A Autoridade da Escritura



Autor: D. Estevão Bettencourt, OSB


Revista Pergunte e Responderemos – Ano XLV – N0 506


Agosto 2004 – Páginas 22 a 25


Em síntese: Deus se revelou aos homens mediante a palavra oral; Esta foi redigida por escrito através dos autores sagrados, que não tencionaram fazer súmulas doutrinárias. Donde se vê que, para entender adequadamente a Palavra de Deus escrita, é necessário o recurso à Palavra oral ou Tradição, cujo porta-voz credenciado é o magistério da Igreja. É isto que Alessandro Ricardo Lima quer dizer num e-mail enviado a PR.


Foi enviado a PR por correio eletrônico um artigo do sr. Alessandro Ricardo Lima sobre o princípio luterano “Somente a Escritura”. Está claro que a Palavra de Deus é dotada da máxima autoridade, mas será suficiente atender unicamente à sua forma escrita sem levar em conta a Tradição (Transmissão) oral? – A esta questão vão dedicadas as ponderações seguintes da autoria do Sr. Lima.


O PROBLEMA DA AUTORIDADE NA SOLA SCRIPTURA


A Reforma Protestante iniciada pelo frade agostiniano Martinho Lutero insistiu no cristianismo o principio da Sola Scriptura (Somente a Escritura). Segundo este principio, a Igreja deve ter como doutrina somente o que esteja fundamentado na Escritura.


É injusto dizer que Lutero tenha inventado a Sola Scriptura, estudos mostram que antes de Lutero outros teólogos já defendiam tal principio, como é o caso de John Wicliff.


Este pilar da doutrina protestante apresenta vários problemas de sustentação, o que tem resultado na divisão do protestantismo em cada vez mais seitas com doutrinas cada vez mais divergentes. Este artigo vem tratar especificamente de um destes problemas que é o problema da Autoridade.


Até o séc. XVI (quando surgiu a Reforma) comumente se cria que a Igreja Católica possuía autoridade para definir questões de moral e fé. A Igreja era tida como Mãe e Mestra dos cristãos. Lutero vem no caminho contrário exatamente questionando esta autoridade. Para ele somente a Sagrada Escritura é autoridade em questões de fé e moral para o cristão. Basicamente a doutrina Luterana da Sola Scriptura é composta pelos seguintes princípios:


- Somente a Escritura deve ser usada como fundamento da Fé cristã;


- Somente a Escritura é a autoridade única e última para o cristão;


Embora o primeiro principio tenha deixado lacunas enormes quanto ao que é a Palavra de Deus no protestantismo, o segundo principio é a fonte das continuas divisões no protestantismo.


Toda Lei possui a sua autoridade, pois foi criada para ser respeitada e tem como objetivo algum bem comum. Tal é o caso das Constituições Nacionais, das leis de transito, das leis penais, etc. No entanto toda lei (em qualquer lugar que seja) necessita de uma autoridade que a interprete e faça cumprir. Na verdade toda lei, por mais autoridade que possua, não possui autoridade sozinha, depende de uma outra autoridade para que os benefícios que foram objetos da lei sejam alcançados. Por exemplo: como se resolveriam os casos penais sem a autoridade dos Juizes que analisam os casos, interpretam a Lei e dizem quem está certo e quem está errado? Provavelmente estes casos não se resolveriam nunca, pois as partes envolvidas dariam a interpretação da Lei segundo o seu entendimento.


Para exemplificar melhor, imaginem uma batida no trânsito entre um carro e uma moto em um cruzamento. Sem a autoridade competente que vai avaliar quem está correto e que está errado, provavelmente cada um dos motoristas pegaria seu código de trânsito e começaria a dizer que ele está certo e o outro errado, baseado no artigo “tal e tal”. Onde chegaríamos se o mundo funcionasse desta forma? Em lugar algum, claro ... Viveríamos num verdadeiro faroeste, com cada um aplicando o seu entendimento da Lei vigente, porque não existiria a autoridade que tivesse o poder de “ligar ou desligar” (cf Mt, 16, 18-19).


É exatamente este problema que o protestantismo vive. Como não existe uma autoridade que interprete oficialmente a Escritura, cada confissão protestante interpreta a Escritura conforme entende (ou convém) e a unidade doutrinária que é uma característica da verdadeira fé Crista (cf. Ef 4, 5) torna-se algo impossível. É claro que todo cristão deve ter acesso à Escritura e pode lê-la; no entanto, sem um Magistério Oficial, é impossível chegar à unidade em questões de moral e fé.


O sr. Krogh Tonning – famoso teólogo protestante norueguês, convertido ao catolicismo, no século passado, já afirmava: “Quem trará à nossa presença uma comunidade protestante que esteja, de acordo sobre um corpo de doutrina bem determinado? Portanto uma confusão é a regra mesmo dentre as matérias mais essenciais” (Lê protest.Contemp., Ruine constitutionelle, p.43 In I.R.C., França, L., pg 255. 7a ed., 1953).


Curiosamente o protestantismo, que se diz herdeiro da verdadeira fé primitiva, repudia a autoridade do Magistério da Igreja Católica, que é a autoridade de que a Igreja Antiga se servia para chegar para a unidade da fé. A realização dos inúmeros Concílios Regionais e Gerais (ou Ecumênicos) é a prova desta realidade; inclusive a palavra “Concílio” vem de “conciliar”: aplicada à realidade da Igreja Antiga, era a reunião dos Bispos do mundo inteiro que tinha o objetivo de acabar com a dúvida e alcançar a unidade doutrinária.


Felizmente o Pai da Sola Scriptura viveu o bastante para testemunhar e confessar os malefícios de sua doutrina: “Este não quer o batismo, aquele nega os sacramentos; há quem admita outro mundo entre este e o juízo final, quem ensine que Cristo não é Deus; uns dizem isto, outros aquilo, em breve serão tantas as seitas e tantas as religiões quantas são as cabeças” (Luthers M. In. Wimar, XVIII, 547; De Wwett III 6l).


Martinho Lutero percebeu que a autoridade da Sagrada Escritura não se poderia confundir com a autoridade de um Magistério Oficial que a interprete. Os anos que se passaram após a instituição da Reforma Protestante testificam bem que Lutero, ao atacar a autoridade da Igreja como Mãe e Mestra de todos os cristãos, abalou grandemente os fundamentos doutrinários do Cristianismo. Ora, se abalamos o fundamento de uma casa, acabamos por comprometer toda a sua estrutura. Não é à toa que São Paulo afirma que “a Igreja é a Coluna e o Fundamento da Verdade” (1 Tm 3, 15).


Lutero, eu fez germinar no Cristianismo a semente da Sola Scriptura, também deixou para a posteridade a solução do problema que causara: “Se o mundo durar mais tempo, será necessário receber de novo os decretos dos concílios (Católicos) a fim de conservar a unidade da fé contra as diversas interpretações da Escritura que por aí correm” (Carta de Lutero a Zwingli In Bougard, Lê Christianisme et les temps présents, tomo IV – 7 – p.289).


A conclusão de Lutero ecoa até hoje. Infelizmente continuamos constatando que a grande maioria dos protestantes permanece dormindo com um barulho desses ...


Até aqui o Sr. Lima.


REFLETINDO ,,,


A palavra é um dos meios mais espontâneos de comunicação. Ela fala não somente pelos sons emitidos, mas também pela entoação da voz. A palavra proferida oralmente é a palavra viva. A escritura é um sucedâneo, que ajuda a memória, mas carece do dinamismo da palavra oral; ela não se interpreta nem se explica ao leitor de modo que o mesmo conjunto de silabas escritas pode ser entendido em dois sentidos contraditórios entre si. Tenha-se em vista a seqüência:


RESSUCISTOU NÃO ESTÁ AQUI


Como entender este conjunto?


Somente a entoação de voz o dirá. Pode-se ler:


RESSUCISTOU. NÃO ESTÁ AQUI!


Como se pode também ler:


RESUSCITOU? NÃO! ESTÁ AQUI.


Apliquemos estas observações à Palavra de Deus (que se quis encarnar na linguagem humana). Deus falou aos homens, antes do mais, por via oral. Essa palavra oral foi redigida por escrito sem que os autores sagrados tivessem a intenção de fazer súmulas completas da pregação oral. Ver Jo 20, 30s; 21, 24. Disto se segue, por razoes especialmente claras, a necessidade de auscultar a palavra viva de Deus, que constitui a chamada “Tradição oral” e da qual é a porta voz credenciado o magistério da Igreja (Ver Mt 18, 18; 28,20).


Sem o recurso à Palavra oral viva na Igreja, a que Cristo assiste, existe o risco do subjetivismo ou das interpretações pessoais que vão esvaziando e deteriorando a mensagem divina, como ensina, com evidência crescente, a história de nossos tempos.

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