A Inquisição em seu mundo



Fonte: Lista Exsurge Domini
Autor: João Bernadino Gonzada
Transmissão: Padre Eduardo

Este artigo é a síntese do estudo do livro "A INQUISIÇÃO EM SEU MUNDO" DE JOÃO BERNADINO GONZADA, publicado pela Editora Saraiva. O autor é um leigo, titular de Direito Penal, nas Faculdades de Direito da USP e PUC de São Paulo. Este artigo foi tirada da Revista Pergunte & Responderemos de Abril de 1994, n. 383 das páginas 158 a 167.
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A INQUISICÃO EM SEU MUNDO

por João Bernardino Gonzaga

Em síntese: O Prof. João Bernardino Gonzaga expõe aos leitores traços tipicos do mundo medieval e pós-medieval, em que funcionou a Inquisição. Evidencia, mediante pesquisa do Direito Penal da Idade Média, que os procedimentos da Inquisição eram os do Direito Civil da época, de modo que não causavam estranheza nem aos sábios nem ao povo simples. Apesar disso, nota-se que a Inquisição, não raro, abrandou a jurisprudência do seu tempo; soube abrir exceções em favor dos condenados e os seus juizes tentaram comportar-se com honestidade e retidão de Intenções, certos de que os bens espirituais são mais valiosos do que os materiais e, por isso, merecem todo o zelo da parte de quem os professa.

As páginas que se seguem, reproduzem trechos do livro do Prof. J. B. Gonzaga, livro de leitura altamente proveitosa, pois põe em relevo vários traços da vida medieval e pós-medieval que são desconhecidos do homem contemporâneo e habilitam a compreender melhor o fenômeno "Inqui­sição'

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Foi publicada em sete edições sucessivas (ou dezenas de milhares de exemplares) no ano de 1993 a obra do Prof. Dr. João Bernardino Gonza­ga intitulada "A Inquisição em seu Mundo". Trata-se de um estudo que não se contenta com o relato de fatos, mas procura compreendê-los, se­guindo uma sábia lei de historiografia: coloquem-se os fatos pretéritos no seu respectivo contexto Histórico, a fim que o estudioso os possa entender a partir dos parâmetros dos respectivos protagonistas, em vez de os julgar a partir de premissas estranhas aos antigos. O Prof. João Bernardino apli­cou essa norma ao fenômeno "Inquisição", executando assim uma tarefa, de certo modo, inédita e altamente benemérita, pois esclarece enormemen­te uma fase da história mal entendida por muitos observadores. Isto não quer dizer que, o autor é inocente, por completo, os homens que promove­ram a Inquisição, mas significa que o procedimento que causa estranheza aos observadores de hoje, não a causava aos respectivos atores.

É de notar que a Inquisição se desenvolveu em três fases sucessivas:

1) A Inquisição Medieval, do século XII ao século XV, voltada con­tra os cátaros (que saqueavam fazendas e aldeias por motivos filosófico-­religiosos) e, depois, contra outros tipos de erros religiosos.

2) A Inquisição Romana, dirigida contra as idéias paganizantes e re­formadoras dos séculos XV/XVII.

3) A Inquisição Espanhola, do século XV ao século XIX, visava aos judeus e muçulmanos da península ibérica, sob a direção prepotente dos monarcas espanhóis, que, servindo-se de um instrumento religioso, que­riam unificar a população de Espanha e Portugal.

Percorramos as principais páginas do livro que põem em foco a men­talidade e a vida de pessoas que viveram o fenômeno "Inquisição" ou vi­veram na época da. Inquisição. Visto que nos interessamos pelo quadro genial ou a moldura em que se desenvolveram os fatos, os tópicos seguintes se referirão à vida civil e à jurisprudência civil dos séculos passados e não diretamente à Inquisição.

1. UNIÃO DE IGREJA E ESTADO

Logo na Apresentação do livro, à p. 15, lê-se:

“Inquisição nunca foi um tribunal meramente eclesiástico; sempre teve a participação (e participação de vulto crescente) do poder régio, pois os assuntos religiosos eram, na Antiguidade e na Idade Média, assuntos de interesse do Estado; a repressão das heresias (especialmente dos cátaros, que pilhavam e saqueavam as fazendas) era praticada também pelo braço secular, que muitas vezes abusou da sua autoridade. Quanto mais o tempo passava, mais o poder régio se ingeria no tribunal da Inquisição, servindo-­se da religião para fins políticos. Dois casos significativos a tal propósito foram: 1) em 1312 a condenação dos Templários, contra os quais o rei Fi­lipe IV o Belo da França (1285-1314) moveu a Inquisição, desejoso de possuir os bens da Ordem dos Templários, quando condenada e abolida; 2) em 1431 a condenação de Joana d'Arc, a jovem guerreira que incomo­dava a Coroa da Inglaterra pelo seu zelo cristão e patriótico.

Aliás, quanto mais a história avançava, tanto mais absolutistas se tornavam os reis do Ocidente europeu, de tal modo que não podiam tolerar outra instância judiciária autônoma (a eclesiástica) ao lado da instância judiciária civil; esta deveria mais e mais valer-se dos tribunais eclesiásticos para implantar os interesses dos monarcas. A prepotência começou com Filipe IV o Belo da França e atingiu o seu auge na Espanha e em Portugal a partir do século XVI; o desejo de unificar a população da península ibé­rica, composta de cristãos, judeus e muçulmanos, levou os reis daqueles dois países a pedir e obter do Papa a instalação da Inquisição em seus terri­tórios; os soberanos acionavam a Inquisição segundo os seus propósitos, mediante homens por eles nomeados, provocando sérios conflitos com a Santa Sé, que mais de uma vez se recusou a reconhecer o procedimento da Inquisição na península ibérica; aliás, no final da vigência desta Institui­ção, já não se dizia Inquisição Eclesiástica, mas, sim Inquisição Régia."

2. A JUSTIÇA CRIMINAL COMUM

O Capítulo 1 do livro põe em foco os princípios que inspiraram a pesquisa do Prof. João Bernardino:

"As censuras apresentadas contra a Inquisição giram, invariável e in­cansavelmente, em torno das idéias de intolerância, prepotência, cruelda­de; mas, ao assim descrevê-la, os críticos abstraem, ou referem muito de leve, o ambiente em que ela viveu. Forçam por tratá-la quase como um acontecimento isolado e, medida pelos padrões da atualidade, se torna in­compreensível e repulsiva para o espectador de hoje.

Sucede porém que esse fenômeno foi produto da sua época, inserido num clima religioso e em certas condições de vida, submetido à força dos costumes e de toda uma formação cultural e mental, fatores que forçosa­mente tiveram de moldar o seu comportamento. Por isso entendemos in­dispensável suprir grave lacuna: antes de examinar a Inquisição, é preciso conhecer de perto o mundo que a envolveu, tão diferente do nosso. Sobre­tudo, não nos duvidemos de que o Santo Ofício equivaleu a uma, Justiça Criminal, de sorte que não é possível entendermos o seu procedimento sem preliminarmente saber como atuava a Justiça Criminal comum, ou lai­ca, que lhe foi contemporânea e que lhe serviu de modelo. Esta era uma Justiça assinalada por profundo atraso, com métodos toscos e violentos, mas por todos encarada com naturalidade, aprovada e defendida pelos mais sábios juristas de então" (p. 21).

3. REGIME DE CRISTANDADE

É importante notar a diferença entre o mundo de hoje e a medieval na tocante à cosmovisão ou à filosofia de vida: ao passo que em nossos dias se admite a pluralismo, segunda a qual vivem lado a lado pacifica­mente cristãos, judeus, muçulmanos, ocultistas, ateus. . . , na Idade Média tal pluralismo era inconcebível; quem não fosse cristão fiel, era suspeito de estar possesso do demônio e infenso à sociedade daí a motivação pró­pria que levava os medievais a inquirir as dissidentes da fé cristã: - São es­ta as palavras da Prof. João Bernardino:

"Na Europa ocidental após a queda do Império Romano, a única ins­tituição poderosa e universal era a Igreja. Ser membro dessa associação era teoricamente voluntário e praticamente obrigatório. Ser desligado de sua comunhão era castigo tamanho que, até o século XVI, os próprios reis te­miam diante da ameaça de excomunhão. Da menor das aldeias, com sua igreja paroquial, à maior das cidades, com sua catedral, suas numerosas igrejas, seus mosteiros e santuários, a Igreja estava visivelmente presente em todas as comunidades: suas torres eram o primeiro objeto que a viajante divisava no horizonte e sua cruz era a último símbolo levantado diante dos olhos do agonizante.

"Numa cultura assinalada por espantosas diversidades de dialeto, di­reito, culinária, pesos e medidas, cunhagem, a Igreja oferecia uma morada comum, na verdade um abrigo universal: o mesmo credo, os mesmos ofí­cios, as mesmas missas, realizadas com os mesmos gestos, na mesma or­dem; para o mesmo fim, de um outro extremo da Europa. Nunca a rigo­rosa uniformidade romana serviu melhor à humanidade que durante esse período. Nos ofícios mais importantes da vida, até a menor das aldeias achava-se no plano de uma metrópole. A Igreja Universal dava a todas as comunidades, pequenas e grandes, um propósito comum" (LewisMum­fard, op. cit., págs. 290-1).

Torna-se difícil, se não impossível, para o homem de hoje sentir em seu coração o que se passava naqueles tempos. . . O mundo terreno possui demasiados atrativos, as pessoas vivem ocupadas demais, a preocupação econômica tende a tudo dominar. A intensa propaganda consumista leva à ânsia de prazeres e de bens materiais, antepondo-se à imagem da sobrena­tural.

Antes, ao inverso, a simplicidade da vida, a tenaz pregação catequis­ta feita pela Igreja, as idéias de Deus, da morte, de céu e de inferno sempre presentes, tudo isso envolvia o indivíduo numa atmosfera de forte religio­sidade. A Igreja se revelava por toda parte, com sua pompa, com seus sole­nes ritos litúrgicos, com procissões, festas, penitências, peregrinações. Jun­to ao povo estavam bispos, padres, freiras, monges, frades, pequenos curas de aldeia, ocupando-se das escolas, das universidades, dos hospitais, dos asilos. Os estabelecimentos religiosos em geral constituíam o repositório da cultura e das artes, pintura, escultura, arquitetura, música. A inteira existência dos homens era ritmada pelo calendário cristão, cada dia com o seu santo; pelos ritos religiosos; pelos sinos que repicavam, desde o ama­nhecer até a hora da Ave Maria" (pp. 59s).

"Era incomum, quase inconcebível, na época, uma sociedade religio­samente pluralista, cada grupo com sua crença, seus templos e seus cultos, todos convivendo harmonicamente. Em clima de liberdade e mútuo respei­to. Isso só se tornou realmente viável há muito pouco tempo, na História da humanidade" (p. 61). .

4. DEFESA DA SOCIEDADE

Os tribunais costumavam julgar com rigor as pessoas acusadas; os pro­cedimentos aplicados aos réus ou aos pretensos réus eram duros e severos. Para explicá-lo, nota o prof. J. B. Gonzaga:

"A proliferação de crimes constituía verdadeira calamidade. Não ha­via nenhuma segurança nos campos, nas estradas, nas cidades. Tudo se achava infestado por legiões de assaltantes, muitas vezes organizados em, bandos de assassinos, de ladrões, trapaceiros, prostitutas, mendigos, etc. As crises periódicas por que passava a agricultura, despejavam nas cidades multidões de desempregados e de miseráveis. As freqüentes guerras produ­ziam populações errantes; a soldadesca de mercenários, nos intervalos entre os combates, não tendo o que fazer, se entregava a assaltos e a pilhagens.

Escusa enfim desdobrar todo o triste panorama, que facilmente ima­ginamos, daqueles tempos confusos. Concomitantemente, inexistia qualquer política social eficaz. Coube então à Justiça Penal a tarefa de suprir essa falha, contendo os insatisfeitos e ordenando a sociedade; o que ela fez através do terror.

Dispõe o Estado hoje de certos recursos que o ajudam no trabalho de proteção social contra a delinqüência.

A moderna Criminologia desvenda as forças criminógenas, e indica os meios de enfrentá-las. Integram-na a Sociologia, a Antropologia; a Psicologia e Psiquiatria criminais. . . Todos os paises possuem, uma ­Polícia formada por profissionais especializados no combate à criminalidade. As cida­des são bem organizadas, as ruas possuem nomes, as casas têm números.

Conseguintemente, espera-se hoje que a possibilidade mais fácil de serem descobertos e punidos contenha muitos delinqüentes potenciais, de sorte que as penas podem ser mais brandas, isto é, podem ser adequadas, com justiça, à gravidade de cada infração.

Sucede, porém, que todas as mencionadas ciências e técnicas que au­xiliam no combate à criminalidade são recentíssimas, começaram a surgir há pouco mais de um século. Antes, se não houvesse prisão em flagrante, as autoridades ficavam diante de imensa dificuldade para descobrir e pren­der os autores dos crimes" (pp. 48s)'

5. CONDIÇÕES DE VIDA DAS POPULAÇÕES.

Os métodos judiciais da Idade Média eram rudes. "Isto só pode ter existido e ter sido absorvido pela sociedade, porque as pessoas, no seu dia-a-dia, levavam vida extremamente dura" (p. 51). Continua o Prof. Gonzaga:

"Estudando a típica cidade européia ao término da era feudal, obser­va Max Savelle que, para sua defesa, ela era sempre rodeada de muralhas. 'Como as muralhas fixavam limites ao crescimento exterior da cidade, os edifícios no seu interior se amontoavam uns sobre os outros. Por ser difí­cil o espaço, as ruas eram estreitas. Muitas vezes a lei determinava que uma rua devia ser bastante larga para permitir que uma pessoa andasse a cavalo no seu centro, levando uma lança atravessada na extensão da largura. Isso estava longe de ser uma medida generosa, mas os construtores se empolei­ravam mesmo sobre essa estreita dimensão, fazendo com que os andares superiores de suas casas se projetassem sobre a rua. E, como as casas nor­malmente se erguiam à altura de quatro ou cinco andares, isto redundava em que o sol escassamente chegava a alcançar o leito do logradouro' (Max Savelle, História da Civilização Mundial, vol. :2, p. 207).

Com o progressivo desenvolvimento urbano, daí por diante as condi­ções se foram tornando crescentemente piores. Ruas sombrias e imundas, com os esgotos correndo a céu aberto. Nelas, os moradores das casas joga­vam seus dejetos, o lixo, as sobras da cozinha, formando-se uma massa de podridão, revolvida pelos cães, gatos, porcos e ratos que infestavam a ci­dade. O mau cheiro se espalhava por toda parte; as enfermidades endêmi­cas e epidêmicas tinham livre curso, varrendo famílias inteiras" (p. 51).

6. A MEDICINA

A dureza de vida, derivada de precárias condições arquitetônicas, era aumentada pelo caráter rudimentar da Medicina da época. Eis o que obser­va o Prof. J. B. Gonzaga:

"Ficamos perplexos ao imaginar hoje a cena de um magistrado da­quelas épocas: homem supostamente culto e sensível, ordenando e presen­ciando a tortura do acusado que se acha à sua mercê. Sucede entretanto que esse juiz, por hipótese, na véspera daquele dia vira sua filha, menina ainda e inocente, ter uma perna esmagada e por isso amputada, sem anes­tesia, pelo cirurgião-barbeiro. Ou, mais prosaicamente, ele próprio tivera de sofrer, a frio, a extração de um dente molar infeccionado. Por que, en­tão, se iria compadecer diante de um criminoso que presumivelmente me­recia a tortura?

A arte de curar cabia aos médicos, chamados "físicos", que haviam para isso freqüentado cursos regulares. Abaixo deles situavam-se os "cirur­giões-barbeiros", homens que, com a prática, haviam adquirido aptidão pa­ra realizar alguns atos cirúrgicos: amputação de membros, ressecção, desar­ticulação, redução de fraturas, lancetamento de abscessos e tumores, etc., inclusive, às vezes, sutura de órgãos internos rompidos. As guerras, geran­do legiões de estropiados, foram grandes fornecedoras de trabalho para esses profissionais.

A anestesia e as regras de assepsia somente viram a difundir-se na se­gunda metade do século XIX. Antes, operava-se "a frio", sendo muito even­tuais e precários os recursos anestésicos. O paciente era amarrado e conti­do pelos auxiliares do cirurgião e este devia possuir rija têmpera e coração duro para intervir ao som de lancinantes gritos de dor. Nenhum cuidado de higiene era tomado: o operador atuava vestido com suas roupas normais e sequer lavava as mão os instrumentos utilizados. Findo o ato, a ferida era coberta com óleo fervente, para deter a hemorragia e evitar a infecção; a qual, todavia, sobrevinha quase invariavelmente. Em conseqüência, a porcentagem de óbitos era muito elevada" (pp. 55s).

7. A TORTURA

A tortura era um processo aplicado pela Justiça civil medieval, de acordo com o costume de legislações muito antigas:

"Parece que, em maior ou menor grau, essa violência foi utilizada por todos os povos da Antiguidade. O texto mais velho que dela nos dá notí­cia acha-se em fragmento egípcio relativo a um caso de profanadores de túmulos, no qual aparece consignado que 'se procedeu às correspondentes averiguações, enquanto os suspeitos eram golpeados com bastões nos pés e nas mãos'.

Dir-se-á que a tortura talvez constitua eterna fatalidade do gênero hu­mano e que prossegue hoje existindo. Sim, é exato, basta lembrar o que ocorreu nos regimes totalitários da Alemanha nazista, da Itália fascista, da Rússia comunista. Os franceses supliciaram prisioneiros na guerra de liber­tação da Argélia. Os agentes policiais, mesmo em países civilizados, con­tinuam utilizando tal recurso, e célebre ficou, nesse sentido, o 'Third de­gree' da polícia norte-americana.

Sucede todavia que hoje a tortura só se pratica clandestinamente, com repulsa do Direito e da opinião pública. As leis modernas a qualificam como crime, ameaçando com severíssimas penas seus autores. Mesmo quando adotada por governos autoritários, ela se faz oficiosamente, às ocultas, e tem a sua existência negada.

Nos séculos passados, ao contrário, os suplícios foram pacificamente aceitos, como recurso normal da Justiça, e regulamentados pelo legislador. Na Espanha, em meados do século XIII, Afonso X, o Sábio, tranqüilizava seus súditos explicando no Código das Sete Partidas que a tortura se justificava porque fora adotada pelos sábios antigos (ou seja, pelos juristas ro­manos). Parto VII, tít. 30, de Los Tormentos: 'Porende tenieron por bien los sabios antiguos que fizieron tormentar aios omes, por que pudiessen saber Ia verdad ende dellos'.

Na Alemanha, na Itália, na Espanha, em Portugal, por toda parte tor­turavam-se normalmente os acusados e, às vezes, também as testemunhas não merecedoras de fé. Em França, as Ordenações de 1254 e todas as sub­seqüentes adotaram oficialmente a questão, ou interrogatório com tor­mentos" (p. 32).

Acrescente-se o seguinte traço muito importante:

"Os historiadores estão de inteiro acordo sobre o fato de que o povo em geral, de todas as classes sociais, aceitava pacificamente os rigores do sistema repressivo, encarando-os com absoluta naturalidade, como algo normal e necessário.

Os grandes juristas da época, homens respeitados pelo saber e prudên­cia, estruturaram e defenderam a inquisição, com suas denúncias anônimas, seus processos secretos, o sistema das provas legais, a tortura. Tudo isso foi aprovado pelos Mestres Bartolo e Baldo, no século XIV; por Angelus de Aretio, no século XV; no século XVI, por Hippolytus de Marsiliis, Ju­lius Clarus, Farinacius, Menochius, na Itália, Carpzov e Schwctrzehberg na Alemanha" (p. 47).

8. A INQUISICÃO NO SEU CONTEXTO

O quadro geral até aqui descrito elucida, de certo modo, a mentali­dade e os costumes dos homens que viveram a Inquisição, seja como jui­zes, seja como réus. A Inquisição teve seu surto em tal ambiente. Não é nosso propósito, neste artigo, descrever as origens e os procedimentos específicos da Inquisição, pois isto foi feito em PR 220/1978, pp. 152­155; 240/1979, p. 529 e no nosso Curso de História da Igreja por Corres­pondência, Módulos 32 e 33.

Importa, porém, destacar as ponderações do Prof. João Bernardino:

"A Inquisição equiparou-se a uma Justiça Penal, de sorte que natural­mente adotou os modelos que vigiam nos tribunais laicos. Eram métodos processuais que mereciam total beneplácito dos mais renomados juristas e que estavam de acordo com os costumes. Os homens que compunham a Igreja eram homens daquele tempo e não podiam deixar de submeter-se às suas influências.

O procedimento dos tribunais inquisitoriais é, para a mentalidade atual, inaceitável; mas, apesar disso, representou um abrandamento peran­te o que se passava nos seus congêneres do Estado. Não podemos julgar o que eles fizeram sem os focalizar como órgãos condizentes com certo teor de vida, investidos de uma missão sobrenatural e cristã a cumprir, que se ocupavam de crimes, a seus olhos, gravíssimos, e que terão agido, em regra, com zelo, equilíbrio e honestidade. Mister se faz acautelar-nos con­tra aqueles que, no afã de denegrir a Igreja Católica, procuram criar escân­dalos, só descrevem as exceções e não as regras, os abusos e não os usos. A se crer nesses detratores da Inquisição, todo o mal estaria com os seus juí­zes; todo o bem com os seus réus" (pp. 119s).

Mais adiante ainda escreve o autor:

"Um aspecto a destacar é que, mesmo quando as regras penais da Igreja tendiam para o rigor, este, na prática, costumava ser com freqüência mitigado.

Mostra-o muito bem, comprovadamente, Jean Giraud. "As penas da Inquisição eram freqüentemente atenuadas ou até apagadas. Não se deve crer, por exemplo, que todo herege que figura nos Registros como con­denado ao 'muro perpétuo' haja permanecido na prisão o resto dos seus dias. Mesmo os mais severos Inquisidores, como Bernardo de Caux, segui­ram tal orientação. Em 1246, esse juiz condenou à prisão perpétua um he­rege relapso, mas na própria sentença acrescentou que, sendo o pai do cul­pado bom católico, velho e doente, seu filho podia permanecer junto a ele, enquanto vivo fosse, para lhe prestar cuidados. Quando os detentos caíam doentes, obtinham permissão para se ir tratar fora da prisão ou junto às suas famílias. Freqüentemente também os inquisidores concediam atenua­ções e comutações de pena; por exemplo, a prisão era substituída por uma multa, ou uma peregrinação, etc. Essa pena flexível decorria forçosamente do caráter medicinal que lhe atribuía a Igreja" (p. 136).

CONCLUSÃO

O livro do Prof. J. B. Gonzaga é sério e imparcial. Descreve a rudez de vida dos medievais e pós-medievais, que esclarece o fenômeno "Inqui­sição".

Não poderíamos, porém, encerrar esta resenha sem registrar que, ape­sar de tudo, a vida dos medievais tinha sua alegria, seus cantos, suas dan­ças, suas festas com espetáculos; sua poesia. "Por toda parte floresceram as partes, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música, a literatura, o. teatro" (p. 56).

A obra do Prof. João Bernardino Gonzaga merece a gratidão dos estudiosos, interessados em ultrapassar as noções e julgamentos superfi­ciais.

Paz e Bem!
Pe. Eduardo

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