A importância do celibato sacerdotal


 

A importância do celibato sacerdotal


Autor: Cardeal Cláudio Hummes - Prefeito da Congregação para o Clero


Entrando no XL aniversário da publicação da Encíclica «Sacerdotalis caelibatus» de Sua Santidade Paulo VI, a Congregação para o Clero considera oportuno recordar o ensinamento magisterial deste importante documento pontifício.


Verdadeiramente, o celibato sacerdotal é um dom precioso de Cristo à sua Igreja, um dom que é necessário meditar e revigorar sempre de novo, sobretudo no mundo de hoje profundamente secularizado.


De fato os estudiosos indicam que as origens do celibato sacerdotal nos fazem remontar aos tempos apostólicos. Ignace de la Potterie escreve: «Há uma geral sintonia entre os estudiosos para dizer que a obrigação do celibato ou pelo menos da continência se tornou lei canônica desde o século IV. [...]. Mas é importante observar que os legisladores do IV ou V século afirmavam que esta disposição canônica se baseava numa tradição apostólica. Dizia por exemplo o Concílio de Cartagena (de 390): “Convém que aqueles que estão ao serviço dos mistérios divinos sejam perfeitamente continentes (continentes esse in omnibus) para que aquilo que os apóstolos ensinaram e a própria antiguidade manteve, o observemos nós também”»(1). No mesmo sentido, A. M. Stickler fala de assuntos bíblicos em favor do celibato de inspiração apostólica(2).


Desenvolvimento histórico


O Magistério solene da Igreja recorda ininterruptamente as disposições sobre o celibato eclesiástico. O Sínodo de Elvira (300-303?) no Cânone 27 prescreve: «Um Bispo, como qualquer outro clérigo, tenha consigo unicamente ou uma irmã ou uma virgem consagrada; estabeleceu-se que não deva absolutamente ter uma estranha»; e no cânone 33: «Decidiu-se amplamente a seguinte proibição aos Bispos, aos presbíteros e aos diáconos, assim como a todos os clérigos que exercem um ministério: abstenham-se das suas esposas e não gerem filhos; quem o fizer deverá ser afastado do estado clerical»(3).


Também o Papa Cirício (384-399), na carta ao Bispo Imério de Tarragona de 10 de Fevereiro de 385, afirma: «O Senhor Jesus [...] quis que a figura da Igreja, da qual é o esposo, emane o esplendor da castidade [...] pela lei indissolúvel destas disposições todos nós sacerdotes estamos ligados [...] para que desde o dia da nossa ordenação entreguemos quer os nossos corações quer os nossos corpos à sobriedade e à castidade, para agradar ao Senhor nosso Deus nos sacrifícios que oferecemos todos os dias»(4).


No Concílio Ecumênico Lateranense I de 1123, no Cânone 3, lemos: «Proibimos do modo mais absoluto aos sacerdotes, diáconos, subdiáconos, de viver com as concubinas ou com as esposas e de coabitar com mulheres diversas das que o Concílio de Nicéia (325) permitiu que se viva»(5). Assim também na sessão XXIV do Concílio de Trento, no Cânone 9, se recorda a absoluta impossibilidade de contrair matrimônio aos clérigos constituídos nas ordens sagradas ou aos religiosos que fizeram profissão solene de castidade; com ela a nulidade do próprio matrimônio, juntamente com o dever de pedir a Deus o dom da castidade com intenção reta»(6).


Em tempos mais recentes o Concílio Vaticano II recordou na declaração Presbyterorum ordinis (7), o vínculo estreito entre celibato e Reino de Deus, vendo no primeiro um sinal que anuncia de modo radioso o segundo, um início de vida nova, a cujo serviço o ministro da Igreja é consagrado.


Com a encíclica de 24 de Junho de 1967, Paulo VI manteve uma promessa feita aos Padres conciliares dois anos antes. Ele examina as objeções apresentadas em relação à disciplina do celibato e, ressaltando os seus fundamentos cristológicos e fazendo apelo à história e ao que os documentos dos primeiros séculos nos ensinam a propósito das origens do celibato-continência, confirma plenamente o seu valor.


O Sínodo dos Bispos de 1971, quer no esquema pré-sinodal Mysterium presbyterorum (15 de Fevereiro), quer no documento final Ultimis temporibus (30 de Novembro), afirma a necessidade de conservar o celibato na Igreja latina, iluminando o seu fundamento, a convergência dos motivos e as condições que o favorecem(8).


A nova codificação da Igreja latina de 1983 reafirma a tradição de sempre: «Os clérigos são obrigados a observar a continência perfeita e perpétua pelo Reino dos céus, portanto são vinculados ao celibato, que é um dom particular de Deus mediante o qual os ministros sagrados podem aderir mais facilmente a Cristo com coração indiviso e são tornados capazes de se dedicarem mais livremente ao serviço de Deus e dos homens»(9).


Na mesma linha se move o Sínodo de 1990, do qual surgiu a exortação apostólica do Servo de Deus o Papa João Paulo II Pastores dabo vobis, na qual o Pontífice apresenta o celibato como uma exigência de radicalismo evangélico, que favorece de modo especial o estilo de vida esponsal e que brota da configuração do sacerdote com Jesus Cristo, através do Sacramento da Ordem(10).


O Catecismo da Igreja Católica, publicado em 1992 e que recolhe os primeiros frutos do grande acontecimento do Concílio Ecumênico Vaticano II, reafirma a mesma doutrina: «Todos os ministros ordenados na Igreja Latina, à exceção dos diáconos permanentes, são normalmente escolhidos entre os homens crentes que vivem celibatários e têm vontade de guardar o celibato “por amor do Reino dos Céus”»(11).


No mesmo recentíssimo Sínodo sobre a Eucaristia, segundo a publicação provisória, oficiosa e não oficial das suas proposições finais, concedida pelo Papa Bento XVI, na proposição n. 11, sobre a escassez de clero em algumas partes do mundo e sobre a «fome eucarística» do povo de Deus, reconhece-se «a importância do dom inestimável do celibato eclesiástico na prática da Igreja latina». Com referência ao Magistério, particularmente ao Concílio Ecumênico Vaticano II e aos últimos pontífices, os padres pediram que fossem ilustradas adequadamente as razões da relação entre celibato e ordenação sacerdotal, no pleno respeito da tradição das Igrejas Orientais. Ouve quem fizesse referência à questão dos viri probati, mas a hipótese foi avaliada como um caminho que não se deve percorrer.


Só no passado dia 16 de Novembro de 2006 o Papa Bento XVI presidiu no Palácio Apostólico a uma das periódicas reuniões dos Chefes de Congregações da Cúria Romana. Naquela sede foi reafirmado o valor da opção do celibato sacerdotal segundo a ininterrupta tradição católica e foi reafirmada a exigência de uma sólida formação humana e cristã quer para os seminaristas quer para os sacerdotes já ordenados.


As Razões do Sagrado Celibato


Na Encíclica «Sacerdotalis caelibatus», Paulo VI apresenta inicialmente a situação em que se encontrava naquele tempo a questão do celibato sacerdotal, quer sob o ponto de vista do seu apreço quer das objeções. As suas primeiras palavras são determinantes e ainda atuais: «O celibato sacerdotal, que a Igreja conserva há séculos como gema resplandecente, mantém todo o seu valor também no nosso tempo, caracterizado por uma profunda transformação de mentalidade e de estruturas»(12). Paulo VI revela o que ele mesmo meditou, interrogando-se sobre o assunto para poder responder às objeções, e conclui: «Portanto, nós consideramos que a lei em vigor do sagrado celibato ainda hoje deva, e firmemente, acompanhar o ministério eclesiástico: ela deve amparar o ministro na sua opção exclusiva, perene e total do único e sumo amor de Cristo e da sua Igreja, e deve qualificar o seu estado de vida, quer na comunidade dos fiéis, quer na profana»(13).


«Sem dúvida», acrescenta o Papa, «como declarou o sagrado Concílio ecumênico Vaticano II, a virgindade não é exigida pela própria natureza do sacerdócio, como resulta da prática da Igreja primitiva e da tradição das Igrejas Orientais (Presb. Ord., 16), mas o mesmo sagrado Colégio não duvidou em confirmar solenemente a lei vigente, antiga e sagrada, do celibato sacerdotal, expondo também os motivos que a justificam para quantos sabem apreciar em espírito de fé e com íntimo e generoso fervor os dons divinos»(14).


É verdade. O celibato é um dom que Cristo oferece a quantos são chamados ao sacerdócio. Este dom deve ser acolhido com amor, alegria e gratidão. Assim, será fonte de felicidade e de santidade.


As razões do celibato sagrado, expostas por Paulo VI, são três: o seu significado cristológico, o significado eclesiológico e o escatológico.


Começamos com o significado cristológico. Cristo é novidade. Realiza uma nova criação. O seu sacerdócio é novo. Ele renova todas as coisas. Jesus, o Filho unigênito do Pai, enviado ao mundo, «fez-se homem para que a humanidade, sujeita ao pecado e à morte, fosse regenerada e, mediante um novo nascimento, entrasse no Reino dos céus. Totalmente consagrado à vontade do Pai, Jesus cumpriu mediante o seu mistério pascal, esta nova criação, introduzindo no tempo e no mundo uma forma nova, sublime, divina de vida que transforma a própria condição terrena da humanidade»(15).


O próprio matrimônio natural, abençoado por Deus desde a criação, mas ferido pelo pecado, foi renovado por Cristo, que «o elevou à dignidade de sacramento e de sinal misterioso da sua união com a Igreja. [...] Mas Cristo, mediador de um testamento mais excelente (cf. Hb 8, 6), abriu também um novo caminho, no qual a criatura humana, aderindo total e diretamente ao Senhor, preocupada unicamente com Ele e com as Suas coisas, manifesta de maneira clara e completa a realidade profundamente inovadora do Novo Testamento»(16).


Esta novidade, este novo caminho, é a vida na virgindade, que o próprio Jesus viveu, em harmonia com o seu ser mediador entre o céu e a terra, entre o Pai e o gênero humano. «Em plena harmonia com esta missão, Cristo permaneceu toda a vida no estado de virgindade, que significa a sua total dedicação ao serviço de Deus e dos homens»(17). Serviço de Deus e dos homens significa amor total e sem reservas, que marcou o viver de Jesus entre nós. Virgindade por amor do Reino de Deus!


Mas, Cristo, chamando os seus sacerdotes a serem ministros da salvação, isto é, da nova criação, chama-os a ser e a viver em novidade de vida, unidos e semelhantes a Ele na forma mais perfeita possível. Disto deriva o dom do sagrado celibato, como configuração mais plena com o Senhor Jesus e profecia da nova criação. Os seus apóstolos foram por Ele chamados «amigos». Chamou-os a segui-lo muito de perto, em tudo, até à cruz. E a cruz os levará à ressurreição, à nova criação realizada. Por isso sabemos que segui-lo com fidelidade na virgindade, que inclui uma imolação, nos conduzirá à felicidade. Deus não chama ninguém, à infelicidade mas à felicidade. A felicidade, contudo, conjuga-se sempre com a fidelidade. Disse-o saudoso Papa João Paulo II aos esposos reunidos com ele no II Encontro Mundial das Famílias, no Rio de Janeiro.


Assim emerge o tema do significado escatológico do celibato, enquanto sinal e profecia da nova criação, ou seja, do Reino definitivo de Deus na Parusia, quando todos ressuscitarem da morte.


«Deste Reino, a Igreja constitui na terra o germe e o início», como nos ensina o Concílio Vaticano II.18 Nestes «últimos tempos», a virgindade, vivida por amor do Reino de Deus, constitui um sinal particular, porque o Senhor anunciou que «com a ressurreição [...] não se tem nem esposa nem marido, mas somos como anjos de Deus no céu»(19).


Num mundo como o nosso, mundo do espetáculo e dos prazeres fáceis, profundamente fascinado pelas coisas terrenas, sobretudo pelo progresso das ciências e das tecnologias – recordamos as ciências biológicas e as biotecnologias – o anúncio de um além, ou seja, de um mundo futuro, de uma parusia, como acontecimento definitivo de uma nova criação, é determinante e ao mesmo tempo liberta da ambigüidade das aporias, das vozearias, dos sofrimentos e contradições, em relação aos verdadeiros bens e aos novos conhecimentos profundos que o progresso humano atual traz consigo.


Finalmente, o significado eclesiológico do celibato conduz-nos mais diretamente à atividade pastoral do sacerdote.


Afirma a Encíclica: «A virgindade consagrada dos ministros sagrados manifesta de fato o amor virginal de Cristo pela sua Igreja e a fecundidade virginal e sobrenatural desta união(20). Semelhante a Cristo e em Cristo, o sacerdote desposa-se misticamente com a Igreja, ama a Igreja com amor exclusivo. Assim, dedicando-se totalmente às coisas de Cristo e do seu Corpo Místico, o sacerdote goza de uma ampla liberdade espiritual para estar ao serviço amoroso e total de todos os homens, sem distinção.


«Assim o sacerdote, na morte quotidiana de si mesmo, na renúncia ao amor legítimo de uma própria família por amor de Cristo e do seu Reino, encontrará a glória de uma vida em Cristo pleníssima e fecunda, porque como Ele e n’Ele ama e se entrega a todos os filhos de Deus»(21).


A Encíclica acrescenta ainda como o celibato faça crescer a idoneidade do sacerdote à escuta da Palavra de Deus e à oração, assim como o habilita para colocar no altar totalmente a própria vida, que traz os sinais do sacrifício(22).


Valor da castidade e do celibato


O celibato, antes de ser uma disposição canônica, é um dom de Deus à sua Igreja, é uma questão ligada à dedicação total ao Senhor. Mesmo na distinção entre a disciplina celibatária dos seculares e a experiência religiosa da consagração e da emissão dos votos, está fora de questão que não há outra interpretação nem justificação possível do celibato eclesiástico fora da dedicação total ao Senhor, numa relação que seja, também sob o ponto de vista aditivo, exclusiva; isto pressupõe uma forte relação pessoal e comunitária com Cristo, que transforma os corações dos Seus discípulos.


A opção celibatária da Igreja católica de rito latino desenvolveu-se, desde os tempos apostólicos, precisamente no seguimento da relação do sacerdote com o seu Senhor, tendo como grande ícone o «Amas-me mais do que estes?»(23) que Jesus Ressuscitado dirige a Pedro.


As razões cristológicas, eclesiológicas e escatológicas do celibato, todas radicadas na comunhão especial com Cristo à qual o sacerdote está chamado, são portanto declináveis em diversos modos segundo quanto é afirmado expressamente pela Sacerdotalis caelibatus.


Antes de tudo o celibato é «sinal e estímulo da caridade pastoral»(24). Ela é o critério supremo para julgar a vida cristã em todos os seus aspectos; o celibato é um caminho de amor, mesmo se o próprio Jesus, como refere o Evangelho segundo Mateus, afirma que nem todos podem compreender esta realidade: «Nem todos compreendem esta linguagem, mas apenas aqueles a quem isso é dado»(25).


Esta caridade declina-se no clássico dúplice aspecto de amor a Deus e aos irmãos: «Com a virgindade ou o celibato observado pelo Reino dos céus os presbíteros consagram-se a Deus com um novo e excelso título, aderem mais facilmente a Ele com coração indiviso»(26). São Paulo, num trecho ao qual aqui se alude, apresenta o celibato e a virgindade como «caminho para agradar a Deus» sem divisões(27): por outras palavras, um «caminho do amor» que certamente pressupõe uma vocação particular, e neste sentido é um carisma, e que é em si mesma excelente quer para o cristão quer para o sacerdote.


O amor radical para com Deus torna-se através da caridade pastoral amor para com os irmãos. Na Presbyterorum ordinis lemos que os sacerdotes «se dedicam mais livremente a ele e para ele ao serviço de Deus e dos homens, servem com maior eficiência o seu Reino e a sua obra de regeneração divina e deste modo se dispõem melhor para receber uma paternidade mais ampla em Cristo»(28). A experiência comum confirma como seja mais simples abrir o coração aos irmãos plenamente e sem reservas para quem não está ligado a outros afetos, por muito legítimos ou santos que sejam, além do de Cristo.


O celibato é o exemplo que o próprio Cristo nos deixou. Ele quis ser celibatário. Explica ainda a Encíclica: «Cristo permaneceu por toda a sua vida no estado de virgindade, o que significa a sua total dedicação ao serviço de Deus e dos homens. Esta profunda relação entre a virgindade e o sacerdócio de Cristo reflete-se em quantos têm o privilégio de participar da dignidade e da missão do Mediador e Sacerdote eterno, e esta participação será tanto mais perfeita, quanto mais o sagrado ministério estiver livre de vínculos de carne e de sangue».29


A existência histórica de Jesus Cristo é o sinal mais evidente de que a castidade voluntariamente assumida por Deus é uma vocação solidamente fundada quer a nível cristão quer da comum racionalidade humana.


Se a vida cristã comum não pode ser legitimamente considerada tal excluindo a dimensão da Cruz, tanto mais a existência sacerdotal seria ininteligível prescindindo da óptica do Crucificado. O sofrimento, por vezes a fadiga e o tédio, até o impasse, têm o seu lugar na existência de um sacerdote, que, contudo, não é por eles definitivamente determinada. Escolhendo seguir Cristo, desde o primeiro momento, comprometemo-nos a segui-lo até ao Calvário, recordando-nos que é a assunção da própria cruz o elemento que qualifica a radicalidade do seguimento.


Por fim, como foi dito, o celibato é um sinal escatológico. Na Igreja, está presente desde agora o Reino futuro: ela não só o anuncia, mas realiza-o sacramentalmente contribuindo para a «criação nova», enquanto a Sua glória não se manifestar plenamente.


Enquanto o sacramento do matrimônio enraíza a Igreja no presente, imergindo-a totalmente na ordem terrena, a qual se torna ela mesma possível lugar de santificação, a virgindade remete imediatamente para o futuro, para aquela íntegra perfeição da criação que será levada a pleno cumprimento somente no final dos tempos.


Meios para ser fiéis ao celibato


A sabedoria bimilenária da Igreja, perita em humanidade, tem indicado constantemente ao longo dos tempos alguns elementos fundamentais e irrenunciáveis para favorecer a fidelidade dos seus filhos ao carisma sobrenatural do celibato.


Entre eles, sobressai, também no recente magistério, a importância da formação espiritual do sacerdote chamado a ser «testemunha do Absoluto». Afirma a Pastores dabo vobis: «Formar-se para o sacerdócio significa habituar-se a dar uma resposta pessoal à questão fundamental de Cristo: “Tu amas-me?”. A resposta, para o futuro sacerdote, não pode ser senão o dom total da sua própria vida»(30). Neste sentido são absolutamente fundamentais os anos da formação quer a remota, vivida em família, quer sobretudo a próxima, nos anos do Seminário, verdadeira escola de amor, na qual, como a comunidade apostólica, os jovens seminaristas se estreitam à volta de Jesus na expectativa do dom do Espírito para a missão. «A relação do sacerdote com Jesus Cristo e, n’Ele, com a Sua Igreja situa-se no próprio ser do presbítero, em virtude da sua consagração/unção sacramental, e no seu agir, isto é, na sua missão ou ministério»(31). O sacerdócio mais não é do que um «viver intimamente unidos a Ele»(32), numa relação de íntima comunhão que é descrita «com o matiz da amizade»(33). A vida sacerdotal é, no fundo, aquela forma de existência que seria inconcebível se Cristo não existisse. Precisamente nisto consiste a força do Seu testemunho: a virgindade pelo Reino de Deus é um dado real, existe, porque Cristo, que a torna possível, existe.


O amor ao Senhor é autêntico quando tende para ser total: enamorar-se de Cristo significa conhecê-lo profundamente, freqüentar a Sua pessoa, identificar-se e assimilar o Seu pensamento e, finalmente, acolher sem reservas as exigências radicais do Evangelho. Só podemos ser testemunhas de Deus se fizermos uma experiência profunda de Cristo; da relação com o Senhor depende toda a existência sacerdotal, a qualidade da sua experiência de martyria, do seu testemunho.


Testemunha do Absoluto é unicamente aquele que tem Jesus por amigo e Senhor, que goza da Sua comunhão. Cristo não é apenas objeto de reflexão, tese teológica ou recordação histórica; Ele é o Senhor presente, é vivo porque Ressuscitado e nós somos vivos só na medida em que participamos cada vez mais profundamente da Sua vida. Sobre esta fé explícita funda-se toda e existência sacerdotal. Por isso a Encíclica diz: «O sacerdote aplique-se antes de tudo a cultivar com todo o amor que a graça lhe inspira a sua intimidade com Cristo, aprofundando o seu mistério inexorável e beatificante; adquire um sentido cada vez mais profundo do mistério da Igreja, fora do qual o seu estado de vida correria o risco de parecer inconsistente e incongruente»(34).


Além da formação e do amor a Cristo, elemento essencial para preservar o celibato é a paixão pelo Reino de Deus, que significa a capacidade de trabalhar ativamente e sem se poupar para que Cristo seja conhecido, amado e seguido. Como o camponês que, tendo encontrado a pérola preciosa, vende tudo para comprar o campo, assim quem encontra Cristo e emprega toda a sua existência com e para Ele, não pode não viver trabalhando para que outros O possam encontrar.


Sem esta perspectiva, qualquer «impulso missionário» destina-se à falência, as metodologias transformam-se em técnicas de conservação de um aparato, e até as orações poderão tornar-se técnicas de meditação e de contacto com o sagrado, nas quais se dissolvem quer o eu humano quer o Tu de Deus.


Uma ocupação fundamental e necessária do sacerdote, como exigência e tarefa, é a oração que, ao contrário, é insubstituível na vida cristã e por conseguinte na sacerdotal. A ela deve ser reservada uma atenção particular: a celebração eucarística, o Ofício divino, a confissão freqüente, a relação afetuosa com Maria Santíssima, os Exercícios Espirituais, a recitação quotidiana do Santo Rosário, são alguns dos sinais espirituais de um amor que, se faltasse, arriscaria inexoravelmente a substituição com os sucedâneos, com freqüência desprezíveis, da imagem, da carreira, do dinheiro, da sexualidade.


O sacerdote é homem de Deus porque é chamado por Deus a sê-lo e vive esta identidade pessoal na pertença exclusiva ao seu Senhor, que se documenta também na opção celibatária. É homem de Deus porque vive d’Ele, a Ele fala, com Ele discerne e decide, em obediência filial, os passos da sua existência cristã. Quanto mais os sacerdotes forem radicalmente homens de Deus, através de uma existência totalmente teocêntrica, como foi ressaltado pelo Santo Padre Bento XVI nos votos de Natal à Cúria Romana no passado dia 22 de Dezembro de 2006, tanto mais eficaz e fecundo será o seu testemunho, e o seu ministério rico de frutos de conversão. Não há oposição entre a fidelidade a Deus e a fidelidade ao homem mas, ao contrário, a primeira é condição de possibilidade para a segunda.


Conclusão: uma vocação santa


A Pastores dabo vobis, falando da vocação do padre à santidade, depois de ter ressaltado a importância da relação pessoal com Cristo, expressa outra exigência: ao sacerdote, chamado à missão do anúncio, é confiada a Boa Nova para a doar a todos. Contudo, ele é chamado a acolher o Evangelho antes de tudo como dom oferecido à sua existência, à sua pessoa e como acontecimento salvífico que o compromete a uma vida santa.


Nesta perspectiva João Paulo II falou do radicalismo evangélico que deve caracterizar a santidade do sacerdote; portanto é possível indicar nos conselhos evangélicos tradicionalmente propostos pela Igreja e vividos nos estados de vida consagrada os itinerários de um radicalismo vital ao qual também, a seu modo, o sacerdote é chamado a ser fiel.


A exortação afirma: «Expressão privilegiada da radicalidade são os diversos “conselhos evangélicos”, que Jesus propõe no Sermão da Montanha e, entre estes, os conselhos, intimamente coordenados entre si, da obediência, pobreza e castidade: o sacerdote é chamado a vivê-los segundo as modalidades, e mais profundamente segundo as finalidades e significado original, que derivam e exprimem a identidade própria do presbítero»(35).


E ainda, retomando a dimensão ontológica sobre a qual o radicalismo evangélico se funda: «O Espírito, consagrando-o e configurando-o a Jesus Cristo Cabeça e Pastor, cria uma ligação que, situada no próprio ser do sacerdote, precisa de ser assimilada e vivida de maneira pessoal, isto é, consciente e livre, mediante uma comunhão de vida e de amor cada vez mais rica e uma partilha sempre mais ampla e radical dos sentimentos e das atitudes de Jesus Cristo. Neste ligame entre o Senhor Jesus e o padre, ligame ontológico e psicológico, sacramental e moral, está o fundamento e, ao mesmo tempo, a força para aquela “vida segundo o Espírito” e aquela “radicalidade evangélica”, à qual é chamado todo o sacerdote, e que é favorecida pela formação permanente no seu aspecto espiritual»(36).


A nupcialidade do celibato eclesiástico, precisamente por esta relação entre Cristo e a Igreja que o sacerdote é chamado a interpretar e a viver, deveria dilatar o seu espírito, iluminando a sua vida, acendendo o seu coração. O celibato deve ser uma oblação feliz, uma necessidade de viver com Cristo para que Ele derrame no sacerdote aquelas efusões da sua bondade e do seu amor que são inefavelmente plenas e perfeitas.


A este propósito, são iluminadoras as palavras do Santo Padre Bento XVI: «O verdadeiro fundamento do celibato pode estar contido numa só frase: Dominus pars (mea) – Tu és a minha terra. Pode ser apenas teocêntrico. Não pode significar o permanecer privados de amor, mas deve significar deixar-se tomar pela paixão por Deus, e aprender depois, graças a um mais intimamente estar com Ele, a servir também os homens. O celibato deve ser um testemunho de fé: a fé em Deus torna-se concreta naquela forma de vida que tem sentido só a partir de Deus. Apoiar a vida n’Ele, renunciando ao matrimônio e à família, significa que acolho e experimento Deus como realidade e por isso posso levá-lo aos homens»(37).


Notas


1) Cf. I. de la Potterie, Il fondamento biblico del celibato sacerdotale, em Solo per amore. Riflessioni sul celibato sacerdotale, Cinisello Balsamo 1993, pp. 14-15.


2) Cf. A.M. Stickler, em Ch. Cochini, Origines apostoliques du Célibat sacerdotal, Preface, p. 6.


3) Cf. H. Denzinger, Enchiridion symbolorum definitionum et declarationum de rebus fidei et morum, ed., P. Hünermann., Bolonha 1995, nn. 118-119, p. 61.


4) Id., Op. Cit., n. 185, p. 103.


5) Id., Op., Cit., n. 711, p. 405.


6) Id., Op., Cit., n. 1809, p. 739.


7) Conc. Vat. II, Decr. Presbyterorum ordinis, n. 16.


8) Enchiridion do Sínodo dos Bispos, 1.1965-1988, edd. Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, Bolonha 2005, nn. 755-855; 1068-1114; sobretudo nn. 1100-1105.


9) Codex Iuris canonici, Cân. 277 § 1.


10) João Paulo II, Exort. Apost. Pastores dabo vobis, 25 de Março de 1992, n. 44.


11) Catecismo da Igreja Católica, n. 1579.


12) Paulo VI, Carta Enc. Sacerdotalis caelibatus, n. 1.


13) Id., n. 14.


14) Id., n. 17.


15) Id., n. 19.


16) Id., n. 20.


17) Id., n. 21.


18) Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Lumen gentium, n. 5.


19) Ibidem.


20) Paulo VI, Carta Enc. Sacerdotalis caelibatus, n. 26.


21) Id., n. 30.


22) Cf. Ibid., nn. 27-29.


23) Jo 21, 15.


24) Paulo VI, Carta Enc. Sacerdotalis caelibatus, n. 24.


25) Mt 19, 11.


26) Conc. Vat. II Decr. Presbyterorum ordinis, n. 16.


27) Cf. 1 Cor 7, 32-33.


28) Conc. Vat. II, Decr. Presbyterorum ordinis, n. 16.


29) Paulo VI, Carta Enc., Sacerdotalis caelibatus, n. 21


30) João Paulo II, Pastores dabo vobis, n. 42.


31) Id., n. 16.


32) Id., n. 46.


33) Ibidem.


34) Paulo VI, Carta Enc., Sacerdotalis caelibatus, n. 75.


35) João Paulo II, Pastores dabo vobis, n. 27.


36) Id., n. 72.


37) Bento XVI, Discurso por ocasião da Audiência à Cúria Romana para a apresentação dos votos de Natal, 22 de Dezembro de 2006.

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