Como somente obtemos a felicidade quando estamos de posse das coisas belas, e como só possuímos as coisas belas por meio da arte da filosofia, necessariamente a filosofia é aquela pela qual alcançamos a felicidade. Esta é a que adquirimos por meio da excelência do discernimento (Al-Farabi, 2002: 68).
Para se alcançar o discernimento é necessário que o estudante aprenda a Lógica, arte que ensina a discernir o verdadeiro do falso. Por sua vez, para ser lógico, o aluno deve aprender Gramática, “arte que trata das classes das palavras significantes”; “ciência do falar correto e a capacidade de falar corretamente de acordo com o costume dos que falam uma determinada língua” (Al-Farabi, 2002: 74 e 71). O caminho para a felicidade passa, assim, pela Educação: Gramática, Lógica e Filosofia. Ser feliz é aprender a ler, escrever, raciocinar e discernir os bons hábitos dos maus, pois o bem supremo (= a beleza) é trilhar e chegar ao equilíbrio da razão. Só o cultivo da virtude traz a felicidade ao homem (Ramón Guerrero, 2002: 38).
Hugo de São Vítor
Partimos do século X, do mundo muçulmano. Nos imaginemos agora em pleno século XII no ocidente medieval cristão, assistindo a um renascimento geral das ciências, das letras e das artes. Imaginar é a função primeira do historiador, quase uma obrigação (Duby: 1988: 01). Os mestres se multiplicavam, escolas surgiam em todas as partes. É o tempo dos professores ilustres, mestres que reuniam ao seu redor inúmeros discípulos. As escolas mais célebres da época ficavam em Paris, que recebia estudantes das mais variadas partes do mundo.
Nesse cenário fecundo brilham as obras de Hugo de São Vitor, nascido provavelmente 1096, na Saxônia (hoje parte da Alemanha). Chegou a Paris ainda jovem, em 1115, levado por um rico tio arquidiácono, com a intenção de ingressar no mosteiro de São Victor, no qual residiu até a sua morte, em 1141. O conjunto de sua obra mostra a elaboração de um sistema pedagógico em que o estudo se torna um instrumento de ascese em perfeita consonância com os ensinamentos do Novo Testamento a respeito da fé, da graça e da oração, da necessidade da graça para a prática das virtudes e dos frutos que se esperam do desenvolvimento da vida espiritual. Hugo distinguiu-se como cartógrafo do saber, leitor da Escritura e hermenêutico, filósofo, teólogo da história, contemplativo e místico, pedagogo, gramático e geômetra.
Didascálicon - Da Arte de Ler é sua obra mais famosa, escrita em 1127. Nela Hugo cria um currículo medieval dos estudos. Dependendo da perspectiva de análise, pode ser considerado um livro filosófico, místico, ético, antropológico ou pedagógico.
O livro é composto por seis partes: três dedicadas ao conhecimento das coisas do homem pela leitura dos escritos literários e três dedicados ao conhecimento das coisas de Deus pela leitura da Sagrada Escritura. Os escritos eram dedicados a um período anterior à entrada do aluno nas faculdades. Eram uma espécie de colegial, que acontecia entre os 14 e os 20 anos do aluno.
Logo de início, ele deixa claro que qualquer pessoa, de qualquer origem social, tem a capacidade de aprender:
Não saber e não querer são de longe duas coisas bem diversas. Não saber é questão de incapacidade, mas detestar o saber é perversidade da vontade (...) [em algumas pessoas], a pobreza do patrimônio familiar e os recursos escassos dificultam a possibilidade de aprender. Achamos, todavia, que estes não podem ser minimamente desculpados, uma vez que vemos muitos os quais, mesmo sofrendo de fome, sede e nudez, alcançam o fruto do saber. Uma coisa é você não poder aprender, ou melhor, não poder com facilidade, outra coisa é poder e não querer aprender. (Hugo de São Vítor, 2001: 43)
Todo o conhecimento humano reside no próprio homem: “conhece-te a ti mesmo”. Essa busca, esse estudo, são um reerguimento: através dele aprendemos a não procurar fora de nós aquilo que podemos encontrar dentro de nós. A procura da Sapiência é o conforto da vida. Quem a encontra é feliz (Hugo de São Vítor, 2001: 51). Em outras palavras, a mesma essência de Al-Farabi: o conhecimento é a fonte da felicidade e a filosofia a suprema felicidade.
A filosofia é um privilégio do ser humano. Por isso, as ações dos homens são superiores às dos animais irracionais, pelo menos quando executadas sob a direção da Sabedoria. Os atos humanos regulados pela sabedoria visam restabelecer a integridade da natureza, atenuar as penas e misérias a que estamos sujeitos na vida presente, pois contemplando a verdade e praticando a justiça o homem se torna semelhante a Deus (Boehner & Gilson, 2000: 336-337).
Hugo de São Vítor representa o maior esforço sistematizador do século XII em relação à tradição latina. Para se chegar à essa felicidade sapiencial, ele propõe no Didascálion uma nova divisão do conhecimento. Vimos que a tradição de ensino medieval estava baseada nas sete artes liberais - Trivium (chamadas então de Artes Sermocionais: Gramática, Retórica e Dialética) e Quatrivium (Artes Reais: Aritmética, Astronomia, Música e Geometria) (Curtius, 1996: 72-94 e Mongelli, 1999).
Hugo propôs que as sete artes deveriam dividir espaço com novas disciplinas (Dialética, Ética e Física) e as técnicas científicas e artesanais cada vez mais em desenvolvimento (Tecelaria, Arte Militar e Arquitetura, Navegação, a Agricultura, Caça e a Pesca, Medicina e Teatro) (Lértora Mendoza, 2000: 57-83; Le Goff, 1993: 54).
Para Hugo, ciência era um vislumbre. Através dela, os estudantes poderiam atingir a felicidade, apesar do desprezo que muitos dedicavam às artes mecânicas (inclusive o próprio Hugo de São Victor, que qualificou a ciência mecânica de adúltera) (De Libera, 2001: 279). São Bernardo (1090-1154) já havia definido as artes mecânicas (“carpintaria, arte da edificação e outras que são exercidas para a utilidade da vida neste mundo.” Bernardo de Claraval, 1998: 263), mas Hugo de São Vítor foi o primeiro, embora a contragosto, é verdade, a situar as ciências mecânicas dentro da filosofia. No Didascálion, ele propôs uma nova divisão quaternária para a filosofia: 1) teórica (teologia, matemática, física), 2) prática (individual, privada, pública), 3) mecânica (lã, armadura, navegação, agricultura, caça, medicina, lazer), 4) lógica (gramática, raciocínio) (Marchionni, 2000: 115). Foi, na verdade, um reflexo dos novos tempos, das cidades comunais e de seu trabalho urbano efervescente.
Nestas quatro disciplinas cumpre observar a seguinte ordem: deve-se ensinar a Lógica, depois a Ética (parte da Filosofia Prática), em terceiro lugar a Ciência Teórica e em quarto a Mecânica. A classificação de Hugo é, sem dúvida, a mais detalhada e completa de seu tempo, e recebeu, inclusive, influência direta do corpus greco-árabe (Lértora Mendoza, 2000: 67).
Da Arte de Ler foi a obra mais importante da aprendizagem da época, um modo de viver, uma amizade, uma atitude moral e social. Seu ato final, já sem as regras e amarras físicas, era o vôo livre da contemplação. No entanto, entre a leitura e a contemplação existiam outros degraus pelos quais o estudante deveria passar para alcançar a perfeição: a meditação, a oração e a prática.
Para ele, os estudantes necessitavam da leitura informativa, seguida da reflexão meditativa, através da qual se alcançaria o discernimento crítico. A oração traria força e clarividência para agir. Com a prática, a qual a vontade firme exercitaria-se na execução de boas obras e na pesquisa dos melhores caminhos a seguir na vida. Por último, a contemplação, onde o agir seria aprovado em sua validade cristalina. A meditação contemplativa vitorina realimenta todos os degraus anteriores, dando-lhes sentido (Marchionni, 2001: 35).
A procura da Sabedoria Divina, através do saber, é um ato de amor, iluminação e doçura. Iluminado, o homem passa a se conhecer em profundidade. Assim clareado, ele adquire o discernimento para traduzir em boas obras aquilo que conheceu. Para Hugo de São Vítor, a Sabedoria Divina é o sol que ilumina o caminho do homem para a companhia de Deus e para a plena felicidade. Concluindo, selecionamos um belo trecho exortativo, onde Hugo ensina ao aprendiz de leitor o princípio da moral educativa (reparem que ética e educação não estão dissociadas):
O estudante prudente, portanto, ouve todos com prazer, lê tudo, não despreza escrito algum, pessoa alguma, doutrina alguma. Pede indiferentemente de todos aquilo que vê estar-lhe faltando, nem leva em conta quanto sabe, mas quanto ignora. Daqui se origina o dito platônico: “Prefiro aprender modestamente as coisas dos outros a ostentar descaradamente as minhas (...) Não considere vil conhecimento algum, portanto, porque todo conhecimento é bom (Hugo de São Vítor, 2001: 157).
Palavras sábias e muito atuais que não necessitam qualquer comentário.
Ramon Llull
Por fim, Ramon Llull. É um dos personagens medievais que está sendo cada vez mais redescoberto, tanto por filólogos, como historiadores e filósofos. Llull era originário de Palma de Maiorca, nascido em 1232, isto é, pouco depois que sua família se estabeleceu na ilha reconquistada por Jaime I. Sua personalidade multifacetada e que alterna momentos de euforia com estados de depressão profunda está bastante transparente nos temas e na perspectiva adotada em suas obras (quase trezentas). Por exemplo, vejam sua tristeza inconsolável neste belo trecho de um poema:
Quando considerei do mundo sua condição,
e vi como muitos Lhe descrêem, e como era difícil ver um cristão,
concebi tal idéia em meu coração:
ir igualmente a prelados, reis
e religiosos com tal ordenação,
que acompanhassem minha passagem e pregação,
e que com ferro, fogo e verdadeira argumentação,
dessem de nossa fé tão grande exaltação,
que os infiéis viessem para a conversão.
E verdadeiramente, durante trinta anos fiz dessa minha ação,
mas não consegui e fiquei em tamanha desolação
que freqüentemente chorei em minha aflição.
Enquanto estava assim em dor
e freqüentemente considerava a desonra superior
que Deus recebe do mundo por falta de amor,
como o homem irado que foge do mal senhor,
fui a um bosque e ali estive em dissabor
tão fortemente desconsolado que o coração estava em dor,
mas porque chorava sentia dulçor.
Quando falava com Deus fazia-Lhe clamor,
pois tão pouco atendia o justo e o pecador,
no momento quando O pedem para tratar de Seu honor;
pois se mais dessem ajuda e favor,
mais rapidamente converteriam o mundo a Seu valor.
(Ramon Llull. Desconsolo, II-III. Publicado na INTERNET: http://www.ricardocosta.com/desconsolo.html)
Ramon Llull é um dos escritores mais prolíficos da Idade Média. Seus temas variam desde Botânica, Filosofia e Teologia até Música, Astronomia e Política. Da mesma forma, seu código ético, privilegiado em centenas de escritos moralizantes, deixa claro que sua pedagogia está baseada, como em Al-Farabi e Hugo de São Vítor, em uma ética e moral religiosas, onde a busca pelo conhecimento passa por sucessivos degraus. Em suma, educar é um ato de elevação espiritual.
Em sua autobiografia, a Vida Coetânea, Llull nos informa que não possuía saber suficiente, nem sequer Gramática, a não ser uma pequena parte - ele define a Gramática como a arte de
...falar e escrever retamente. Por isso, ela é eleita para ser linguagem comum às gentes, que pela distância das terras e da comunicação possuem linguagens variadas. Filho, se desejas aprender gramática convém saberes três coisas: construção, declinação e vocábulos (Ramon Llull. Doutrina para crianças, LXXIII, 2-3: http://www.ricardocosta.com/puerilsum.htm).
Da formação básica de Ramon Llull pouco sabemos. O que se pode afirmar com relativa segurança é que ele aprendeu a falar corretamente graças a uma cultura não clerical notavelmente incrementada pela tradição dos relatos de cavalaria e, de forma mais próxima, pela cultura dos trovadores, pois, como nos diz em sua autobiografia, ele era afeito “na arte de trovar e compor canções e ditados das loucuras deste mundo” (Ramon Llull, Vida Coetânia, I. 2: http:www.ricardocosta.com/vita.htm).
Sua conversão ocorreu por volta de 1265, quando tinha aproximadamente trinta anos de idade. Ela veio acompanhada de três desejos: converter os “infiéis” ao catolicismo, criar escolas onde se estudasse a língua dos infiéis e preparar-se para o martírio. A partir de então dedicou-se a essa evangelização, que acreditava ser possível especialmente através do amor e do diálogo.
Nessa perspectiva apologética é que devemos tentar compreender sua pedagogia. O tema da educação luliana pode ser abordado especialmente através de um texto: a obra Doutrina para crianças. Trata-se de uma das obras mais acessíveis da produção luliana, podendo ser usada inclusive como introdução ao seu pensamento. Nela, o autor tenta colocar tudo que considerava importante para a formação religiosa, moral e prática de seu filho. A grande novidade da Doutrina para crianças é ser uma pequena enciclopédia pedagógica escrita em catalão, em uma época na qual o latim era a única língua de ensinamento. Trata-se de um documento sobre o ensino primário do século XIII.
Llull explica carinhosamente a seu filho que ciência é “saber o que existe”, um dos sete dons dados ao homem pelo Espírito Santo (os outros dons são a Sabedoria, o Entendimento, o Conselho, a Fortaleza, a Piedade e o Temor). Ele considerava sua ciência espiritual uma graça que deveria ser cultivada e estar a serviço da fé, sendo assim muito mais nobre que aquela que as crianças aprendiam na escola com o professor, pois daria consciência aos pecadores dos pecados que cometiam e ensinaria as crianças a distinguir o bem do mal, ou melhor, a amar o bem e a ter ódio do mal. Apesar disso, aconselha seu filho a confiar na ciência que os mestres ensinam (Ramon Llull, Doutrina para crianças, XXXIV, 3).
Com base na consciência do bem e do mal, a ciência e pedagogia espiritual luliana já foram definidas como uma educação ética (Carreras y Artau, 1939, vol. I: 610-612). Havia nessa pedagogia uma proposta intrínseca bem de acordo com sua época: o objetivo primeiro de sua educação era o amor a Deus, propósito que Llull definiu como Primeira Intenção. As crianças deveriam ser educadas desde muito cedo a amar, conhecer, honrar e servir a Deus. Essa consciência moral, passada com um carinho e afeto paternais, tinha como finalidade converter os infiéis, sobretudo muçulmanos e judeus (Bonner, 1986: 38). Não se pode perder nunca de vista essa perspectiva: seus textos tinham sempre esse propósito apologético.
Por sua vez, a aquisição do saber para Llull era uma qualidade apropriada que deveria estar direcionada à qualidade própria dos elementos, uma idéia já encontrada em uma enciclopédia árabe do século X (Ikhwan Al-Safa) (Lohr, 1991: 08). Qual era essa qualidade? Como Deus era pensado em termos ativos - a criação do mundo não fora uma ação de Deus? - cada elemento possuía uma natureza intrínseca e ativa de origem divina, isto é, que tinha uma relação direta com o sagrado. A qualidade de cada elemento se relacionava com a de outro elemento. Por exemplo: o fogo é quente e seco, a água fria e úmida, a terra fria e seca e o ar quente e úmido; os medievais acreditavam que essas qualidades interagiam entre si: a umidade da água passava para o ar, que com seu calor interagia com o fogo; o fogo ressecava a terra, que por fim, resfriava a água (Costa: http://www.ricardocosta.com/astrologia.html).
Llull aconselha ao filho que ame a ciência pela intenção que existe, e para que saiba “usá-la e obrá-la melhor e mais lealmente, contrastando-a muito ao demônio” (Ramon Llull. O Livro da Intenção V.19, 6). As ciências da Natureza e da Medicina são afins: os quatro elementos (fogo, água, terra e ar), e os quatro humores do corpo (os temperamentos bilioso, sangüíneo, linfático e melancólico) deveriam ser levados em conta pelo médico, pois acreditava-se que a doença ocorria quando havia o destempero corporal e o fim da “virtude moderada”. Daí a necessidade imperativa da busca da virtude, pois virtude era harmonia - vimos que Al-Farabi afirma que o caminho da felicidade passa necessariamente pela moderação.
Este é um ponto muito importante: todo o sistema educativo medieval era uma estrutura análoga à estrutura do universo. Senão vejamos: educar era acender uma centelha no estudante, isto é, estimular um fogo já existente dentro das crianças; essa centelha pueril deveria ser estimulada a buscar as virtudes através do hábito de fazer coisas boas, através do exemplo dado pelo mestre; o hábito da virtude levaria à moderação e, por sua vez, a moderação equilibraria os temperos do homem. Estes temperos, regulados de acordo com a posição dos astros, dos signos do Zodíaco e dos líquidos corporais, traria, junto com o estudo da filosofia, a felicidade, fim supremo desejado por todos.
Por esses motivos, Llull mostra ao filho a teia de dependências que o homem tinha com toda a estrutura do universo:
Filho, saibas que o corpo humano é composto de quatro elementos (...) As compleições são quatro: cólera, sangue, fleuma e melancolia. A cólera é do fogo, o sangue do ar, a fleuma da água e a melancolia da terra. A cólera é quente pelo fogo e fria pela terra. O sangue é úmido pelo ar e quente pelo fogo. A fleuma é fria pela água e úmida pelo ar. A melancolia é seca pela terra e fria pela água. Assim, como essas compleições são desordenadas, os médicos trabalham para que possam ordená-las, pois o homem fica doente por causa do desordenamento delas. Filho, existe em cada homem as quatro compleições ditas acima, mas cada homem é sentenciado a uma compleição mais que à outra. Por isso, alguns homens são coléricos, outros sangüíneos, outros fleumáticos e outros melancólicos (Ramon Llull. Doutrina para crianças, LXXVII, 4-6).
A medicina esta ligada à filosofia, portanto! Esta teoria científica dos humores baseava-se em Hipócrates (c.460-380 a.C.), mas principalmente em Galeno de Pérgamo (c. 129-179 d.C.), médico e anatomista grego. Este fato mostra bem que os medievais não só conheciam os textos da Antigüidade como davam até valor demais a eles, respeitando-os como autoridades (Price, 1996). O mundo do ocidente medieval ainda recebeu o reforço da medicina árabe, que também compartilhava a teoria de Galeno (Micheau, 1985: 61-62). É por esse motivo que Al-Farabi constantemente cita os médicos como exemplos úteis na busca da felicidade (Al-Farabi, 2002: 54 e 58). O bem estar do corpo estava condicionado a esses quatro fluidos corporais. Os humores e as constelações determinavam os graus de calor e umidade do corpo e a proporção da masculinidade e feminilidade de cada pessoa. A Felicidade educacional passava então pelo corpo são, mas sobretudo, pela mente sã - livre (Al-Farabi), humilde na busca do saber (Hugo de São Vítor) e voltada para Deus (Ramon Llull).
Por fim, as Artes Mecânicas, também um caminho para se obter a felicidade terrena. Llull assim as define:
A arte mecânica é ciência lucrativa manual para dar sustentação à vida corporal. Filho, nesta ciência estão os mestres, isto é, os lavradores, os ferreiros, os marceneiros, os sapateiros, os alfaiates, os mercadores e os outros ofícios semelhantes a estes (...) Amável filho, nesta ciência os homens trabalham corporalmente para que possam viver, e uns mestres ajudam outros, e sem esses ofícios o mundo não seria ordenado, e nem burgueses, nem cavaleiros, nem príncipes e nem prelados poderiam viver sem estes homens que têm os ofícios citados acima (Ramon Llull. Doutrina para crianças, LXXIX, 1-2)
Llull aconselha a seu filho que aprenda algum desses ofícios, pois pode precisar deles em algum momento de sua vida (LXXIX, 6). Ele tenta seguir o “exemplo dos sarracenos”. Os muçulmanos oferecem muitos bons exemplos para Ramon Llull. No Livro das Maravilhas (1288-1289) ele comenta
A principal razão pela qual os cristãos envelhecem e morrem antes dos sarracenos é porque o sarraceno usa mais coisas doces, que são quentes e úmidas, que o cristão. E a água que ele bebe multiplica a umidade, fazendo durar sua umidade radical. E o cristão que bebe vinho, que é quente e seco, multiplica seu calor e consome sua umidade. (Ramon Llull. Félix ou O Livro das Maravilhas, Livro VIII, cap. 50. Publicado na INTERNET: http://www.ricardocosta.com/sumfelix.htm)
Na fisiologia medieval, a umidade radical era o humor vital ao qual era atribuída a conservação da vida animal (Domínguez Ortiz, 1962: 50). Comparativamente, enquanto o regime alimentar cristão era baseado na trilogia clássica pão-carne-vinho, o dos muçulmanos era rico em frutas doces, vegetais e vitaminas, como, aliás, recomenda a medicina atual. Os cristãos medievais admitiam que muitos muçulmanos viviam até oitenta ou cem anos, enquanto os cristãos sofriam de gota e envelheciam prematuramente, vítimas de seus próprios excessos alimentares (Flandrin e Montanari, 1998).
Do mesmo modo, Llull afirma que por mais rico que seja um muçulmano, ele não deixa de ensinar a seu filho algum ofício manual para que “se lhe falharem as riquezas, que ele possa viver do seu trabalho” (Ramon Llull. Doutrina para crianças, LXXIX, 3). Por outro lado, ele aproveita a descrição das Artes Mecânicas para fazer uma dura crítica aos burgueses de seu tempo, preocupados apenas em enriquecer. Burguês é um dos piores ofícios que existem: o burguês gasta, não ganha, é ocioso. O burguês
...gasta e não ganha, tem filhos e cada um deles está ocioso e quer ser burguês e a riqueza não é suficiente para todos (...) Nenhum homem vive tão pouco quanto o burguês. Sabes por quê? Porque comem demais e suportam pouco o mal. E nenhum homem faz tanto dano a seus amigos quanto um burguês pobre, e em ninguém está tão ultrajada a pobreza como está no burguês (...) Nenhum homem tem tão pouco mérito de esmola, nem de fazer o bem quanto o burguês. Sabes por quê? Porque não suportam o mal que dão. E como o homem foi feito para trabalhar e suportar o mal, quem faz seu filho burguês atenta contra isso pelo qual o homem foi feito. Por isso, aquele ofício é mais punido por Nosso Senhor Deus que qualquer outro.” (Ramon Llull. Doutrina para crianças, LXXIX, 9, 11-12)
Além dessa crítica ferina, Llull finaliza seu capítulo sobre as sete Artes Liberais com a metáfora da Roda da Fortuna, um tema muito querido pelos medievais e que mostra a intensa mobilidade social da sociedade medieval - ressalte-se que a sociedade medieval nunca foi um sistema de castas, tinha uma grande mobilidade e as noções de hierarquia e ordem tinham como objetivo possibilitar a fluidez das pessoas (Iogna-Prat, 2002: 313 e 318):
Filho, assim como a roda que se move gira, os homens que estão nos ofícios ditos acima se. Logo, aqueles que estão no mais baixo ofício em honramento desejam subir cada dia até chegar ao topo da roda soberana na qual estão os burgueses. E como a roda está sempre a girar e a se inclinar para baixo, convém que o ofício de burguês também caia (Ramon Llull. Doutrina para crianças, LXXIX, 10).
Os burgueses sempre querem mais; eles são a antítese do mundo de Ramon Llull, daquele mundo medieval voltado para a educação ética, de moral cristã. Os burgueses do tempo de Llull são, segundo sua visão, os responsáveis pelo movimento da Roda da Fortuna (Costa e Zierer: http://www.hottopos.com/convenit5/08.htm). Esta crítica ferina de Ramon Llull aos burgueses mostra seu intento educacional: as Artes existem para que o homem sempre lembre, desde muito cedo, através da Educação, que o saber destina-se a fins mais elevados que o lucro e a avareza.
Muitas vezes as ciências são estudadas e praticadas por homens malvados porque “...o demônio se esforça para destruir a intenção pela qual elas existem” (Ramon Llull. O Livro da Intenção, V.19, 6). Para o maiorquino, a ciência e o estudo devem estar a serviço da contemplação divina.
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Os três autores medievais escolhidos para este artigo ilustram maravilhosamente bem a forma e o conteúdo que a educação medieval tomou, após séculos de reflexões feitas a partir dos textos clássicos, que eles conheciam bem e que serviam de base para os estudos de diversas disciplinas. A Idade Média não só desenvolveu um sistema próprio de pensamento pedagógico, especialmente no campo da ética, como também aprimorou a divisão dos saberes herdada da Antigüidade, lançando, pela primeira vez, as artes mecânicas - ainda hoje consideradas como um “trabalho menor” - ao nível das artes liberais, isto é, intelectuais.
Ao buscar a fruição do belo, do bem, os intelectuais medievais elaboraram um conjunto harmonioso e integrado de educação voltada para a ascensão do espírito. O intelecto e a reflexão seriam, a partir de então, cumes desejáveis - e possíveis de serem alcançados por qualquer um, pois também foram lançadas as bases filosóficas do conceito de igualdade. Afinal, o cristianismo não pregou sempre que somos todos irmãos?
A sabedoria como caminho para a felicidade. Concluímos este texto retornando ao título: caminhar em uma trilha mental imaginária em busca da felicidade era, para os medievais, uma estrada de amor, esse sentimento tão difícil de ser definido e ainda mais difícil de ser escolhido atualmente como objeto de estudo histórico.
A felicidade é um fim que todo homem deseja e que todo aquele que se dirige a ela com seu esforço tende a ela tanto que é uma certa perfeição. Isso é algo que não necessita de palavras para ser explicado, pois é sumamente conhecido (...) a felicidade é um dos bens preferidos (Al-Farabi, 2002: 43)
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