A Imaculada Conceiçao de Maria

 


D. Estevão Bettencourt, OSB


Revista “Pergunte e Responderemos”


Ano XLV – Julho 2004 – Edição 505


Páginas 16 a 27


Em Síntese: O artigo expõe o significado do dogma: Maria não herdou a carência da graça santificante que os primeiros pais perderam ao pecar; desde a sua conceição no seio de Santa Ana, ela foi portadora da graça – o que equivale a dizer que foi imaculada em sua conceição. Esta verdade foi controvertida pelos teólogos, pois julgavam que contradizia ao primado de Cristo Redentor de toda a humanidade. O impasse foi resolvido pela obra de Duns Scotus ( † 1308), segundo o qual Maria contraiu o débito do pecado original, como todas as criaturas humanas, mas não contraiu as conseqüências desse débito, porque lhe foram antecipadamente aplicados os méritos de Cristo. Esta fórmula permitiu que a devoção á Imaculada se propagasse amplamente entre os fieis a ponto de pedirem ao Papa Pio IX a definição do dogma – o que ocorreu em 08/12/1854.


Nestes meses em que a Igreja se prepara para celebrar os 150 anos da definição do dogma da Imaculada Conceição de Maria, está sendo propagado um panfleto polêmico: Os católicos teriam começado a crer oficialmente no dia 8/12/1854 que Maria foi concebida sem pecado, embora grandes teólogos da Idade Média tenham rejeitado essa proposição. Tal impresso desfigura a verdade e suscita dúvidas na mente dos leitores; considera também o dogma da Assunção Corporal de Maria, que é uma conseqüência da Imaculada Conceição. Se Maria não contraiu o pecado, não foi sujeita ao império da morte ou à decomposição do seu corpo.


Observação preliminar


A fé é a resposta do ser humano a Deus que nos fala. Tal resposta não é meramente individual, mas é comunitária. Isto quer dizer que só podemos compreender todas as implicações e conseqüências contidas na Palavra de Deus revelada, se nos colocamos dentro da comunidade de fé que é a Igreja. A Igreja, como comunhão ou como Corpo de Cristo (df. CL 1, 24; 1Cor 12, 12-17), não pode errar na fé nem se desviar da Palavra trazida por Cristo e comunicada aos Apóstolos (cf. Mt 28,18-20).


Note-se outrossim que a Revelação das verdades de fé foi completa em Jesus Cristo e nos Apóstolos, mas os cristãos não perceberam todo o seu alcance de uma só vez. Muitas coisas feitas por Jesus não foram relatadas o Evangelho (cf. Jo 20, 30s; 21,24s) de modo que a Tradição escrita (a Bíblia) e a Tradição oral no decorrer dos séculos se foram completando até a Igreja chegar à plena intuição das proposições reveladas por Jesus Cristo. É o que nos diz o Concilio Vaticano II;


“A Tradição oriunda dos Apóstolos progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo. Com efeito, cresce a compreensão tanto das coisas como das palavras transmitidas, seja pela contemplação e o estudo dos que crêem ... , seja pela intima compreensão que experimentam das coisas espirituais, seja pela pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma seguro da verdade.A Igreja portanto, no decorrer dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que as palavras de Deus nela cheguem à consumação” . (Constituição Dei Verbum n0 8).


Com efeito, a Revelação foi formulada em palavras humanas a homens limitados. Por isso a percepção de tudo quanto nela está contido vai se realizando na medida em que vão caindo os obstáculos das limitações humanas que dificultam a compreensão. Foi o que se deu com os dois artigos de fé concernentes à Imaculada Conceição e à Assunção.


A fé da Igreja reconheceu, desde os tempos dos Apóstolos, o papel muito especial desempenhado pela Virgem Santíssima na Redenção dos homens. A expressão “Cheia de Graça” (kecharitoméne) achava-se no Evangelho de Lucas desde o século I (cf. Lc 1, 28).Mas as circunstâncias históricas não permitiram perceber com precisão todo alcance desta proposição de fé. O povo cristão como comunidade de fé, foi intuindo esse alcance com clareza crescente e sobre a luz do Espírito Santo. Os teólogos procederem mais lentamente de modo que, enquanto o “senso dos fieis” afirmava a Imaculada Conceição, a teologia hesitou durante séculos, e mais vagarosamente chegou à formulação exata. Em 1854 o Papa Pio IX não fez senão assumir e pronunciar solenemente o que já estava na consciência dos simples fieis e dos teólogos ou mesmo na fé da Igreja dos Apóstolos. Escreve muito sabiamente o teólogo Karl Rahner:


“A Igreja e o magistério sabem que não transmitem uma revelação de Deus que acontece aqui e agora pela primeira vez; sabem que não são profetas, mas sim, uma instancia cuja função consiste unicamente em conservar, transmitir e interpretar a revelação de Deus ocorrida em Jesus Cristo num preciso momento do passado”. (Reflexiones em torno a la evolución del dogma, pág 13).


Assim expostos os princípios que esclarecem a história, consideramos as principais dificuldades que a teologia encontrou para formular o dogma da Imaculada Conceição.


I. IMACULADA CONCEIÇAO


1. Dificuldades para a compreensão


Embora os antigos estivessem conscientes de que Maria sempre viveu na graça de Deus, alguns entraves obscureciam a intuição das conseqüências desta premissa – Quais seriam?


1.1 – A santidade singular de Jesus


Nos primeiros séculos, o pensamento cristão se voltou para a absoluta santidade de Jesus, condição para que realizasse sua obra salvifica. A santidade e a impecabilidade de Jesus foram deduzidas da sua união hipostática: o eu de Cristo era o da segunda Pessoa da SS. Trindade; como tal, não podia pecar. Em Maria, porém, não houve a união hipostática.


1.2 – A Universalidade da Redenção


Não há graça nem salvação que não venham de Jesus Cristo. Todos são pecadores e foram remidos por Cristo. – Ora, se Maria foi isenta do pecado original, ela nada deve a Cristo; está fora do plano salvifico do Pai.


1.3 – O conceito de pecado original originado


Todos admitiam que o pecado dos primeiros pais acarretou a morte e graves conseqüências para o gênero humano, como nota S. Paulo em Romanos 5, 12-19; 7, 7-24. Todavia nem todos entendiam do mesmo modo essas conseqüências. Alguns teólogos julgavam ser a morte física sem mais; outros, a morte segunda ou a condenação definitiva; outros, a cobiça e as paixões desregradas; outros, a deterioração de cadáver no sepulcro; outros ainda, o aniquilamento total do individuo mediante a morte... Enquanto perduravam essas hesitações, era difícil definir de que “pecado original” Maria foi isenta.


1.4 – Um problema biológico


Os antigos e medievais julgavam que a semente vital masculina era o único principio ativo na conceição de um novo ser humano. O útero da mulher seria um recipiente passivo, uma “incubadora biológica” para o desenvolvimento da semente masculina. O pecado de Adão se transmitiria por hereditariedade biológica ou pela semente masculina - Este principio explicava porque Jesus fora isento do pecado original; não era filho de S. José, no plano biológico. Maria, porém, nasceria da união matrimonial de S. Joaquim e Sta. Ana; por conseguinte, não podia ter nascido sem o pecado original.


1.5 – O momento da infusão da alma humana


Era problema muito antigo a questão: quando começa a existir um ser humano? – Desde o momento da conceição ou da fecundação do óvulo pelo espermatozóide? Ou após certo intervalo (quarenta dias para os meninos, oitenta para as meninas) ? – Prevalecia na antiguidade e na Idade Média esta segunda teoria, em conseqüência, perguntava-se: como falar da conceição imaculada de Maria? Quem não tem alma humana (antes do 400 ou do 800 dia) não é sujeito de pecado e, por isto não se pode dizer que foi preservado do pecado original em sua conceição.


Foram estas as grandes dificuldades que obscureceram os horizontes dos teólogos que abordavam o tema da isenção de todo pecado em Maria. Vejamos agora as etapas de reflexão teológica sobre o assunto;


2 – A historia da reflexão teológica


1- O primeiro testemunho a notar é do Protoevangelho de Tiago (VI 1 e 2) que data de século II. Segundo este texto, um anjo teria dito a Santa Ana, estéril : “Conceberás e darás a luz; em toda a terra, se falará de sua descendência”.


Pouco depois S. Joaquim, que estava no deserto, recebeu ai a mensagem de outro anjo, que lhe disse: “Joaquim, O Senhor Deus ouviu tua oração. Desce daí, pois tua esposa Ana concebeu em seu seio”[1]


O pretérito significa que Ana concebeu milagrosamente sua filha Maria Santíssima. Esta noticia não é tida como fidedigna; mas exprime no século II a consciência, dos cristãos, de que a conceição de Maria foi diferente da dos demais seres humanos.


2- Até o século V não há testemunho explicito da imaculada conceição, mas os escritores da Igreja se comprazem em louvar Maria como santa e pura, exprimindo assim a fé do povo de Deus.


3. Passemos à época do Pelagianismo (séc. V). Esse afirmava a capacidade natural do ser humano para praticar o bem, sem necessitar da graça de Deus. Foi então que Pelágio († 422) escreveu a Santo Agostinho: “A piedade impõe que reconheçamos Maria sem pecado”. O S. Doutor aceitou a observação: quando se trata de pecado, Maria esta fora de cogitação. Todavia entendia isto de modo diverso do pelagianismo: Maria não teve pecado por graça de Deus, não por santidade da natureza humana como tal. Santo Agostinho não podia chegar à noção de imaculada conceição, porque julgava que o pecado dos primeiros pais se transmitia pela semente vital do homem; além do quê, a universalidade da Redenção lho impedia. Diante disto, o pelagiano Juliano de Eclano († 454) lhe objetava que Agostinho entregava Maria ao diabo. O S. Bispo de hipona insurgiu-se conta esta acusação, mas de maneira insuficiente, ao dizer: “Não entregamos Maria ao diabo em virtude do seu nascimento, pois este é redimido pela graça do renascer”(Opus Imperfectum adversus Julianum 4, 122).


Estas palavras de Santo Agostinho exerceram grande influencia na posteridade; pareciam negar a imaculada conceição. Além do quê, esta parecia professada pela literatura apócrifa e pelos pelegianos, de modo que a teologia subseqüente se mostrou pouco propensa a essa doutrina. Entrementes a piedade popular não deixava de professar a santidade de Maria desde a sua conceição.


4 – No século VII os orientais, no século VIII os ocidentais começaram a celebrar a festa litúrgica da Conceição de Maria (no Ocidente, a 8 de dezembro, nove meses antes da festa da Natividade de Maria celebrada a i de setembro).


Na Grã-Bretanha (séc.X), celebrava-se a Imaculada Conceição. Não se sabe bem qual o objeto preciso dessa festa, pois as dificuldades de ordem teológica e biológica já citadas obscureciam as noções. Como quer que seja, a piedade popular se manifestava sempre do mesmo modo, à revelia de teólogos como S. Bernardo († 1153) .


5 – Nos séculos XI e XII, S. Anselmo de Cantuária (1033-1109) deu um passo importante na trajetória da doutrina em foco. Ao passo que S.Agostinho considerava o pecado original das crianças como verdadeiro pecado, S. Anselmo mostrou que não pode ser pecado em sentido próprio, pois as crianças no seio materno não têm uso da razão. Por conseguinte, segundo esse monge, o pecado original (originado) consiste em uma ausência – ausência da graça santificante e dos dons originais que os primeiros pais perderam e não puderam transmitir; essa ausência não é castigo de Deus, mas é simplesmente a conseqüência da solidariedade que existe entre filhos e pais: os homens recebem dos primeiros pais a natureza humana despojada da graça, tal como os primeiros pais a tinham depois do pecado da desobediência.


Esta noção de pecado original originado tornou-se definitiva na teologia, e aplainou o caminho para se entender posteriormente a imaculada conceição de Maria.


6 – No século XII salientou-se o monge Edmero († 1134) com seu Tractatus de Conceptione Sanctae Marie. Verifica o contraste entre a devoção dos simples fieis e a ciência dos teólogos, que se opunham à festa da Conceição; ptou pela atitude do povo simples, a quem Deus revela seus mistérios, recorrendo `imagem da castanha. “Não podia Deus conceder a um corpo humano a graça de permanecer livre de toda pontada de espinhos, ainda que tenha sido concebido em meio aos aguilhoes do pecado? Se o quis, Ele o fez” (ob.cit.12). É de lembrar que a castanha sai com uma casca lisa de um invólucro cheio de espinhos.


Edmero muito se aproximou da solução do problema, mas não chegou à noção de “preservação”(Maria foi preservada do pecado original).


No século XIII S. Alberto Magno († 1280) e S. Tomás de Aquino († 1274) negaram a imaculada conceição, porque não viam como a conciliar com a universalidade da Redenção. Admitiam, porém, que Maria tenha sido purificada do pecado no seio materno, logo após a infusão da alma humana no embrião.


7 – Finalmente, nos século XIV interveio o franciscano João Duns Scotus († 1308). Este propôs o conceito de Redenção preventiva, em virtude da qual Maria foi preservada de todo pecado graças aos méritos de Jesus Cristo (e em previsão deste). Maria, como descendente dos primeiros pais, contraiu o débito do pecado original, mas foi dispensada das conseqüências desse débito. Duns Scotus podia assim afirmar que a imaculada conceição de Maria não constitui uma exceção à obra salvifica de Cristo, mas ao contrário, manifesta por excelência a eficácia da obra redentora de Cristo. Eis as palavras de Duns Scotus:


“Mais augusto beneficio é preservar do mal do que permitir a queda do mal, ainda que com a intenção de livrar do mal. Se Cristo mereceu, para muitas almas, a graça e a gloria na qualidade de Mediador e Salvador, por que não pôde ter merecido a inocência para alguma alma?” ( De Immaculata Conceptions B. Virginis Mariae, qu 1).


Scotus acrescenta pouco adiante: Deus não está condicionado pelo tempo; Ele pode ter aplicado antes de Cristo os méritos que Cristo adquiriria pela sua morte e ressurreição.


Concretamente, a posição assumida por Scotus quer dizer que Maria não nasceu sem a graça, mas teve-a desde o inicio de sua existência no seio materno; quanto aos dons paradisíacos, não se pode dizer o mesmo.


A explicação de Scotus foi decisiva. Os franciscanos a assumiram, contribuindo para que mais e mais fosse aceita pelos teólogos. Prova disto é o ocorrido no Concilio de Basiléia em 1439: O cônego João de Romiroy propôs que os padres conciliares definissem como verdade de fé a Imaculada Conceição de Maria; isto foi aceito, mas a decisão não logrou resultado, porque o Concilio deixara de estar em comunhão com a Santa Sé.


Houve ainda resistência da formula de Scotus por parte dos dominicanos, que eram discípulos de S. Tomás de Aquino; todavia mesmo entre estes registraram-se arautos da Imaculada Conceição.


O Concilio de Trento (1545-1561) não abordou diretamente o tema, mas declarou não ser sua intenção incluir a Virgem Imaculada dentro da universalidade do pecado original; cf Denziger-Schonmetzer, Enquiridio 1516 (792) ver Collantes. A Fé Católica (FC) 3071. Mandou a propósito observar as Constituições do Papa Sixto IV. Este mediante duas Bulas (1477 e 1482) , proibiu que os teólogos, ao discordarem entre si sobre a Imaculada Conceição, se acusassem mutuamente de hereges e adotou oficialmente em Roma a festa da Imaculada Conceição.


8 – No século XVII, o Santo Oficio (encarregado das questões de fé em Roma), sob a orientação dos dominicanos seguidores de S. Tomás de Aquino, desaprovava a expressão “Imaculada Conceição da Virgem” e preferia que se falasse da “Conceição da Virgem Imaculada”. Todavia em 1661, o Papa Alexandre VII, mediante a Bula Sollicitudo, declarou-se em favor da Imaculada Conceição e proibiu qualquer ataque a esta doutrina; a formulação do dogma em termos que de certo modo anteciparam os de Pio IX em 1854 – O Papa Clemente XI em 1708, estendeu a festa da Imaculada à Igreja inteira.


9 – Uma vez encerrada a controvérsia, O Papa Pio IX houve por bem mandar estudar a fundo o assunto em vista de uma eventual definição dogmática. Para tanto constituiu uma Comissão em 1848. em 1849 publicou a encíclica Ubi Primum, pela qual consultava os Bispos do mundo inteiro sobre dois pontos: a Igreja, esparsa pelo oribe, acreditava que a doutrina da Imaculada Conceição era revelada por Deus? – Era conveniente declarar essa proposição mediante solene pronunciamento do magistério ? – Dos 603 Bispos residenciais (que falavam como pastores diocesanos), 546 responderam positivamente às duas perguntas. Desta maneira era evidente a fé da Igreja[2].


A bula definitoria passou por oito redações. Finalmente, aos 8/12/1854 Pio IX proferiu a definição dogmática:


“Declaramos, pronunciamos e definimos que a doutrina que ensina a Bem-aventurada Virgem Maria, no primeiro instante de sua conceição, por singular graça e privilégio de Deus todo-poderoso e em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha da culpa original, é revelada por Deus e, por isto, deve ser professada com fé firme e constante por todos os fieis.”( Bula Inelfbalis Deus) .


Algumas reflexões se fazem oportunas:


1) O texto da Bula não diz se a doutrina em foco foi explicita ou implicitamente revelada. Depreende-se, porém dos textos bíblicos adiante citados que se trata da revelação implícita.


2) A razão aduzida em favor do privilegio de Maria são “os méritos de Cristo Salvador do gênero humano”. Isto quer dizer que Maria foi remida e pertence à dispensação da graça obtida por Cristo, muito mais rica do que a graça possuída pelos primeiros pais.


3) “Maria foi preservada de toda mancha de culpa original”. Note-se que nada foi dito a respeito da questão: Maria terá sido preservada também de todas as conseqüências do pecado de Adão, como são a dor e a morte? Se Jesus mesmo não quis ser isento destas, Maria também não o foi. Também nada foi dito sobre a concupiscência de Maria: Terá sido preservada das tendências desregradas que existem nos demais filhos de Adão em conseqüência do pecado? Embora muitas petições tenham sido levadas a Pio IX no sentido de uma tomada de posição a respeito, o Papa não quis pronunciar-se.


Resta porém, que Maria contraiu o débito do pecado, mas não o pecado mesmo. Esse débito não constitui mancha ou sombra alguma. Com efeito: se alguém impede outra pessoa de cair num pântano, essa pessoa não é manchada pelo fato de que teria caído se não fosse a intervenção alheia.


Examinemos agora:


3 – Fundamentação Bíblica


Antes de mais, observamos que não existe na S. escritura, algum texto que fale explicitamente da Imaculada Conceição de Maria.[3]


Apesar disto, a Igreja encontrou, no âmago das verdades reveladas, os fundamentos de tal doutrina. Eis os textos citados pela Bula de Pio IX.


1) Lc 1, 28: Maria foi kecharitoméne ( = foi e permaneceu repleta do favor divino), - O anjo não disse “Ave Maria”, mas “Alegra-te, kecharritoméne”, como se fosse o nome próprio da Virgem. É oportuno aproximar este texto do único texto do Novo Testamento em que ocorre o mesmo verbo. “Bendito seja Deus – que nos agraciou (echaritosan) no Amado” (Ef 1, 3.6). Maria vem a ser a primeira e a mais enriquecida de todas as criaturas. Esta plenitude de graça está ligada à vocação de Maria para ser Mãe do Filho de Deus feito homem. O pecado, que é sempre um Não dito a Deus, não cabe na existência de uma mulher que, por designo de Pai, é chamada a colaborar na vitória sobre o pecado.


2) Gn 3, 16 – O Senhor promete inimizade entre a mulher e a serpente. É certo que, tomando ao pé da letra, o texto se refere a única mulher do contexto, ou seja a Eva. Todavia a mulher que, por excelência, deu a luz à prole vencedora da serpente é Maria SS. - Em Maria se torna pleno o sentido de mulher ou de Eva (= Mãe dos vivos) de que fala Gn 3, 15. O texto também não fala explicitamente de Jesus Cristo, mas refere-se à perene inimizade que na história existe entre a linhagem dos bons e os que seguem o tentador. São Paulo, porém, descobriu no primeiro Adão o tipo ou a figura do segundo Adão (cf Rm 5, 14) e a tradição patristica descobriu em Eva o tipo ou a figura da segunda Eva (=Maria). Esta tinha de ser santa e alheia ao pecado para resgatar a primeira Eva, que se entregara à palavra do tentador e ao pecado; ela está em total inimizade com o sedutor e o pecado.


3) Lc 1, 31 – “Conceberás em teu seio”. Maria tornou-se, em grau vivo e pleno o que eram a tenda do Senhor no deserto e o Santo dos Santos no templo de Jerusalém. Maria veio a ser também, em termos excelentes, aquilo que era “a cidade de Jerusalém, o monte Sion do Santo de Israel; esta morada de Deus inanimada feita de pedras deveria ser pura para que o Senhor Deus nos tempos messiânicos nela habitasse”. (cf, Ez 37, 23.27) . – Pois bem; mais importante do que qualquer santuário inerte é o santuário vivo de Maria Santíssima. Em conseqüência, esta devia ser totalmente pura, isenta de qualquer mancha de pecado. Se o santuário de Maria não foi santo desde o inicio de sua existência, ele foi um santuário já possuído e habitado por outro Senhor (pelo Príncipe deste mundo; cf Jô 12,31) o Filho de Deus não teria podido reconhecer nele a santidade e a beleza próprias de sua casa; contentar-se-ia com o ser o “segundo” Senhor do seu próprio Templo.


4) O povo de Israel, esposa do Senhor Deus. Ao pé do monte Sinai o povo de Israel foi chamado a concluir uma Aliança com o Senhor, que o tirara do Egito. O dia em que isto se deu, foi considerado dia de núpcias entre Deus e seu povo. Os rabinos muito refletiam sobre tal acontecimento: afirmavam que o Senhor havia preparado Israel como esposa sem mancha para dizer o seu Sim à Lei de Deus. Eis algumas das estórias dos mestres de Israel que ilustram este modo de pensar:


Filon de Alexandria (†50 d.C) ensina que os judeus no Egito se haviam tornado réus de transgressões (cf. Ez 20, 7s; 23, 3.8.19-27). Por conseguinte, deviam ser purificados logo que saíssem da terra da escravidão; isto se faria gradativamente até sanar todas as chagas assim adquiridas. Ora esta purificação se deu no deserto, antes de chegarem ao Monte Sinai. Uma vez lavados de suas faltas, puderam acampar ao pé da santa montanha. Filon via o reflexo das mentes dos judeus renovadas ( cf. De Decálogo 10.45).


O rabino Simeão bem Jochai ( † 150 d.C) dizia que Israel, tendo saído do Egito, assemelhava-se ao filho de um rei que se recupera de grave doença. Não poderia ir a escola se não tivesse comido e bebido durante cerca de três meses. Por isto Deus lhe propiciou água da rocha, maná e codornizes (cf. Êxodo 16, 1-36; 17, 1-7). E no terceiro mês após a saída do Egito, o Senhor lhe entregou a Lei (c. Êxodo 19, 1; Cf Rabbath 2, 5.1). O mesmo rabino, segundo se conta, afirmava que ao pé do Sinai não havia algum israelita trôpego, surdo, mudo ou cego. A assembléia era semelhante a uma esposa sem mancha, à qual o Esposo exclamava: “Como és toda bela, amiga minha! Em ti não há mancha alguma”(ct 4,7; Cf. Ct Rabbath 4, 7-1).


Mais: O Talmud da Babilônia afirmava: “Quando a serpente foi ter com Eva, injetou-lhe a concupiscência; mas quando os israelitas acamparam ao pé do Sinai, cessou a incontinência deles (Shabbat 145 b). Naquele dia o mundo parecia ter retornado a inocência original. Israel era a mais bela entre as nações e mostrava-se solicito para com a Lei do Senhor (Me kilta do Rabino Ismael, Jitro, Bachodesh a Ex 20,2). Israel era a esposa que procedia do deserto toda pura, abraçada por seu amado”(Cf 8,5[LXX]).


Ora, os Padres da Igreja e os teólogos fizeram a transposição: o que a sinagoga dizia a respeito de Israel, eles o disseram a respeito de Maria. Com outras palavras: assim como Deus purificou o seu povo de toda culpa e fraqueza, para que estivesse em dignas condições de proferir o seu SIM às núpcias do Sinai, assim Ele preservou Maria de toda mancha, a fim de que o SIM da anunciação fosse mais belo e alegre. Sem dúvida, porém, a ausência de pecado não dispensou Maria de vier do claro-escuro da fé; ela teve que crer no mistério da Paixão e Morte de seu Divino Filho.


Outras figuras do A.T. poderiam ser citadas a partir das obras de teólogos antigos e modernos. Nenhuma delas constitui um argumento decisivo em prol da Imaculada Conceição de Maria. Revelam, porém, a fé da Igreja (hierarquia e simples fieis). O conjunto de explanações baseadas direta ou indiretamente no texto bíblico é eloqüente de modo suficiente para demonstrar que no bojo da Igreja como Mãe e Mestra estava latente a crença na Imaculada Conceição de Maria; este foi-se manifestando aos poucos, através de altos e baixos, até ser explicita e oficialmente proclamada por Pio IX em 1854.


4 – Reflexão Teológica


A graça da Imaculada Conceição não foi um mero ornamento cedido por Deus a Maria, mas há de ser considerada dentro do mistério da Redenção e da Igreja.


4.1 – No contexto da Redenção


É preciso contemplar cada verdade de fé no conjunto das demais verdades reveladas. Ora pode-se dizer que a Imaculada Conceição possibilitou a Maria uma total entrega à obra de seu Filho em favor dos homens. Sim; esta entrega total encontraria obstáculo no egoísmo do pecado. Maria, sendo cheia de graça (ou do amor que a preservava de se fechar em si mesma e em seus próprios interesses), pôde entregar-se plenamente ao plano redentor do Pai. Pôde abrir seu coração, em nome da humanidade pecadora, à salvação messiânica que o Pai oferecia ao gênero humano. Assim, a conceição imaculada de Maria foi à preparação, arquitetada pelo próprio Espírito Santo, para tornar possível o SIM generoso da Anunciação. É o que o Concilio do Vaticano II lembra:


“Maria filha de Adão, consentindo na palavra de Deus, foi feita Mãe de Jesus. E abraçando a vontade salvifica de Deus, com coração pleno, não retida por algum pecado, consagrou-se totalmente como Serva do Senhor à pessoa e obra de seu Filho, servindo com Ele e sob Ele, por graça de Deus Onipotente, ao mistério da Redenção. Por isso é com razão que os Santos Padres julgam que Deus não se serviu de Maria como de instrumento passivo, mas afirmam que Maria cooperou para a salvação humana com livre fé e obediência (Lumem Gentium n0 56)”.


4.2 – A graça de Maria, esperança da Igreja


A graça concedida a Maria foi concedida em favor de todos os homens. O Santo Padre João Paulo II desenvolve esta reflexão: Maria está no centro da inimizade com a serpente antiga, em solidariedade com todos os seus irmãos:


“Maria fica sendo ... o sinal imutável e inviolável da escolha feita por Deus ... Esta escolha é mais forte do que toda a experiência do mal e do pecado...Na historia da humanidade Maria continua a ser um sinal de esperança segura ( Lumem Gentium 11).


Mais: a graça recebida apor Maria sem mérito próprio da Virgem Santíssima nos diz que toda a historia da humanidade está sob o signo não da desgraça e da condenação, mas da misericórdia, mais forte do que o pecado. Se nós caímos sobe o domínio do pecado por fragilidade nossa, não estamos sujeitos, sem remédio, a tal domínio. Somos as criaturas que Deus desde todo o sempre ama, e que Ele procurou recuperar na plenitude dos tempos, antes mesmo que alguém o pudesse merecer. O cristão é, portanto, otimista e esperançoso quanto ao sentido da historia. Verdade é que Maria foi preservada do pecado, ao passo que nós fomos perdoados (ou recebemos o perdão). Todavia, no fundo, trata-se da mesma graça divina: é a Redenção realizada por Cristo. Quando pedimos no Pai Nosso: “Não nos deixeis cair em tentação”, rogamos que Ele nos preserve como preservou Maria.


Assim o dogma da Imaculada Conceição tem um significado profundo para a cosmovisão do cristão. Infelizmente, o minimalismo teológico estreita os horizontes e não permite ver o alcance das grandes verdades da fé. É o que se dá com várias denominações protestantes, que consideram a maternidade de Maria como um fato meramente biológico e não levam em conta o seu próprio sentido. Não se pode deixar de ponderar a Maternidade Divina de Maria e tudo a que ela se prende, como um fato salvífico. É nesse contexto de salvação do gênero humano que está radicado o dogma da Imaculada Conceição.


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[1] Verdade é que alguns manuscritos têm: “Tua esposa ... conceberá”, o que talvez não seja a forma originária (N.d.R.).


[2] Notemos que não se tratava de uma “votação democrática” pois esta não constitui critério em matéria de teologia. Mas tratava-se de uma consulta para saber se a Igreja, como depositária da doutrina revelada, sob a guia do Espírito Santo, considerava como artigo de fé a doutrina da Imaculada. – Neste caso, não há votação, mas expressão dos pastores, que traduzem a fé de suas comunidades.


[3] Não se pode tomar esse fato como argumento para afirmar que a imaculada conceição não é uma verdade revelada. Sabemos que foi aos pouco crescendo na Igreja a compreensão mais profunda dos dados implícitos na Escritura: é o que se chama o “desdobramento homogêneo do dogma”. Nega-lo seria emprobecer a Revelação Divina; seria reduzir-se à S. Escritura apenas, como fazem os protestantes, dos quais cada um julga poder interpretar a Escritura segundo “o livre exame”.

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