Filosofia iluminista, Estado e indivíduo


 

Autor: Dr. Rafael Vitola Brodbeck


A Revolução Francesa, máximo expoente da orientação filosófica do Iluminismo, fez nascer um monstro de proporções gigantescas que domina até hoje o pensamento moderno, dele excluindo qualquer referência à crença na verdade absoluta e ao ensinamento tradicional católico.


O liberalismo, filosofia própria iluminista, sustenta vários dogmas, entre os quais destacam-se a liberdade plena do indivíduo frente ao Estado e a liberdade plena deste frente a qualquer outra instituição ou organização social. Temos, então, dois pontos de sua doutrina, os quais, valorizados isoladamente, tendem a desencadear movimentos aparentemente antagônicos.


Quanto ao primeiro ponto - absoluta liberdade do indivíduo frente ao Estado -, é causa geradora da proposição de que todos podem pensar como quiserem, pois, para os liberais, a verdade é relativa. Gera também, por sua vez, como fruto da dissociação entre a razão individual e a razão social - postulado dos mais importantes do Iluminismo -, a supervalorização do Direito Positivo em detrimento do Direito Natural e das regras morais, o que justificaria, nessa ótica, a aplicação de uma economia de mercado que não respeite as mínimas exigências éticas nem as garantias de dignidade da pessoa humana - num autêntico contra-senso, uma vez que a Revolução Francesa foi feita exatamente "em nome" dos direitos personalíssimos do homem. Não só o comércio é afetado por esse pressuposto, senão a imprensa, a educação, a tolerância aos cultos religiosos: tudo pode ser feito, dizem os modernos, porque é natural ao homem ser livre e exercer essa liberdade plenamente. Como, todavia, a sociedade teria o poder de corromper o homem, no clássico ensino de Rousseau, para quem o ser humano nasce isento do mal e perfeitamente imaculado - o que motivou o Romantismo (aplicação do liberalismo na arte) a crer no mito do bom selvagem -, usam os liberais daquele citado sistema de supervalorização do Direito Positivo, para conferir poderes ao Estado, numa espécie de contrato social - de novo o contributo de Rousseau -, que determinem quando e como a liberdade, natural ao homem, pode ser exercida e manifestada, de acordo com os ditames do bem comum.


Ora, esse raciocínio está equivocado desde sua raiz até suas aplicações contemporâneas! Se bem que o indivíduo tenha, em si, direito inato à liberdade - e nisso os iluministas não erraram ao preservar pelo menos esse dado do Direito Natural -, seu uso consiste justamente na possibilidade de escolher o bem e agir de acordo com ele. A liberdade não é a capacidade de determinação segundo a ótica pessoal, como se o bem fosse relativo. Ser livre significa fazer o que é correto. Claro, argumentariam os liberais que o conceito de bem não é absoluto e todos terão uma definição própria e pessoal desse valor, o que autorizaria o uso irrestrito de sua noção tacanha de liberdade. Contra essa tese, respondemos com a lógica: é próprio da verdade ser absoluta, é sua característica ontológica, essencial, substancial; de outra maneira, admitindo-se a mutabilidade da verdade ou sua relativização, correríamos o risco da insegurança vital da apreensão dos conceitos! A verdade é a correspondência entre a idéia e o objeto: se fosse relativa, estaríamos admitindo que o objeto é irreal ou que a correspondência é falha. Podem, concordamos, existir esses dois defeitos, mas, de fato, não estamos falando, então, de verdade... A verdade, para ser verdade, não admite a falta de realidade objetiva nem de correta correspondência. De tal maneira é que a verdade, por ser absoluta, implica em uma definição precisa do que é o bem e o que é mal, e, daí, nossa determinação de agir de acordo com um ou com outro, no que entra o conceito de liberdade, já exposto.


Por outro lado, não é o Estado que irá cercear a liberdade humana, estabelecendo o bem comum. Se o bem é absoluto e certo, como já dissemos, não cabe ao Estado constituí-lo ou decretá-lo, senão meramente declará-lo. O Estado não cria a verdade; pode, no máximo, sancioná-la. Assim, quem constitui o bem comum é a verdade, e esta é informada pela moral, pelo Direito Natural, ainda que seja positivado pela Constituição ou pela legislação ordinária. Essa positivação, entretanto, deve necessariamente observar os ditames naturais, não contrariando seus pressupostos. Nisso, se o Estado cerceia a liberdade humana em nome do bem comum, e isso de forma legítima, por não criar o bem, mas apenas reconhecê-lo como naturalmente disposto no ordenamento moral, deve ser limitado por este último. Em outras palavras, é justo que o Estado, em determinadas condições, impeça o exercício da liberdade "para o mal", até porque não se trata nesse caso de autêntica liberdade - v.g., quando tipifica condutas criminosas, impede comportamentos contrários aos bons costumes e à moralidade pública -; sempre, todavia, observará os limites que a natureza estabelece para sua atuação, em especial respeitando os princípios da subsidiariedade e da solidariedade humana.


Rousseau errou quando pregou a bondade inata do homem, pois negou o efeito do pecado original na alma e a inclinação da concupiscência. E se o homem não é bom por natureza, não cabe ao Estado, por si, limitar sua ação, e sim à própria natureza, ainda que por intermédio do Estado, o qual, por ser sociedade perfeita - i.e., que subsiste por si mesma -, possui os instrumentos adequados para a repressão dos abusos da liberdade.


Há ainda o segundo ponto - absoluta liberdade do Estado frente a quaisquer outras instituições. É essa expressão carregada das maiores complexidades. Quer dizer esse dogma liberal que o Estado e a Igreja, por decorrência daquela liberdade do indivíduo, devem estar separados; que a defesa do Estado deve ser tomada pelos cidadãos acima de qualquer outra prioridade; que toda nação deve necessariamente constituir-se em Estado soberano.


Analisemos a primeira conseqüência do citado ponto: separação entre Igreja e Estado. Não corresponde à realidade essa pretensão liberal, pois ambas as instituições são, por natureza e por Revelação de Deus, dois braços a serviço da mesma finalidade: o bem social e a salvação das almas. O salutar consórcio entre a Coroa e a Cruz, entre o Trono e o Altar, entre o Império e o Papado, não significa, desfaçam-se os desentendidos freqüentes na matéria, confusão entre as duas realidades - como sucede, por exemplo, no Estado islâmico -, ou eventuais abusos como ingerência da Igreja em assuntos substancialmente civis - os quais competem ao Estado -, ou a intromissão do Estado em matérias essencialmente religiosas - as quais são da alçada da Igreja. Nenhuma dessas formas de relacionamento entre as esferas eclesiástica e estatal corresponde ao pregado pela Doutrina Social Católica, mas tampouco o ensinamento liberal de radical separação das duas deve prosperar. O correto é a mútua concórdia, de modo que ambas resolvam os problemas que lhe são comuns, dando primazia à regra fundamental da sociedade cristã: lex maxima salus animarum, a lei suprema é a salvação das almas. Estado e Igreja devem curvar-se a Deus. Como é próprio da Igreja a obediência ao Criador, resta que o Estado faça o mesmo, e para isso a Igreja pode exercer o seu poder supremo e pacificador.


União entre Igreja e Estado, por outro lado, não significa a inexistência de tolerância para com outros cultos religiosos que não o católico. Tampouco implica em conversões forçadas, eis que isso afronta a própria definição do ato de fé: essencialmente intelectual, e por tal uso da razão, fundamentalmente livre. As expressões religiosas não-católicas devem ser toleradas, apenas que, uma vez sendo a verdade absoluta e o bem concreto e determinado, não se faz dessa tolerância um direito ou uma liberdade: o erro não tem direitos, a liberdade não pode ser exercida para a prática de algo contrário ao bem e à verdade.


A defesa do Estado, outro desdobramento daquela sustentação, é, ordinariamente, um bem. Todavia, não pode ser considerada, a exemplo do que fazem alguns filhos do Iluminismo - a saber, os contaminados pela ideologia marxista-leninista -, como, por si só, manifestação de patriotismo... É natural que o homem defenda seu lar, sua família, seu povo, sua nação e, por via de conseqüência, o Estado que rege essa nação. Semelhante defesa traduz-se, muitas vezes, na participação para que as estruturas sociais e políticas desenvolvam-se e proporcionem aquilo que é o fim específico do Estado - o bem comum -, e na incorporação às forças militares do país. Não se pode, contudo, apregoar essa defesa do Estado desvinculada da moral e dos princípios de Direito Natural, sob pena de, com a idolatria do Direito Positivo, sucumbirmos diante do totalitarismo. Os exemplos são visíveis: na Cuba de Fidel Castro, quem reage à sua política comunista é considerado inimigo da pátria e logo denunciado pelos Conselhos de Defesa da Revolução; na Alemanha de Adolf Hitler, patriotismo e pertença ou apoio ao Partido Nazista eram sinônimos; no Brasil de Lula da Silva, quem se opõe à cartilha socialista do PT é logo tachado pela intelectualidade esquerdista e politicamente correta de não solidário, de algoz dos pobres, de patrocinador da exclusão, de membro de uma elite atrasada, de atravancador dos interesses da nação brasileira.


Já a defasada crença de que todas as nações devem necessariamente constituir-se em Estados soberanos criou o modelo ainda vigente dos Estados-nação ou Estados nacionais. Despreza essa tese toda a História da humanidade que nunca confundiu os conceitos, fazendo prevalecer o bom senso e o bem social acima de tudo, guiados, certamente, pela moralidade. Nem todos os Estados, historicamente, eram constituídos de uma nação apenas, e isso não impediu tais estruturas de darem certo - o Reino Franco, mais tarde transformado em Império por Carlos Magno, é um exemplo gritante. De outra sorte, não foram todas as nações que se constituíram em Estados soberanos, e até a mesma nação, por vezes, desmembrou-se, por ter vaso território, em império de vários Estados soberanos, mas nem por isso qualquer das duas hipóteses atestou menor favorecimento.


As lutas entre Israel e a Palestina, e os conflitos desencadeados pela independência do País Basco, na Espanha, têm origem nessa confusão entre Estado e nação, a qual, na presente era, está se desfazendo graças ao predomínio dos grandes blocos mundiais - a União Européia caminha a passos largos para se estabelecer em um Estado só que abrigue todas as nações do continente. Também as duas Guerras Mundiais do século XX foram provocadas pelo exacerbado sentimento nacionalista, o qual conclui que nada deve antepor-se ao Estado, no melhor estilo liberal: como pregava Mussolini, "o Estado é tudo".


Tanto os que sustentam a absoluta liberdade do homem frente ao Estado quanto os que crêem na absoluta liberdade do Estado frente aos demais, são liberais. Uns e outros valorizam aspectos diferentes da mesma filosofia liberal. Desse modo, os liberais clássicos (os iluministas que alardeavam os dois aludidos dogmas) deram à luz seus rebentos, de duas espécies: os liberais contemporâneos, os quais destacam o primeiro ponto como principal em seu sistema; e os totalitários (nazistas, fascistas, socialistas, comunistas e outros "istas"), defensores do segundo. As duas correntes estão erradas, e também quaisquer outras que queiram colocar-se entre ambas, como se fossem um meio-termo: por beberem na mesma filosofia iluminista, todas as vertentes de liberalismo são condenáveis, eis que sua essência - a relativização da verdade e a exaltação da idéia com prejuízo à realidade - é intrinsecamente má.


E-mail: rafavitola@veritatis.com.br


* jurista graduado pela Universidade Católica de Pelotas, escritor e pensador católico

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