O Evangelho Secreto da Virgem Maria

 


Por Santiago Martín


Revista: `PERGUNTE E RESPONDEREMOS`


D. Estevão Bettencourt, OSB


Nº 480 - Ano 2002 - Pág. 229


Em síntese: O livro, falsamente atribuído à Virgem Maria, imagina a Santa Mãe de Deus, no fim da vida terrestre, a contar a João como ela viu a vida e as façanhas de Jesus. Segue a trama dos Evangelhos e a parafraseia, ilustrando-a com notícias fantasiosas. O próprio autor dessa obra afirma tratar-se de uma composição literária que não tem valor histórico senão quando segue o arcabouço do Evangelho.



As editoras Paulus (católica) e Mercuryo (que publica livros falsamente cristãos) oferecem ao público “O Evangelho Secreto da Virgem Maria”, obra de título atraente, mas ilusório. O autor do livro é o sacerdote espanhol Santiago Martín, que, baseado na trama dos Evangelhos, tenta descrever como a Virgem Maria se sentia nas diversas fases de sua missão de Mãe de Jesus. A narração pretende ter base num apócrifo descoberto em Jerusalém pela monja peregrina Etéria, no século IV. No fim de sua vida terrestre, Maria estaria contando a João evangelista a sua vivência junto a Jesus. A leitura é interessante, mas põe o leitor diante de cenas gratuitamente imaginadas que podem passar por autênticas a um leitor desprevenido.


Em sua Nota Final (p. 223) observa o autor:



”Como o leitor, sem dúvida, adivinhado, o conteúdo deste livro é uma composição literária, por mais que beba das fontes da tradição da Igreja e esteja em sintonia com o ensinamento oficial. O autor tentou - com ousadia talvez excessiva - colocar-se na pele do personagem, neste caso a Santíssima Virgem, para tentar expressar aquilo que ela deve ter sentido e como deve lhe ter custado amar nas difíceis travessias que Deus lhe pedira que empreendesse. Em todo caso, o resultado - o autor é também consciente disso - não é mais do que aproximado; se é difícil saber o que pensa, experimenta ou sofre outra pessoa, o mistério se torna ainda mais insondável quando se trata de nada menos que o mistério da Imaculada, daquela que foi concebida sem pecado e que jamais conheceu a mancha que nos perturba tanto a alma quanto o corpo. Se a leitura deste relato serviu para conhecer mais Maria, para amá-la mais e para imitá-la melhor, todos aqueles que trabalharam nesta obra se darão por satisfeitos e altamente recompensados. Se não é este o caso, como nas antigas representações de teatro, rogamos ao leitor que nos perdoe e seja indulgente conosco”.


O traço feminino que o autor mais põe em relevo, é o amor... amor de Maria a Jesus e a São José, seu esposo, como também o amor de Jesus a toda a humanidade.



Propostas estas considerações gerais, merecem atenção alguns tópicos particulares do livro.


ALGUNS PONTOS PARTICULARES


1. A consciência de Jesus



O Jesus desse “Evangelho” apócrifo ignora coisas importantes:



”Disse-me que sabia que Deus era seu Pai e sobre sua concepção não saberia responder. Inclusive perguntou-me se tinha acontecido algo extraordinário” (p. 108).



”estava chegando aos trinta anos e continuava em casa, cuidando de sua mãe... Uma vez mais, Deus o punha à prova com essa espera tão prolongada, que não se sabia quando iria terminar. Deus lhe ensinava a escutar sua voz” (p. 129).


Donde as perguntas: Jesus ignorava algo da sua identidade?... algo da sua missão?



Em outros termos: Visto que Jesus era verdadeiro homem e verdadeiro Deus, pergunta-se: Jesus, como homem ou em sua consciência psicológica, sabia que era Deus? Sabia que a sua natureza humana estava unida à divina e subsistia pela Segunda pessoa da SS. Trindade?



Eis a resposta mais plausível que a estas perguntas se possa dar: Jesus tinha uma só pessoa, que era divina, ou a pessoa do Filho de Deus. Encarnando-se, essa pessoa nada perdeu do que era e possuía eternamente; por conseguinte, mesmo peregrino na terra, o eu de Jesus conhecia tudo o que Deus conhece: o mistério da SS. Trindade com sua riqueza de atributos, e todas as coisas.



Além da sua natureza divina, Jesus tinha uma natureza humana. Esta, embora não tivesse um eu humano próprio, mas vivesse do eu do Filho, tinha uma consciência psicológica, isto é, a faculdade de conhecer a si mesmo (como todos nós a temos). É aqui que se coloca a pergunta: como essa consciência humana de Jesus via a humanidade de Jesus?


Respondemos. A consciência humana de Jesus:


1) Sabia que Jesus era verdadeiro homem e vivia como verdadeiro homem;


2) Sabia que subsistia pela subsistência da Segunda pessoa da SS. Trindade.


3) Não podia crer que tinha uma pessoa humana; isto implicaria em Jesus uma tremenda ilusão a respeito de si mesmo.



Em conseqüência, Jesus teve uma experiência religiosa tal como nenhuma criatura humana teve. Por isto podia dizer que ninguém conhece o Pai senão o Filho e ninguém conhece o Filho senão o Pai (cf. Mt 11, 25s). Não era possível que Jesus tivesse a consciência humana de si mesmo sem conhecer que Ele tinha Deus como Pai... o Pai que é a primeira pessoa da SS. Trindade.



Na consciência de Jesus, o Divino tinha a supremacia; o principal traço dessa consciência era saber-se Filho de Deus. Isto, porém, não atenuava em Jesus a noção de ser verdadeiro homem, portador do destino do mundo inteiro, chamado a uma vida autenticamente humana até a morte, e morte de cruz.



Todavia não é necessário dizer que Jesus tinha sempre de modo plenamente atual a consciência de ser o Filho de Deus. Com outras palavras: não somos obrigados a crer que Jesus pensasse a todo momento: “Eu sou o Filho de Deus”; podemos admitir que ele possuísse tal noção como um hábito que nunca se apagava, mas que nem sempre emergia das profundidades da sua consciência; paralelamente, um rei, embora nunca ignore que é rei, nem sempre está a recordar que é rei da sua nação.



2. Uma ou três mulheres?



O autor identifica Maria, irmã de Marta e Lázaro, com a Madalena:



”Do outro lado, encontravam-se a outra Maria, irmã de Lázaro e Marta, a que chamam de Madalena...” (p. 194).



Em nossos dias a exegese distingue três mulheres, que os antigos identificavam entre si numa só, chamada Madalena. Com efeito:



- a irmã de Marta e Lázaro é uma santa mulher, que escolher “a melhor parte”, pondo-se a ouvir o Mestre (Lc 10, 41);


- Madalena é aquela de quem Jesus expulsou sete demônios; tornou-se seguidora do Senhor (Lc 8, 1-3);


- há ainda uma mulher anônima, que em casa de Simão fariseu lavou os pés de Jesus com suas lágrimas de pecadora arrependida e os enxugou com seus cabelos.


Por ser pecadora, esta terceira mulher foi identificada com Madalena, a endemoniada, e, por ter lavado e ungido os pés de Jesus, foi identificada com Maria, irmã de Marta e Lázaro, que ungiu os pés de Jesus (mas não os lavou com lágrimas, porque não era mulher de má vida); cf. Jo 12, 1-3.



Eis como de três mulheres se fez uma só; são muito tênues os traços que pretensamente as identificam entre si. É mais correto distingui-las.



Quanto à adúltera de Jo 7, 53-8, 11, é uma quarta mulher.



3. O sinal da Cruz



Conforme o apócrifo, Jesus fazia o sinal da cruz antes mesmo da sua Paixão, quando a cruz era o patíbulo da ignomínia - o que é anacrônico. A Cruz só foi honrada após a Páscoa do Senhor. Por conseguinte não têm propósito os seguintes dizeres:



”Jesus abençoou S. José moribundo e fez suavemente, como à sua avó, o sinal da cruz em sua testa, em seus olhos, em sua boca e em suas mãos” (p.126; cf. p. 122).


4. João Batista, primo de Jesus?


À p. 133 lê-se:



Diz Maria: “Foi meu próprio filho quem me falou da alegria que havia sentido ao ver seu primo João”.



A suposição de que Jesus e João batista eram primos um do outro deve estar baseada na hipótese de que Maria e Isabel eram primas uma da outra. Ora tal hipótese é infundada. O texto grego de Lc 1, 36 diz que Isabel era syggenís de Maria, ou seja, parente, familiar. Isabel devia ser bem mais velha do que Maria. É oportuno guardar o sentido amplo do texto grego.



5. Verônica



À p. 196 lê-se:



”Ali nós nos pusemos também contigo. Ela se chamava Verônica e, ao saber que eu era a mãe, dirigiu-me a palavra e, após abraçar-me fortemente, entregou-me o que levava nas mãos”.



Verônica teria enxugado a face ensangüentada de Jesus e esta teria ficado gravada no respectivo pano. Tal episódio não se encontra nos Evangelhos. É de autenticidade discutida; o nome Verônica pode provir de vera eikón (verdadeira imagem).


Eis algumas das considerações que o livro de Santiago Martín sugere. O autor o conclui com um Epílogo, no qual lembra que Deus é amor e espera a resposta do amor dos homens (p. 222).


Direitos reservados à Ed. Mercuryo, São Paulo (SP), 130 x 200 mm, 223 pp.

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