Tenho profundo respeito por todas as convicções religiosas, ideológicas, filosóficas e outras que dão sentido à vida das pessoas. Creio ser esta a postura de quase todos os católicos de maneira geral.
Muitos nos criticam por estarmos por demais vinculados a doutrinas. Mas, o curioso é que todos têm e defendem suas doutrinas, tenham elas o nome que tiverem. Não é justo que sejamos os únicos a não poder tê-las, expô-las ou justificá-las.
De maneira geral, a Igreja Católica e as igrejas nacionais européias oriundas da reforma protestante do século XVI, também presentes em todas as partes do mundo, são concordes no fundamental mas respeitam, e até mesmo alimentam como riquezas complementares, suas características no campo da organização, da disciplina,
da liturgia, da moral. Por isto, não disputam fiéis entre si, até porque já têm seus espaços definidos e são comunidades de tradições pelo menos centenárias. As grandes universidades européias que conservam as tradicionais e famosas escolas de teologia na Holanda, Bélgica, Áustria, Alemanha, e nos demais países europeus
incluindo os EE.UU. e Canadá, já não mais se distinguem, praticamente, como católicas ou protestantes, a não ser, em alguns casos, pelo nome. O grande número de leigos cursando teologia ampliou o antigo objetivo tradicional de preparar candidatos aos ministérios pastorais. Isto significou um grande bem para as igrejas e uma enorme abertura ecumênica. O corpo doutrinal, base para a teologia sistemática, é consensual no que se refere à doutrina da unidade e da trindade de Deus, da criação, da encarnação, da identidade e missão de Jesus, o Verbo
humanado, da justificação, da ação santificadora do Espírito Santo que congrega os redimidos na Igreja, e da vida plena e definitiva. Portanto o consenso vai da protologia à escatologia. Mesmo em terras brasileiras onde predominam, nas escolas de teologia, os candidatos ao ministério presbiteral, discutem-se as
grandes sínteses de teólogos como Karl Barth, Paul Tillich, Rudolf Bultmann, Jurgen Moltmann, Lossky e tantos outros, protestantes e ortodoxos, ao lado de Karl Rahner, Henri de Lubac, Von Balthasar, E. Schillebeeckx e outros, católicos. Há alunos, menos avisados, que concluem seu curso de teologia sem distinguir uns dos outros. Quanto aos nossos atuais teólogos latino-americanos, é oportuno registrar a verdadeira e sincera fraternidade existente entre todos das várias denominações expressa nos encontros da SOTER, uma entidade que congrega teólogos, professores de teologia e ciências da religião de toda a América Latina. Este grupo seleto de cristãos já eliminou os traços e as linhas demarcatórias de divisão entre si, em absoluto respeito às diferenças teologicamente secundárias, mas sociologicamente importantes. É um maravilhoso espetáculo de antecipação do sonho de Jesus: um só rebanho, um só pastor.
Já no terceiro mundo, e em parcela do cristianismo norte-americano, solo fértil para o surgimento de novas denominações, a situação é diferente. Na ânsia de demarcar terrenos, conquistar espaços e novos adeptos que só poderão vir das igrejas já estabelecidas, as novas denominações se esforçam para mostrar as diferenças e não lhes interessa, em hipótese alguma, a comum unidade. É-lhes peculiar a intolerância e uma luta inescrupulosa por poder político, econômico e midiático, aliadas a um grande fervor religioso, imensa capacidade de mobilização,
moral rígida, e incansável apostolado proselitista, ligado a promessas de soluções milagrosas para os grandes dramas que afetam as populações miseráveis dos países do terceiro mundo. Isto explica o seu grande sucesso e ampla penetração, não exclusivamente, nas camadas populares. Ainda que partilhem com as igrejas estabelecidas
os princípios fundamentais da grande narrativa cristã, insistem em afirmar, de maneira agressiva e excludente, as diferenças e as supostas heresias da Igreja Católica: fundamentalmente, a idolatria contida no culto aos santos e a Maria, Mãe de Jesus, que, para eles, significa eliminar a centralidade devida a Cristo e sua exclusiva mediação salvífica. O catolicismo popular, pouco eclesial, ingênuo e eivado de práticas consideradas supersticiosas, do qual se originaram quase todos os crentes neoconvertidos, colabora para esta caricatura da Igreja Católica. Mas também deve se levar em conta a frágil formação teológica dos "crentes" cujo notório antiintelectualismo os impulsiona a rejeitar a crítica histórica e redacional dos textos sagrados.
Com relação ao espiritismo e congêneres, a situação é bem diferente. Apesar de serem, em geral, menos agressivos, no campo teórico e doutrinal eles se diferenciam enormemente dos princípios fundantes do cristianismo. Uma distância não percebida, e até mesma recusada, pelo catolicismo popular à margem das comunidades cristãs confessantes. Ao contrário da coincidência básica existente entre as várias
igrejas cristãs, o espiritismo tem uma visão que lhe é própria de Deus, da criação, da salvação, do ser humano e do seu agir, do bem e do mal, do próprio Jesus, e principalmente das suas fontes revelacionais, em nada coincidente com a visão cristã. Não está em discussão o direito do espiritismo à sua identidade. A questão surge quando, consciente ou inconscientemente, se pretende misturar, fundir ou confundir visões díspares. A utilização dos mesmos textos bíblicos, que foram produzidos no seio de uma igreja cristã primitiva que pode ser identificada
nas comunidades cristãs atuais, para fundamentar doutrinas espíritas, é descabida. O espiritismo está em outro registro cultural. Por isto alguns de seus pretensos teóricos fazem incursões inadequadas nas ciências teológicas sem acesso à gramática teológica que não têm, por outro lado, nenhuma obrigação de dominar. O que sobra
é amadorismo intelectual e desconhecimento das regras básicas da hermenêutica teológica, numa visão personalista e mal fundamentada com aparência de verdade. Uma espécie piorada de neo-sofistas.
Garantir a identidade é condição imprescindível ao diálogo. Sem a afirmação clara das identidades as relações multiculturais tendem a ser truculentas oscilando entre a agressão e a rendição. Posso entender a necessidade dos "crentes" de quererem ganhar poder e espaço, mas não posso concordar que o façam em desacordo
com os valores universais de convivência humana como o respeito à liberdade de crença. Por outro lado não é correto misturar registros antagônicos. Desta forma, por exemplo, "santo" é uma terminologia católica, de origem bíblica, que identifica todos os que, no seio da comunidade cristã, vivem na graça, e, alguns pela prática heróica das virtudes, depois que morrem são postos como modelo de vida cristã e de comunhão com a Igreja para todos os outros fiéis. Estes nunca se reconheceram e, de fato, não foram e nem poderiam ser identificados
com outras crenças e outros projetos de vida fora da sua comunidade católica. Reencarnação, comunicação com mortos, psicografias, mundos espirituais, espíritos vagantes, outras dimensões, sessões mediúnicas, carma, elementos identificadores do espiritismo; cartomantes, energias cósmicas, cristais, pirâmides, almas penadas,
esoterismos em geral, elementos identificadores de um misticismo mágico passam absolutamente ao largo da fé cristã-católica e lhe são radicalmente incompatíveis. Qualquer afirmação em contrário ou é má-fé ou é ignorância. No entanto, aos que crêem deste jeito, permanece-lhes o sagrado direito de crer, de expor e de defender suas crenças.
Padre José Cândido da Silva
Pároco da Igreja São Sebastião do Barro Preto
Belo Horizonte/MG
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