As Inquisições

 


Fonte: Site Agnus Dei


"Como calar-se diante das muitas formas de violência perpetradas também em nome da fé? Guerras de religião, tribunais da Inquisição e outras formas de violação dos direitos das pessoas (...) É preciso que também a Igreja, à luz de quanto o Concílio Vaticano II disse, reveja por sua própria iniciativa os aspectos obscuros da história avaliando-os à luz dos princípios do Evangelho" (João Paulo II, Memorando aos cardeais, primavera européia de 1994).


"Não temos a necessidade de justificar a Inquisição medieval e não a justificamos" (R. Leiber).


"Mas enquanto Cristo, 'santo, inocente, imaculado' (Hb 7,26), não conheceu o pecado (cf. 2Cor 5,21), mas veio para expiar apenas os pecados do povo (cf. Hb 2,17), a Igreja, reunindo em seu próprio seio os pecadores, ao mesmo tempo santa e sempre na necessidade de purificar-se, busca sem cessar a penitência e a renovação" (Lumen Gentium, n. 8).


Uma das ferramentas prediletas dos opositores da Igreja de Cristo é esta: a Inquisição. Para eles, o fato de ter existido um tribunal eclesiástico que julgava, torturava e matava hereges é a evidência incontestável da falibilidade da Igreja e da sua traição ao Evangelho. "O espetáculo de monges presidindo a terríveis suplícios para arrancarem confissões a acusados já exaustos é, com efeito, daqueles que mais revoltam" (Daniel-Rops, História da Igreja de Cristo, vol. III, A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, Quadrante, p. 610). Como responder a estas acusações? Como fazer uma apologia diante de fatos historicamente incontestáveis? Como católicos, qual deve ser a nossa atitude quando nos confrontamos com o problema da Inquisição?

Antes de mais nada, devemos ter uma boa noção do que foi a Inquisição. Precisamos saber o que realmente aconteceu. É necessário compreender a Inquisição, seu contexto cultural, jurídico e político, as causas que levaram ao seu surgimento, os métodos utilizados, a sua extensão, o número de vítimas e o que provocou o seu desaparecimento.


Como não há espaço suficiente aqui e também não é minha intenção escrever uma monografia sobre o assunto, vou fazer apenas um resumo com citações do material que disponho e, no final, darei uma orientação bibliográfica para quem desejar se aprofundar mais.


I - O que é Inquisição?


A palavra Inquisição vem do latim "inquiriere" e quer dizer "procurar", "investigar". Por este termo é usualmente designada uma instituição eclesiástica específica criada para combater ou suprimir a heresia.


II - Um esclarecimento: "a Inquisição" ou "as Inquisições"?


Como a Inquisição é um fenômeno histórico que não permaneceu sempre o mesmo mas conheceu variações de época para época e de lugar para lugar, é conveniente distinguirmos várias "Inquisições", que devem ser analisadas separadamente. Consideraremos aqui a divisão tríplice, que parece ser a mais aceita e, na minha opinião, é a mais completa:



A Inquisição Medieval


A Inquisição Espanhola


O Santo Ofício em Roma


III - A busca e a supressão da heresia antes da Inquisição

"Não foi a Igreja que inaugurou a repressão da heresia por meio da violência. Se a considerou em todos os tempos como um crime de ´lesa-majestade' divina, nunca pediu a aplicação dessas penas severas que castigavam toda a lesa-majestade no direito imperial romano. No decurso dos três primeiros séculos, recorreu apenas à persuasão e às punições espirituais. Foram os imperadores cristãos, Constantino e seus sucessores, que, como 'bispos do exterior', castigavam com penas temporais - multas, prisão e flagelação - os rebeldes contra a verdadeira fé, maniqueus ou donatistas. O primeiro grande processo por heresia que terminou com uma execução capital, o do espanhol Prisciliano, provocou veementes protestos do papa Sirício, de Santo Ambrósio e de São Martinho de Tours. Com Santo Agostinho, a perspectiva mudou um pouco: partidário resoluto dos métodos de tolerância para com os hereges, sobretudo maniqueus, compreendeu que a heresia constituía um atentado fundamental contra a sociedade cristã e que esta devia defender-se. Desejava que ela o fizesse com moderação, mas admitia que se aplicasse a pena de morte em caso de perigo social evidente. Ao contrário, São João Crisóstomo dizia que 'matar um herege é introduzir na terra um crime inexpiável'.


Coisa curiosa: a época merovíngia e mesmo a época carolíngia, que não passam por muito benévolas, não conheceram repressões sangrentas da heresia. A razão é simples: o não-conformismo religioso era então muito pequeno para constituir um perigo real, e o que restava dos arianos podia ser considerado como prestes a converter-se. O monge Gottschalk, acusado de heresia em meados do século IX, foi condenado apenas à flagelação. Foi a reaparição da heresia dualista, maniquéia, cujo caráter anti-social já referimos, que provocou uma reação mais viva. Esta reação foi obra dos príncipes: Roberto o Piedoso, em 1022, mandou queimar os hereges de Orléans; o imperador Henrique III, em 1052, mandou enforcar outros em Goslar. Até meados do século XII, todas as condenações à morte de hereges foram decididas pelas autoridades civis, muitas vezes impelidas pelas multidões fanatizadas. A Igreja levantou-se contra essas mortes, principalmente contra as execuções sumárias. Foram inúmeros os Doutores e Pontífices que fizeram ouvir os seus protestos. 'A fé é uma obra de persuasão', exclamava São Bernardo, 'não se impõe!', e, quando soube da execução pelo fogo de alguns hereges em Colônia, acrescentou sabiamente que era absurdo fazer 'falsos mártires' desse modo.


Foram numerosos os cânones dos concílios que, excomungando os hereges e proibindo os cristãos de lhes darem asilo, não admitiam que se utilizassem contra eles a pena de morte. Deviam bastar as penas espirituais ou, quando muito, as penas temporais moderadas" (Daniel-Rops, História da Igreja de Cristo, vol. III, A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, Quadrante, pp. 605-606).


"No mundo antigo, dentro e fora dos limites do império romano, a religião (ainda que limitada a funções culturais e aberta à pacífica convivência com os cultos de proveniência estrangeira) mantinha uma união inseparável com as características étnicas e nacionais, e era muito lógico que o chefe do Estado exercesse a suprema autoridade religiosa. Essa mentalidade é eficazmente expressa no livro de Rute: 'o teu povo será o meu povo, e o teu Deus será o meu Deus' (1,16). Uma das causas principais da hostilidade contra o cristianismo foi exatamente a recusa em reconhecer o imperador como chefe da religião. Contra essas ingerências do Estado em questões religiosas, contra a invasão da autoridade laica no âmbito das consciências (que, pelo menos dentro de certos limites e sob certo ponto de vista, se pode designar com o termo de intolerância), os apologetas e os primeiros escritores cristãos reivindicaram os direitos da pessoa humana e a sua liberdade de consciência (ainda que seja difícil julgar se eles defendiam essa liberdade para todos ou somente para quem estivesse com a verdade objetiva), e limitaram dentro de uma área bem mais restrita do que antes os direitos e as competências do Estado.


O edito de Milão, de 313, reconheceu oficialmente esse princípio: 'decidimos [...] dar aos cristãos e a todos livre faculdade de seguir a religião preferida, e [...] julgamos que com princípio justo e muito razoável se devia decidir não negar essa liberdade a ninguém, quer siga a religião cristã, quer uma outra para ele melhor...'. O cristianismo foi o primeiro, portanto, a afirmar vitoriosamente a liberdade de consciência e a genuína laicidade do Estado, negando a este o direito de impor uma religião e de vincular as consciências, ou, em outros termos, foi o primeiro a introduzir o dualismo entre religião e política, entre Estado e Igreja.


Logo, porém, a tendência anterior se reafirmou. Durante a controvérsia ariana, os imperadores impuseram, mais de uma vez, a sua vontade em questões religiosas, obrigando aceitar fórmulas dogmáticas, ora num sentido, ora em outro.


O edito de Tessalônica, em 380, não concede mais liberdade de religião, mas impõe a todos professar o cristianismo, interpondo a autoridade civil em defesa da ortodoxia, representada pelo bispo de Roma, Dâmaso: '... todos os outros [...], dementes e insensatos, sofrendo a infâmia da heresia, [...] devem ser punidos não somente pela vingança divina, mas também pelo poder que a vontade celeste nos concedeu'. Em 385, o imperador Máximo condena à morte Prisciliano, fundador de uma seita herética difundida na Espanha: é a primeira sentença de morte para um caso de heresia, pronunciada por iniciativa da autoridade civil e não por iniciativa da Igreja, pois, pelo contrário, quase todo o episcopado contemporâneo concordou com Ambrósio em protestar contra essa medida até então inusitada e contrária à mansidão evangélica. A demorada luta contra os donatistas na África foi para Agostinho ocasião de um aprofundamento da questão: num primeiro momento, ele condenou o uso da força para defesa da verdade, enquanto mais tarde, diante dos massacres e das pilhagens dos donatistas, e sobretudo diante da obstinação dos hereges, admitiu a coerção, útil para afastar os obstáculos postos pela má vontade, que impediam a verdade de brilhar com toda sua luz.


Em 529, Justiniano ordenou a todos os súditos do imperador que se fizessem cristãos, sob pena de confisco dos bens e de perda dos direitos civis: somente na Ásia Menor cerca de 70.000 pagãos foram por isso batizados. Nem todos na era compartilhavam dessa mentalidade, a qual constituía uma perigosa volta para trás em relação às posições conquistadas em 313, e Teodorico, rei dos Ostrogodos, ariano, concedia aos judeus, nessa mesma era, a liberdade de culto com estas palavras: 'Religionem imperare non possumus, quia nemo cogitur ut credat invitus'. Em seu todo, o pensamento cristão dos primeiros séculos oscila entre dois pólos opostos: se os apologistas defendem a liberdade de consciência, sobretudo quando o poder imperial ameaça a Igreja, antes ou depois de 313, outros invocam o apoio do braço secular não somente para a administração temporal do Estado cristão, mas para a repressão da heresia. Aparece desde então a ambigüidade que a seguir será muitas vezes recriminada nos pensadores cristãos, ou seja, de querer a liberdade quando estão em minoria, de negá-la aos outros quando conquistam a maioria" (Giacomo Martina, História da Igreja - de Lutero a nossos dias, vol. II - A era do absolutismo, Edições Loyola, pp. 147-151).


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Glossário



Ariano - seguidor da doutrina de Ario (256 d.C. - 336 d. C.) que negava a plena divindade do Filho. Ario considerava o Filho "um 'deus', quer dizer, um ser dotado de divindade mas criado, que teve princípio e que não era da mesma substância do Pai" (César Vidal Manzanares, Dicionário de Patrística, Editora Santuário, p. 37).


Donatista - que pertence ao cisma de Donato, ocorrido no século IV da era cristã, na Igreja da África.


Maniqueísmo - "Movimento religioso de salvação fundado por Mani no século III d.C. Sua religiosidade era tipicamente gnóstica, insistindo em aspectos como o nascimento da alma num mundo puro e luminoso, sua queda na prisão do corpo e do mundo material e sua possibilidade de ascensão ao mundo original mediante a gnose" (César Vidal Manzanares, Dicionário de Patrística, Editora Santuário, p. 148).


Maniqueu - Seguidor do Maniqueísmo.

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