A Igreja alguma vez aceitou a reencarnação?

 



Via internet propaga-se a tese segundo a qual a Igreja professou a doutrina da reencarnação até o século VI. Por obra de Justiniano, Imperador de Bizâncio, e sua esposa Teodora, terá a Igreja condenado a doutrina da reencarnação.


A seguir, proporemos a versão tal como vem propagada pela Internet a história concernente ao assunto explanada com objetividade.


I. A notícia tendenciosa


A condenação da doutrina da reencarnação se deve a uma ferrenha oposição pessoal do imperador Justiniano, que nunca esteve ligado aos protocolos do Concílio de Constantinopla II (553). Segundo Procópio, ima mulher de nome Teodora, filha de um guardador de ursos do anfiteatro de Bizâncio, era a ambiciosa esposa de Justiniano, e, na realidade, era quem manejava o poder. Ela, como cortesã, iniciou sua rápida ascensão ao Império.


Para se libertar de um passado que a envergonhava, ordenou, mais tarde, a morte de quinhentas antigas "colegas" e, para não sofrer as conseqüências dessa ordem cruel em uma outra vida como preconiza a lei do Carma, empenhou-se em suprimir toda a magnífica Doutrina da Reencarnação. Estava confiante no sucesso dessa anulação, decretada por Justiniano "em nome de DEUS"!


Em 543 d. C., o déspota imperador Justiniano, sem levar em conta o ponto de vista clerical, declarou guerra frontal aos ensinamentos de Orígenes - exegeta e teólogo (185-235 d.C.), condenando tais ensinamentos através de um sínodo especial.


Em suas obras De principiis e Contra Celsum, Origenes tinha reconhecido, abertamente, a existência da alma antes do nascimento e sua dependência de ações passadas. Ele pensava que certas passagens do Novo Testamento poderiam ser explicadas somente à luz da Reencarnação.


E a Igreja aceitou o edito de Justiniano - 'Todo aquele que ensinar esta fantástica preexistência da alma e sua monstruosa renovação, será condenado' como parte das conclusões do Concílio. Portanto, a proibição da Doutrina da Reencarnação (renascimento físico) foi um erro histórico, sem qualquer validade eclesiástica".

Vejamos agora a autêntica versão da questão desde as suas origens ou desde o século III (pois até esta época não se falava de reencarnação na Igreja).


2. A autêntica versão dos fatos


2.1. Orígenes e origenismo


1. Orígenes (185-254) foi mestre de famosa Escola de Teologia em Alexandria (Egito) no séc. III. Nessa época, os pensadores cristãos tentavam penetrar nos dados do Evangelho mediante o instrumento da filosofia ou da sabedoria humana (grega) anterior a Cristo. A teologia ainda estava em seus primórdios; as fórmulas oficiais da fé da Igreja eram então muito concisas; em conseqüência, ficava margem assaz ampla para que o estudioso propusesse sentenças destinadas a elucidar, na medida do possível, os artigos da fé. Orígenes entregou-se a essa tarefa, servindo-se da filosofia do seu tempo e, em particular, da filosofia platônica. Ao realizar isso, Orígenes fazia questão de distinguir explicitamente entre proposições de fé, pertencentes ao patrimônio da Revelação cristã, e proposições hipotéticas, que ele formulava em seu nome pessoal, à guisa de sugestões; além disto, professava submissão ao magistério da Igreja, caso esta rejeitasse alguma das teses de Orígenes.


Ora, entre as suas proposições pessoais, Orígenes formulou algumas que de fato vieram a ser recusadas pelo magistério da Igreja.


2. Assim, inspirando-se no platonismo, derivava a palavra grega psyché (alma) de psychos (frio), e admitia que as almas humanas unidas à matéria, tais como elas atualmente se acham, são o produto de um resfriamento do fervor de espíritos que Deus criou todos iguais e destinados a viver fora do corpo; a encarnação das almas, portanto, e a criação do mundo material dever-se-iam a um abuso da liberdade ou um pecado dos espíritos primordiais, que Deus terá punido, ligando tais espíritos à matéria. Banidos do céu e encarcerados no corpo, estes sofrem aqui a justa sanção e se vão purificando a fim de voltar a Deus; após a vida presente, alguns ainda precisarão de ser purificados pelo fogo em sua existência póstuma, mas na etapa final da história todos serão salvos e recuperarão o seu lugar junto de Deus v : o mundo visível terá então preenchido o seu papel e será aniquilado.


Note-se bem: Orígenes propunha essas idéias como hipóteses, e hipóteses sobre as quais a Igreja não se tinha pronunciado (justamente porque pronunciamentos sobre tais assuntos ainda não haviam sido necessários). Não havia, pois, da parte de Orígenes a intenção de se afastar do ensinamento comum da Igreja a fim de constituir uma escola teológica própria ou uma heresia ("heresia" implica obstinação consciente contra o magistério da Igreja).


3. A desgraça de Orígenes, porém, foi ter tido muitos discípulos e admiradores... Estes atribuíram valor dogmático às proposições do mestre, mesmo depois que o magistério da Igreja as declarou contrárias aos ensinamentos da fé.

É preciso observar ainda o seguinte: Orígenes admitiu também como possível a preexistência das almas humanas. Ora esta doutrina não significa necessariamente reencarnação; apenas quer dizer que, antes de se unir ao corpo, a alma humana viveu algum tempo fora da matéria; encarnou-se depois...; daí não se segue que se deva encarnar mais de uma vez (o que seria a reencarnação propriamente dita).


Aliás, Orígenes se pronunciou diretamente contrário à doutrina da reencarnação... Com efeito, em certa passagem de suas obras considera a teoria do filósofo Basílides, o qual queria basear a reencarnação nas palavras de São Paulo: "Vivi outrora sem lei..." (Rm 7, 9). Observa então Orígenes: Basílides não percebeu que a palavra "outrora" não se refere a uma vida anterior de S. Paulo, mas apenas a um período anterior da existência terrestre que o Apóstolo estava vivendo; assim concluía Orígenes: "Basílides rebaixou a doutrina do Apóstolo ao plano das fábulas ineptas e ímpias" (cf. In Rom VIII).


Contudo os discípulos de Orígenes professavam como verdade de fé não somente a preexistência das almas (delicadamente insinuada por Orígenes), mas também a reencarnação (que o mestre não chegou de modo algum a propor, nem como hipótese).


Os principais defensores destas idéias, os chamados "origenistas", foram monges que viveram no Egito, na Palestina e na Síria nos séc. IV/ VI. Esses monges, como se compreende, levando vida muito retirada, entregue ao trabalho manual e à oração, eram pouco versados no estudo e na teologia; admiravam Orígenes principalmente por causa dos seus escritos de ascética e mística, disciplinas em que o mestre mostrou realmente ter autoridade. Não tendo, porém, cabedal para distinguir entre proposições categóricas e meras hipóteses do mestre, os origenistas professavam cegamente como dogma tudo o que liam nos escritos de Orígenes; pode-se mesmo dizer que eram tanto mais fanáticos e buliçosos quanto mais simples e ignorantes.


3. A tese da reencarnação, desde que começou a ser sustentada pelos origenistas, encontrou decididos oponentes entre os escritores cristãos mesmos, que a tinham como contrária à fé. Um dos testemunhos mais claros é o de Enéias de Gaza (t 518), autor do "Diálogo sobre a imortalidade da alma e a ressurreição", em que se lê o seguinte raciocínio: "Quando castigo o meu filho ou o meu servo, antes de lhe infligira punição, repito-lhe várias vezes o motivo pelo qual o castigo, e recomendo-lhe que não o esqueça para que não recaia na mesma falta. Sendo assim, Deus, que estipula... os supremos castigos, não haveria de esclarecer os culpados a respeito do motivo pelo qual Ele os castiga? Haveria de lhes subtrair a recordação de suas faltas, dando-lhes ao mesmo tempo a experimentar muito vivamente as suas penas? Para que serviria o castigo se não fosse acompanhado da recordação da culpa? Só contribuiria para irritar o réu e levá-lo à demência. Uma tal vítima não teria o direito de acusar o seu juiz por ser punida sem ter consciência de haver cometido alguma falta?" (ed. Migne gr., t. LXXXV, 871).


Sem nos demorar sobre este e outros testemunhos contrários à reencarnação no séc. VI, passamos imediatamente à fase culminante da controvérsia origenista.


2.2. "Não" à reencarnação


No início do séc. VI estava o origenismo muito em voga nos mosteiros da Palestina, tendo como principal centro de propagação o mosteiro da "Nova Laura" ao sul de Belém: aí se falava, com estima, de preexistência das almas, reencarnação, restauração de todas as criaturas na ordem inicial ou na bem-aventurança celeste...


Em 531, o abade São Sabas, que, com seus 92 anos de idade, se opunha energicamente ao origenismo, foi a Constantinopla pedir a proteção do Imperador para a Palestina devastada pelos samaritanos, assim como a expulsão dos monges origenistas. Contudo alguns dos monges que o acompanhavam, sustentaram em Constantinopla opiniões origenistas; regressou à Palestina, para aí morrer aos 5 de dezembro de 532.


Após a morte de S. Sabas, a propaganda origenista recrudesceu, invadindo até mesmo o mosteiro do falecido abade (a "Grande Laura"); em conseqüência, o novo abade, Geiásio, expulsou do mosteiro quaren ta monges. Estes, unidos aos da "Nova Laura", não hesitaram em tentar tomar de assalto a "Grande Laura". Por essa época, os origenistas (pelo fato de combater uma famosa heresia cristológica, dita "monofisitismo") gozavam de grande prestígio, mesmo em Constantinopla.


Com o passar do tempo, a controvérsia entre os monges da Palestina foi-se tornando cada vez mais acesa, exigindo em breve a intervenção das autoridades. Foi o que se deu em 539: o Patriarca de Jerusalém mandou pedir ao Imperador Justiniano de Constantinopla o seu pronunciamento contra o origenismo (naquela época os temas teológicos interessavam ao Imperador tanto quanto as questões de administração pública). Justiniano, em resposta, escreveu um tratado contra Orígenes, de tom extremamente violento, que se encerrava com uma série de dez anátemas contra Origenes, dos quais merecem atenção os seguintes:


"1. Se alguém disser ou julgar que as almas humanas existiam anteriormente, como espíritos ou poderes sagrados, os quais, desviando-se da visão de Deus, se deixaram arrastar ao mal, e, por este motivo, perderam o amor de Deus, foram chamados almas e relegados para dentro de um corpo à guisa de punição, seja anátema.

5. Se alguém disser ou julgar que, por ocasião da ressurreição, os corpos humanos ressuscitarão em forma de esfera, sem semelhança com o corpo que atualmente temos, seja anátema.

9. Se alguém disser ou julgar que a pena dos demônios ou dos ímpios não será eterna, mas terá fim, e que se dará uma restauração (apokatástasis, reabilitação) dos demônios, seja anátema".


Justiniano em 543 enviou o seu tratado com os anátemas ao Patriarca Menas de Constantinopla, a fim de que este também condenasse Orígenes e obtivesse dos bispos vizinhos e dos abades de mosteiros próximos igual pronunciamento.


Assim intimado, Menas reuniu logo o chamado "sínodo permanente" (conselho episcopal) de Constantinopla, o qual, por sua vez, redigiu e promulgou quinze anátemas contra Orígenes, dos quais os quatro primeiros nos interessam de perto:

"1. Se alguém crer na fabulosa preexistência das almas e na repudiável reabilitação das mesmas (que é geralmente associada àquela), seja anátema.


2. Se alguém disser que os espíritos racionais foram todos criados Independentemente da matéria e alheios ao corpo, e que vários deles rejeitaram a visão de Deus, entregando-se a atos ilícitos, cada qual seguindo suas más inclinações, de modo que foram unidos a corpos, uns mais, outros menos perfeitos, seja anátema.


3. Se alguém disser que o sol, a lua e as estrelas pertencem ao conjunto dos seres racionais e que se tornaram o que eles hoje são por se voltarem para o mal, seja anátema.


4. Se alguém disser que os seres racionais nos quais o amor a Deus se arrefeceu, se ocultaram dentro de corpos grosseiros como são os nossos, e foram em conseqüência chamados homens, ao passo que aqueles que atingiram o último grau do mal tiveram como partilha corpos frios e tenebrosos, tornando-se o que chamamos demônios e espíritos maus, seja anátema".


O Papa Vigílio e os demais Patriarcas deram a sua aprovação a esses artigos. Como se vê, tal condenação foi promulgada por um sínodo local de Constantinopla reunido em 543, e não pelo Concílio ecumênico' de Constantinopla II, o qual só se realizou em 553. Neste Concílio ecumênico, a questão da pré-existência e da sorte póstuma das almas humanas não voltou à baila; verdade é que Orígenes aí foi condenado juntamente com outros escritores cristãos por causa de erros concernentes a Cristo.


Em conclusão, observamos o seguinte:


a) A doutrina da reencarnação nunca foi comum, nem é primitiva na Igreja Católica (atestam-no os depoimentos dos antigos escritores cristãos atrás mencionados);


b) Após Orígenes (séc. III), ela foi professada por grupos particulares de monges orientais, pouco versados em teologia, os quais se prevaleciam de afirmações daquele mestre, exagerando-as (daí a designação de "origenistas", que lhes coube);


c) Mesmo dentro da corrente origenista, a teoria da reencarnação não teve a voga que tiveram, por exemplo, as teses da preexistência das almas e da restauração de todas as criaturas na suposta bem-aventurança inicial;


d) Por isto as condenações proferidas por bispos e sínodos no séc. VI sobre o origenismo versam explicitamente sobre as doutrinas da preexistência e da restauração das almas (o que naturalmente implica a condenação da própria tese da reencarnação, na medida em que esta tese depende daquelas doutrinas e era professada pelos origenistas); e) A doutrina da reencarnação foi rejeitada não somente pelo magistério ordinário da Igreja (baseado na palavra da S. Escritura) desde os tempos mais remotos, mas também pelo magistério extraordinário nos concílios ecumênicos de Lião em 1274 ("As almas ... são imediatamente recebidas no céu") e de Florença em 1439 ("As almas ... passam imediatamente para o inferno a fim de aí receber a punição"): cf. Denzinger Schõnmetzer, Enquirídio n° 857 [464] e 1306 [693]. Ver também Concílio do Vaticano li, Const. Lumen Gentium n°- 48: "Terminado o único curso de nossa vida terrestre, possamos entrar nas bodas".

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