A Canonização dos Santos



Fonte: Revista P & R
Autor: D. Estevão Bettencourt

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”

D. Estevão Bettencourt, O.S.B.

Nº 13, Ano 1959, Página 20.


5) “A canonização dos Santos parece ser uma reminiscência do paganismo entre os cristãos.


Qual a autoridade de que goza a Igreja para declarar que alguém está na glória celeste?”


Por canonização (= consignação no cânon ou no catálogo) entende-se a sentença definitiva pela qual o Sumo Pontífice declara estar algum servo de Deus na glória celeste e prescreve, lhe seja conseqüentemente prestada pública veneração.


Da canonização distingue-se a beatificação, ato pelo qual o Sumo Pontífice permite seja tributado culto público a um servo de Deus em certa região ou certa família religiosa (excepcionalmente na Igreja universal).


Abaixo examinaremos sucessivamente a canonização dos santos através da história e a autoridade dogmática de que possa gozar uma sentença dessas.


1. Apoteose pagã e canonização cristã


Os fiéis falecidos em fama de santidade sempre foram objeto de particular estima por parte dos cristãos. Esse apreço nada tem que ver com o que os pagãos tributavam aos seus mortos nas famosas apoteoses.


a) Os pagãos costumavam celebrar atos públicos nos quais um homem (um rei, no Egito; um herói, na Grécia; um Imperador, em Roma) era declarado deus ou semi-deus. Em Roma, a cerimônia baseava-se na crença oriental de que a alma, sendo produto de emanação da substância divina do sol, voltava a esta ou ao seio do fogo divino após a morte do indivíduo; costumava-se então preparar em praça pública uma fogueira, sobre a qual era colocado o cadáver do Imperador; enquanto este ardia juntamente com perfumes e ervas aromáticas, soltava-se, espantada pelo calor, uma águia que até aquele momento se achava oculta junto à fogueira; essa águia (ave divina por excelência), diziam, levava a alma do Divus Imperator (ou do Imperador Divino) aos céus (cf. Suetônio, Augusto 100; Herodiano IV 2).


Ora é claro que os cristãos de modo nenhum entendiam (ou entendem) elevar os justos à categoria de deuses. Apenas afirmam que os santos são frutos consumados da Redenção de Cristo, criaturas nas quais se exprimem de maneira grandiosa a sabedoria e o amor de Deus; essas criaturas tornam-se assim motivo para que seus irmãos louvem e adorem o Pai do Céu. Os santos são também, conforme a concepção cristã, os grandes amigos de Deus, aos quais os viandantes da terra se dirigem para pedir sua intercessão junto ao Todo-Poderoso (cf. “P. R.” 3/1958 qu. 5). Assim se vê que o culto dos santos é todo referente a Deus.


b) Os pagãos tributavam a apoteose exclusivamente aos Imperadores, aos membros e favoritos da família imperial; não se tem notícia de que endeusassem um homem do povo. Os cristãos, ao contrário, reconhecem como santos tanto os reis e pontífices como os irmãos de categoria humana mais modesta.


c) O critério pagão para endeusar alguém era unicamente a classe social da pessoa, de sorte que no Olimpo se colocavam homens de costumes depravados Assim Nero (+ 68) divinizou sua concubina impudica Popéia, depois de lhe ter tirado a vida mediante um ponta-pé. O imperador Caracala (+ 217) endeusou seu irmão Geta, que ele matara porque o tinha na conta de Rival; observou então ironicamente: “Sit divus, dummodo non sit vírus - - Seja divina, contanto que não seja vivo!” (cf. Tácito, Annal. XIII 45; XV 23; XVI 6; Suetônio, Nero 25). Em conseqüência, as apoteoses eram as vezes ridicularizadas pelos próprios escritores pagãos; foi o que Sêneca fez diante do endeusamento do Imperador Cláudio.


Quanto aos cristãos está claro que só estimam santos aqueles que hajam praticado as virtudes em grau comprovadamente heróico ou fora do comum.


Não será preciso insistir no contraste vigente entre o culto dos santos e as apoteoses pagãs (por isto é que tanto os cristãos como os judeus sempre resistiram ao culto dos Imperadores e às apoteoses em geral). A canonização dos santos se inspira, antes, em costumes bíblicos: o autor do Eclesiástico escreveu o “Louvor dos Pais (Enoque, Noé, Abraão, Isaque, os justos...)”, redigindo desta forma o primeiro catálogo ou cânon dos santos de Israel (cf. Eclo 44-51).


2. O desenvolvimento dos processos de canonização através da história


1. O primeiro tipo de amigo de Deus cultuado pelos cristãos é o do mártir. Este desde cedo foi tido como o imitador mais perfeito de Cristo, visto ninguém ter maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos (cf. Jô 15,13).


Conscientes disto, os antigos cristãos recolhiam reverentes os despojos dos mártires e anualmente comemoravam o seu natalício (isto é, a sua entrada na glória celeste), celebrando junto ao túmulo dos mesmos o santo sacrifício da Missa. Tal foi a mais antiga forma de canonização, atestada por documentos do séc. II (cf. Martyrium Polycarpi 18,3).


Já nesses primeiros séculos nota-se o cuidado, da parte das autoridades da Igreja, de não permitir aos fiéis a veneração de qualquer aparente vítima da perseguição. Os bispos examinavam as “Atas dos mártires”, isto é, os testemunhos referentes a cada cristão perseguido, a fim de apurar se de fato morrera por amor à fé; consoante o resultado desse exame, permitiam ou não o culto do mártir. Uma vez reconhecido um autêntico herói, a comunidade cristã a que ele pertencia, enviava às demais uma carta circular (Ata) narrando o glorioso combate do santo, a fim de se edificarem os irmãos.


2. A partir do séc. IV, começou a ser honrado outro tipo de santo: o chamado “Confessor”, ou seja, o justo que, sem ter derramado o sangue para confessar a fé, a havia não obstante confessado, praticando as virtudes em grau heróico. Esta nova modalidade da piedade cristã se deve ao fato de que, após a paz de Constantino (313), as ocasiões de martírio se foram tornando raras. Muitos amigos de Deus procuraram então excitar em si a atitude do mártir e, conseqüentemente, a do Cristo, renunciando espontaneamente a tudo, até aos bens lícitos; esforçavam-se por viver um martírio incruento no celibato ou na virgindade. Desde fins do séc. IV, esses campeões da vida ascética foram sendo publicamente honrados. O culto de veneração se estendeu outrossim a grandes figuras de bispos (S. Atanásio, S. Martinho de Tours) e por fim a todo e qualquer justo que se tivesse distinguido na terra por virtudes eminentes.


Contudo as autoridades da Igreja zelavam, ainda mais que no caso dos mártires, para que somente os autênticos confessores ou homens de Deus fossem venerados pelo povo cristão; varões idôneos eram encarregados pelos bispos de consignar por escrito o que se dizia a respeito das virtudes de tal justo e dos milagres obtidos por sua intercessão. Diversos concílios da Antigüidade e do início da Idade Média tiveram que proibir o culto público tributado a servos de Deus antes que a autoridade eclesiástica se tivesse oficialmente pronunciado a seu respeito; também promulgaram cânones que mandavam cancelar das listas dos santos nomes aí prematuramente inseridos pelo fervor popular. Os nomes de santos cultuados em determinada diocese eram comunicados a outras dioceses, de sorte que havia justos unanimemente venerados na Igreja universal, enquanto outros só gozavam de culto local.


Tal estado de coisas se prolongou até o séc. XII... Nesta época sabe-se que os Papas Urbano II (+ 1099), Calixto II (+ 1124) e Eugênio III (+ 1153) repetidamente recomendaram que as virtudes e os milagres dos justos que pareciam dignos de ser inscritos no catálogo dos santos, fossem examinados de preferência em concílios, e principalmente em concílios gerais. Esta exortação é bastante significativa: supõe que a piedade dos fiéis cristãs se deixara não raro enganar por virtudes mais aparentes do que reais e que os bispos não sempre davam conta da tarefa de se informar diligentemente a respeito das qualidades e dos milagres atribuídos a tal ou tal cristão falecido. A Santa Sé era conseqüentemente obrigada a não ficar mais na atitude de consentimento ou aprovação tácita ao culto dos santos; mais e mais ela então por diante tenderia a reservar ao seu supremo juízo a palavra definitiva em assunto tão importante.


No decorrer do séc. XII, nota-se que alguns Papas por si, sem recorrer a algum concílio, declararam certos justos dignos de culto público; assim procedeu Eugênio III (+ 1156) com o Imperador S. Henrique; Alexandre III (+ 1181) com o rei S. Eduardo da Inglaterra, com S. Tomaz de Cantuária e com S. Bernardo de Claraval. Aliás, já aos 11 de junho de 993 o Papa João XV fez semelhante declaração em favor do bispo S. Ulrico de Augsburgo (Baviera); os historiadores costumavam ver nesta declaração a primeira canonização da história (embora o termo “canonização” não recorra no mencionado documento pontifício; pela primeira vez, no seu sentido técnico atual, tal vocábulo aparece em uma carta do bispo Udalrico de Constança ao Papa Calixto II, 1119-1124). Não se poderia, porém, dizer com precisão desde quando os Papas começaram a se pronunciar explicitamente sobre a santidade dos justos falecidos nem desde quando reservaram a si o julgamento de tais assuntos.


Um incidente verificado no séc. XII tem chamado a atenção dos estudiosos da matéria: um grupo de monges honrava como santo um irmão de hábito que na verdade pouco se recomendava; o Papa Alexandre III escreveu, então aos Religiosos, mandando cessar a veneração e admoestando explicitamente: “... cu etiam si per eum miracula fierent, non liceret vobis ipsum pro sancto, absque auctoritate Romanae Ecclesiae venerari. - ... Ainda que por ele se realizassem milagres, não vos seria lícito venerá-lo como santo sem a aprovação da Igreja de Roma” (Decret. 1 III. Tit. XLV c. Audivimus).


Este texto, por lacônico que seja, significa, segundo muitos canonistas, que o Sumo Pontífice de então por diante atribuía exclusivamente à Santa Sé o direito de apresentar os santos à veneração dos fiéis.


O fato é que, apesar de tal texto pontifício, alguns poucos bispos continuaram a empreender processos regionais de canonização; na verdade, até o séc. XVII os canonistas duvidavam a respeito do significado preciso do decreto de Alexandre III.


Somente sob o Papa Urbano VIII a legislação concernente ao assunto foi claramente elaborada: sucessivamente em 1625 e 1634 este Pontífice proibiu toda e qualquer forma de culto público tributado a pessoas não beatificadas ou canonizadas pela Santa Sé. Desde os tempos de Alexandre III, as causas de beatificação e canonização eram confiadas ao Colégio de Cardeais; o Papa Sixto V em 1587 as atribuiu à S. Congregação dos Ritos; por fim, Urbano VIII (1625-1634) determinou novo trâmite para os processos, o qual até hoje, com poucas modificações, está em vigor. Os atos de beatificação e canonização são de exclusiva competência do Sumo Pontífice, de sorte que, sem ordem deste, não poderiam ser validamente levados a efeito por algum bispo, nem por sínodos regionais nem pelo Colégio Cardinalício.


O esboço histórico acima explica a seguinte distinção hoje vigente no Direito Canônico: há sentenças de beatificação e canonização formais e sentenças ditas eqüipolentes. As primeiras constituem o resultado final de um processo regular, movido segundo a respectiva legislação eclesiástica. As sentenças eqüipolentes, ao contrário, são decretos baixados independentemente de processo anterior, decretos que se limitam a reconhecer a legitimidade do culto multissecular prestado a tal justo na base de autêntica fama de santidade e de milagres a ele atribuídos. As sentenças eqüipolentes, como se compreende, se aplicam aos santos mais antigos da história da Igreja.


Pergunta-se agora qual o valor dogmático que possam ter, para os fiéis católicos, as sentenças de canonização.


3. Canonização e infalibilidade


1. Os teólogos e canonistas, quase unanimemente, afirmam que o Sumo Pontífice goza de infalibilidade, quando define estar algum justo na glória celeste e, por conseguinte, merecer a veneração pública dos fiéis.


A razão em que se apóiam, é a seguinte:


O Papa não pode induzir um erro a Igreja universal em matéria de fé e costumes (como definiu o Concílio do Vaticano, consoante a mais autêntica tradição cristã; cf. a questão 2 deste fascículo). Ora uma sentença de canonização toca a moral do povo cristão, pois propõe à veneração e à imitação dos fiéis uma pessoa que, não há dúvida, representa um ideal de doutrina e de vida bem caracterizado. Não se pode conceber, pois, que o Sumo Pontífice, em declarações feitas solenemente ao orbe católico, não indique as pessoas correspondentes a tal propósito, ou seja, autênticos santos (disto, porém, não se segue que todos os autênticos santos são também canonizados ou publicamente proclamados tais).


Note-se outrossim que os Pontífices mesmos, nas bulas de canonização parecem professar a consciência da sua infabilidade (o que por si não é argumento decisivo, mas, ao menos, confirmativo). Eis as expressões categóricas de que costumam usar:


“Inter sanctos et electos ab Ecclesia universali honorari praecipimus...


Apostolicae Seis auctoritate catalogo sanctorum scribi mandavimus...


Memoriam inter sanctos ab omnibus de caetero fieri censemus, et anniversarium ipsius diem solemniter celebrari constituimus,... statuentes ab Ecclesia universali illius memoriam quolibet anno pia devotione recoli debere...”


Quem não queira reconhecer a sentença de canonização, incorre em falta grave, como dá a ver a seguinte formula:


“Si quis quod non credimus, temerário ausu, contraire tentaverit... sciat se, autoritate B. Petri, principis apostolorum, cuius vel immeriti vices agimus, anathematis vinculo innodatum”.


Para se avaliar todo o alcance destas expressões, observem-se os termos intencionalmente mais brandos em que os Pontífices se costumam exprimir nas bulas de beatificação (declaração limitada a certas pessoas e regiões):


“Tenore praesentium indulgemus...; licentiam et facultatem concedimus...”.


As reservas são explicitamente formuladas nos dizeres: “... donec aliud per Nos, vel per sedem apostolicam, fuerit solemniter ordinatum”.


No caso, pois, de beatificação, o Santo Padre concede, não preceitua... e, embora tenha boas razões para conceder, não julga impossível uma reforma de sentença.


O fato de que os teólogos geralmente admitem a infalibilidade das sentenças de canonização torna gravemente temerária, escandalosa e próxima de heresia a posição de quem queira negar tal doutrina. Por conseguinte, também seria gravemente temerário duvidar de que tal ou tal santo canonizado esteja realmente na glória celeste. Não se poderia, porém, afirmar que a negação ou a dúvida em tais assuntos equivale à heresia: “Mesmo após o concílio do Vaticano, não há definição explícita da Igreja a tal respeito, de sorte que quem negasse não seria formalmente herege” (T. Ortolan, Canonisation dans l’Église Romaine, em “Dictionnaire de Théologie catholique” II 2. Paris 1939, 1624).


2. Para proferir uma sentença de canonização, o Sumo Pontífice, embora goze da assistência infalível do Espírito Santo, não é dispensado de recorrer a critérios sensíveis, capazes de gerar certeza no plano meramente humano (é o que se dá, aliás, no caso de qualquer definição dogmática pronunciada pelo S. Padre). Dois sinais raros e indispensáveis são exigidos para que um processo de canonização chegue a termo feliz:


a) comprovada heroicidade das virtudes do justo durante a sua vida terrestre;


b) o testemunho de milagres após a morte.


Qualquer dúvida a respeito de um ou de outro destes pré-requisitos retém ou anula toda a marcha do processo.


Quanto aos milagres em particular, a Igreja ainda hoje os reconhece como autênticos sinais de Deus, desde que se verifiquem em circunstâncias determinadas (cf. “P. R.” 6/1958 qu. 1). Para que o processo chegue à sentença de beatificação, requerem-se dois, três ou quatro milagres, conforme a qualificação das testemunhas que os referem (cf. cân. 2117); no caso dos mártires, a exigência de milagres pode ser mitigada ou até dispensada (cf. cân. 2116 § 2). Para a canonização, tornam-se indispensáveis dois ou três milagres (segundo circunstâncias variáveis) verificados após a beatificação (cf. cân. 2138). Assim quer a Sta. Igreja assegurar-se de que realmente Deus falou ao mundo pela conduta de vida de tal ou tal justo.

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