O primado de Pedro na carta aos Gálatas



O que parecia ir contra o primado de Pedro... o proclama!

Fonte: Apologetica
Autor: J.M. Bover, SJ livro: Teología de São Paulo BAC Madrid, 1967, pp. 473-484.
Tradução: Rogério Hirota

O que ensina a Epistola aos Gálatas sobre a autoridade ou hierarquia eclesiástica? A Carta magna da liberdade cristã, justifica a rebeldia de Lutero, ao passo que condena como uma usurpação a potestade dominadora dos bispos e a autoridade soberana do Pontífice Romano? O Papa, segundo São Paulo, é um Vigário ou um adversário de Jesus Cristo?


Este problema é mais vital para o cristianismo que o da justificação pela fé; as soluções opostas que dão o catolicismo e o protestantismo constituem a diferença mais radical entre o que os divide. A importancia do problema justificará o empenho que colocamos em seu estudo.


De um modo general e compreensivo poderíamos estudar o problema, recolhendo tudo quanto São Paulo ensina na Epístola aos Gálatas sobre a autoridade hierárquica da Igreja. Neste sentido poderiamos notar que toda a Epístola não é outra coisa senão que um exercício ou atuação, ao mesmo tempo que uma apologia, da autoridade apostólica que para si reclama São Paulo. Podemos assinalar também o fato significativo de que São Paulo reconhece nos chefes da Igreja mãe de Jerusalém uma autoridade superior a sua. Mas, visto que nosso estudo é mais teológico que exegético, prescendiremos por enquanto estes como fatos secundários, para assim concentrar toda nossa atenção no problema fundamental e central da autoridade que São Paulo reconhece no apóstolo São Pedro. Este problema é verdadeiramente questão de vida ou muerte, tanto para eo protestantismo como para o catolicismo.


Os protestantes, tantos os antigos como modernos, tem frequentemente apelado a Epístola aos Gálatas para fazer mostrar aos católicos que o Pedro da Epístola, o Pedro real e autêntico, débil, inconsequente, duramente repreendido por São Paulo, em nada se parece com o chefe soberano da Igreja universal que eles tem fantasiado. Por outra parte, muitos teólogos católicos, contentes com os argumentos decisivos que em favor do primado de São Pedro fornecem os Evangelhos, pelo que toca a Epístola aos Gálatas se limitam a resolver a dificuldade objetada pelos protestantes. A solução da dificuldade basta, sem duvida, para manter em pé a tese católica, abonada por outros argumentos mais poderosos. Mas, se a Epístola aos Gálatas nos oferece um argumento positivo em favor do primado de São Pedro, por que contentarnos com uma solução negativa? Se podemos resolver usando as mesmas armas que contra nós disparam, por que temos de nos limitar a defender de seus tiros? A Epístola aos Gálatas nos convida a tomar a ofensiva; não é, portanto, justo manter-se na defensiva. Deixando, pois, de um lado todas as outras considerações, nos propomos demostrar que na mesma Epístola aos Gálatas São Paulo nos dá repetidos testemunhos da autoridade suprema de São Pedro; testemunhos, algumas vezes, implícitos, tácitos, indiretos, mas não menos eficaces a verdade católica, da qual, pode subsistir sem o apoio destes testemunhos, fica, sem duvida, con eles mais firmemente confirmada.


São tres os testemunhos que São Paulo dá sobre o primado de São Pedro: 1.18-19, a visita que lhe fez poucos anos despois de sua conversão; 2.7-9, apostolado da circuncisão, que no concilio de Jerusalém ele e todos os fieis reconhecem em São Pedro; 2.11-15, o discurso que contra São Pedro pronuncia pouco despois em Antioquía. Examinemos particularmente cada um destes tres testemunhos.


1. A visita de São Pablo a São Pedro


Escreve o Apóstolo: Passados tres anos, subi a Jerusalém para visitar (em grego “historésai”) a Cefas, e estive con ele quinze dias. Aos demais apóstolos não vi senão a São Tiago, o irmão do Senhor (Gál. 1, 18-19). Antes de examinar o valor teológico deste testemunho, é indispensável uma breve exegese desta importante passagem.


Depois de seu longo retiro na Arabia, São Paulo, volta a Damasco, sobe dali a Jerusalén para visitar a Cefas. Que este Cefas seja São Pedro, hoje em dia ninguem o coloca em duvida, porque é evidente. São Paulo fala de Cefas como de um dos apóstolos, e entre os apóstolos não havia outro Cefas além de Simão Pedro. Aonde se nota este nome de Cefas, que sem mais explicações de Paulo a Simão, filho de Jonas. Vemos aqui que o nome aramaico de Cefas que Jesus Cristo deu a Simão, precisamente ao lhe prometer a autoridade suprema sobre toda a Igreja, se empregava correntemente ainda no mundo grego como seu nome próprio. Podemos dizer que Paulo emprega enfáticamente o nome de Cefas, para dar razão a visita que fez, Como se dissesse: visitei Simão por ser o chefe supremo da Igreja. A palavra visitar, que temos usado por falta de outra mais exata, não reproduz adequadamente a força do verbo original “historésai”, que significa conhecer de vista, ter uma entrevista, visitar por atenção e respeito. Com isso São Paulo quer dizer que desejou conhecer pessoalmente a São Pedro, oferecer-lhe seus respeitos e falar detenidamente com ele. E com ele esteve quinze dias, hospedado, ao que parece, em sua casa. Com este interesse em visitar e falar a Cefas contrasta singularmente a atitude de Paulo a respeito dos demais apóstolos. Não teve somente o intuito de lhes visitar e que nem sequer os viu, com excessão de São Tiago. A maneira indireta de mencionar, como por via de preterição, o fato de haver visto simplesmente a São Tiago, indica um caráter ocasional deste encontro e a importancia secundaria que lhe atribuíu São Paulo. E isto porque que São Tiago era bispo de Jerusalém e irmão do Senhor.


Notemos aqui duas dificuldades que teve São Paulo: uma no fato de subir a Jerusalém; outra na menção deste fato, ambas muito significativas. Por uma parte, subiu a Jerusalén partindo Damasco, de onde teve que fugir correndo risco de vida, como se refere nos Atos (9,24-26) e na Segunda Corintios (11,32-33). E ao subir a Jerusalém São Paulo podia prever as desconfianças ou prevenções que havia de falar entre os fieis e a hostilidade dos judeus, como se refere também nos Atos (9,26-30). De fato, nos quinze dias, teve também que fugir de Jerusalém para não cair nas mãos dos judeus, que tentavam mata-lo. Em tais circunstancias, ir a Jerusalén somente para visitar a São Pedro supõe-se em São Paulo grandes desejos e muito interesse em vê-lo .Com tudo isso o Apostolo trata de provar a origem divina de seu Evangelho, não recebido nem aprendido de homem algum, mas por revelação de Jesus Cristo (Gál. 1,12). Por isto acrescenta a continuação dizendo que logo após sua conversão não subiu a Jerusalém para receber o ensinamento dos que antes dele eram apóstolos. E passados tres anos, subiu a Jerusalém para visitar a Pedro. Adverte, é verdade, que somente esteve com ele quinze dias, tempo realmente insuficiente para adquirir o pleno conhecimento do Evangelho que possuia, mas mais que suficiente para por em evidência o interesse e importância da visita.


Examinemos agora o significado desta visita. Paulo, em circunstâncias difícieis, vai a Jerusalém somente com o objetivo de ver e falar com Pedro, exclusivamente com Pedro. Pedro não era o bispo de Jerusalém, nem por seus dotes pessoais sobresaia tanto sobre os demais apóstolos.Qual pode ser o objetivo de semelhante visita? Evidentemente não era esta uma visita de mera curiosidade. O caráter de São Paulo e a palavra que ele emprega para expressar o objetivo dessa visita excluem semelhante hipótese. Tampouco se dirigiu a Pedro para que o instruisse na doutrina do Evangelho. O mesmo São Paulo exclue explicitamente semelhante hipótese. O verdadeiro motivo da visita não pode ser outro senão a superioridade de Pedro sobre os demais apóstolos e sua posição eminente na Igreja.


Bengel, autor protestante, disse de Pedro, com ocasião desta visita: «Hunc ergo Paulus ceteris antetulit» (“Paulo prefere Pedro aos demais”) (In Gal. 1,18). Mas antes dele, e melhor que ele, São João Crisóstomo, o mais insigne dos Padres orientais afeiçoado como ninguém ao grande Apóstolo dos gentios, havia escrito: “Subiu (a Jerusalém) como quem vai a alguém superior e mais antigo, e por somente ver o rosto de Pedro empreendeu o caminho… Não para aprender algo dele, mas somente para vê-lo e honra-lo com sua presença. Não se diz “idéin”, quer dizer, para “ver” a Pedro, mas “historésai”, quer dizer, para “vê-lo e conhece-lo”, o modo como se fala quando alguém vai “ver e conhecer” as grandes cidades que visita: por isso julgava Paulo que valia a pena emprender semelhante viagem com a unica finalidade de ver a esse homem; veja que grande benevolência mostrou com Pedro, já que emprendeu a peregrinação por sua causa e se deteve com ele por um tempo… Vemos que honra a Pedro e o ama mais que a qualquer um dos demais, já que não disse que subiu para ver aos demais apóstolos, mas somente a Pedro” (MG 61,631-632).


Por conseguinte, a visita de Paulo é um testemunho esplêndido da superioridade ou supremacia de São Pedro, supremacia que lhe coloca acima de todos os apóstolos: supremacia em Jerusalém, sobre o mesmo bispo de Jerusalém; supremacia que se extende fora dos limites da Palestina sobre os fieis que vivem no meio dos gentios; supremacia não fundada em seus proprios dotes pessoais. Semelhante supremacia não pode ser mais de dignidade ou de autoridade. E como no Evangelho não existe supremacia por mera dignidade ou honra, contraria ao exemplo e os preceitos mais taxativos do divino Mestre (Mt. 20,24-28; Mc. 10,41-45; Lc. 22, 24-27), temos que concluir que semelhante supremacia era de autoridade ou de jurisdição. Agora bem: a autoridade suprema de jurisdição, exclusivamente propria de São Pedro entre todos os apóstolos, é o que nós católicos entendemos quando falamos do primado de São Pedro. Podemos concluir com São João Crisóstomo: “Pedro era eminente entre os apóstolos, boca dos discípulos e cabeça do grupo ( em grego “kai korufé tou xoroú”) Pelo qual Paulo veio a ver antes dos demais” (In Io. hom.88 n.1: MG 59,478). Então, porque Pedro era singularmente distinguido entre os apóstolos, porque era o portavoz e como a boca dos discípulos, porque era o cume, a cabeça ou o chefe do coro apostólico, Paulo, deixando os demais apóstolos, subiu a Jerusalém para visita-lo.


2. São Pedro, «apóstolo da circuncisão»


Para entender exatamente o valor e significado do apostolado da circuncisão, que São Paulo atribue a São Pedro, temos que ler a relação que nos faz o Apóstolo de sua ida a Jerusalém para submeter a aprovação de seu Evangelho aos chefes da Igreja mãe. Recorreremos somente aos conceitos mais importantes para nosso objeto:


Catorze anos mais tarde, subi outra vez a Jerusalém[...] E subi em conseqüência de uma revelação. Expus-lhes o Evangelho que prego entre os pagãos, e isso particularmente aos que eram de maior consideração, a fim de não correr ou de não ter corrido em vão.Entretanto, nem sequer meu companheiro Tito, embora gentio, foi obrigado a circuncidar-se.Mas, por causa dos falsos irmãos, intrusos - que furtivamente se introduziram entre nós para espionar a liberdade de que gozávamos em Cristo Jesus, a fim de nos escravizar -, fomos, por esta vez, condescendentes, para que o Evangelho permanecesse em sua integridade.Quanto aos que eram de autoridade - o que antes tenham sido não me importa, pois Deus não se deixa levar por consideração de pessoas -, estas autoridades, digo, nada me impuseram. Ao contrário, viram que a [evangelização] dos incircuncisos me era confiada, como a dos circuncisos a Pedro (porque aquele cuja ação fez de Pedro o apóstolo dos circuncisos, fez também de mim o dos pagãos). Tiago, Cefas e João, que são considerados as colunas, reconhecendo a graça que me foi dada, deram as mãos a mim e a Barnabé em sinal de pleno acordo. (Gál. 2,1-9).


Este pasagem, em que São Paulo parece equiparar seu apostolado con o apostolado de Pedro, frequentemente tem sido apresentado como uma dificuldade contra a existência de um primado de jurisdição único e universal. Não obstante, examinado atentamente, longe de ser uma dificultad contra o primado, é um argumento positivo em seu favor. Não será difícil demostra-lo.


Mas antes notemos brevemente que o apostolado de que se fala aqui não significa, diretamente ao menos, potestade de jurisdição, mas o ministerio da pregação. E a distribuição ou demarcação deste apostolado entre Pedro e Paulo não é exclusiva e cerrada. Como São Paulo pregou com frequência aos judeus, assim também São Pedro não poucas vezes pregou o Evangelho aos gentios. Com esta demarcação etnológica ou geográfica somente se assinala o campo ordinário do ministério evangélico designado aos dois príncipes dos apóstoles.


Por esta declaração, todo nosso raciocinio se resume nestas afirmações: por uma parte, São Pedro, como Apóstolo da circuncisão, possui a autoridade suprema sobre a Igreja dos judeus-cristãos; por outra parte, São Paulo, o Apóstolo da não-circuncisão, e com ele toda a Igreja dos cristãos vindos dos gentios, está submetido a jurisdição do Apóstolo da circuncisão. A conclusão destas duas afirmações combinadas é que São Pedro era o chefe supremo da Igreja universal.


São Pedro atribue São Paulo de um modo especial e característico o apostolado da circuncisão. O apostolado neste caso, como já temos advertido, significa somente o ministério da pregação evangélica. É verdade. Mas perguntamos: por que razão, semelhante apostolado, se atribue com especialidade e ainda com certa exclusão a Pedro? Porque, é claro, não era somente Pedro que predigava o Evangelho aos judeus. Portanto, se o exercício deste apostolado não era exclusivo de São Pedro, a razão de atribui-lo especialmente e ainda exclusivamente a São Pedro não pode ser outra senão que São Pedro tinha o governo ou direção suprema deste apostolado. Tem mais ainda. Por qual título correspondia San Pedro ao governo supremo deste apostolado? Porque São Pedro não era o bispo da Igreja mãe de Jerusalém, muito menos encarnava em suas ideias e em seu proceder a tendência judaica. Estes dois títulos evidentemente correspondiam melhor a São Tiago, o bispo de Jerusalém e que muitos consideravam como o representante da tendência judaica. E também não corresponde a São Tiago, mas a São Pedro, o apostolado da circuncisão. O verdadeiro título deste apostolado, distinto dos precedentes e superior a eles não é outro senão que a autoridade ou jurisdição suprema que Pedro tinha, com exclusão de São Tiago, sobre toda a Igreja dos judeus-cristãos. E semelhante autoridade, que não era local, era necessariamente universal. E sem esta autoridade suprema não se explica, nem sequer pode se conceber, que São Paulo e os mesmos chefes da Igreja de Jerusalén houvessem atribuido a São Pedro a direção suprema do apostolado da circuncisão. São Pedro, portanto, possuía o primado sobre toda a fração judaica da Igreja.


E deste primado judaico se segue necessariamente o primado universal. Antes de prova-lo pelo testemunho de São Paulo na passagem que estudamos, serão úteis algumas observações de caráter más geral.


Em verdade, Jesus Cristo poderia ter fundado sua Igreja sem investir a seus enviados ou representantes a verdadeira autoridade espiritual. Mas a partir do momento que nos consta positivamente a existência da autoridade da Igresja, seria um absurdo, contrario a vontade de Jesus Cristo e ao testemunho da Escritura, supor a coexistência de varias autoridades independentes. A unidade da Igreja, que tão insistentemente recomendou o divino Mestre, ainda na mesma Epístola aos Gálatas, exige imperiosamente que o principio de autoridade existente na Iglesia se reduza a unidade. Portanto, se Pedro tem o primado sobre a Igreja dos judeus-cristãos, o tem igualmente sobre a Igreja dos fieis vindos dos gentios. Pelo contrario, faltaria na Igreja a unidade de regime, tão necessaria em toda sociedade bem organizada.


Alem disso São Paulo ensina também na Epístola aos Gálatas, que os judeus e os gentios formam um só corpo em Cristo Jesus, mas não por títulos iguais. Não são um ou outros dois elementos homogêneos que se combinaml, nem menos os gentios absorvem aos judeus, mas, pelo contrário, são os judeus que os incorporam a si e como absorven aos gentios para formar o Israel de Deus, como formosamente diz o Apóstolo (Gál. 6,16). Os judaizantes, a quem São Paulo combate nesta Epístola, desejavam que os gentios, ao converterem-se ao cristianismo, recebessem a circuncisão para assim a formar parte da descendência de Abraão. O Apóstolo responde a isto negando a necessidade da circuncisão, mas concedendo e colocando em evidência a necessidade de se formar parte da descendencia de Abraão, no qual os gentios alcançam mediante a fé e o batismo em Cristo Jesus. Em virtude desta lei providencial, tantas vezes e de tantas maneiras proclamada por São Paulo, segue que os gentios, ao serem associados à Israel, tem de reconhecer igualmente a autoridade que na nova teocracia, na Israel espiritual, foi estabelecido por Jesus Cristo. Por conseguinte, o primado sobre a Igreja dos judeu-cristãos contem em si o primado da Igreja universal.


Assim os fatos concordan com estes principios gerais. Nessa mesma passagem que estudamos, São Paulo declara nobremente sua atitude a respeito de São Pedro. O apostolado dos gentios e o apostolado da circuncisão não são dois apostolados independentes: necessitam seguiir em comum acordo. E ao se colocar em acordo, não entram com igualdade de direitos: o apostolado dos gentios pede o reconhecimento e a aprovação do apostolado da circuncisão.


Que o Apóstolo dos gentios quer e necessita proceder de comum acordo com o Apóstolo da circuncisão não exige demostração nem declaração; para se convencer basta uma simples leitura da passagem. Notaremos assim duas coisas.


Primeiro, que São Paulo, se vê na necessidade de expor seu Evangelho aos personagens mais caracterizados da Igreja de Jerusalém e não o faz porque duvide da verdade de seu Evangelho: ele sabia muito bem e nos afirma repetidamente, que seu Evangelho o havia recebido por revelação de Jesus Cristo (Gál. 1,12 e 16). E se vê na necessidade de expor-lo ante aos chefes da Igreja mãe.


Segundo, diz respeito aos judaizantes, que eram os que de fato colocavam impecilhos a sua pregação, não somente nega um acordo com eles, mas se opõe e os trata com dureza, chamando-lhes falsos irmãos intrusos, que haviam se introduzido para espiar nossa liberdade, que temos em Cristo Jesus, com a intenção de escravizar... Aos quais -acrescenta Paulo- fomos, por esta vez, condescendentes, para que o Evangelho permanecesse em sua integridade (Gál. 2,3-5). Esta diferente maneira de portar-se a respeito dos judaizantes e dos chefes da Igreja de Jerusalém é muito significativa: é sinal evidente de que São Paulo, ao colocar-se de acordo com os chefes, não o faz simplemente pela paz, mas por consciÊncia e para assegurar o fruto de sua pregação evangélica.


E tem mais: o apostolado dos gentios e o apostolado da circuncisão não entram em negociações com igualdade de direitos. Não são os chefes da Igreja de Jerusalém quem ajudam a Paulo, mas Paulo a eles. Ele lhes expõe seu Evangelho; que nada falam em corrigir nem acrescentar a este Evangelho: o aprovam plenamente. Eles, além disso, reconhecem a missão divina de pregar aos gentios confiada a São Paulo; eles dão-lhe as destras como prenda de paz e de comunhão; e assim, finalmente, ratificam o acordo de que Paulo evangelizasse aos gentiles, e eles a circuncisão. Não se trata, pois, de negociações entre duas partes iguais, mas pelos passos dados por São Paulo no desejo de obter o reconhecimento e aprovação oficial da Igreja de Jerusalém. E para qué? O mesmo Paulo nos diz: para não correr ou haver corrido em vão, isto é, para não comprometer o fruto de sua pregação evangélica. Notemos que se refere a sua pregação entre os gentios. Se o apostolado dos gentios não poderia ser exercido frutuosamente, nem sequer por Paulo que havia recebido de Deus o Evangelho e a missão de pregar, sem a aprovação do apostolado da circuncisão, é sinal que os fiéis gentios reconheciam a suprema autoridade de que por antonomasia era considerado como o Apóstolo da circuncisão.


Portanto, se por uma parte o apostolado dos gentios estava submetido a autoridade e direção do apostolado da circuncisão, e, por outra parte, a suprema autoridade e direção deste apostolado de estava nas mãos de São Pedro, portanto ele na qualidade do Apóstolo da circuncisão, era o chefe supremo de toda a Igreja.


3. São Pedro e São Paulo em Antioquía


O chamado "incidente de Antioquia", que se dá com o discurso de São Paulo contra São Pedro, parece na primeira vista um grave impecilho contra o primado de S. Pedro. Não é de se espantar que os protestantes tenham tirado partido dessa dificuldade, e ainda exagerado, contra a doutrina católica do primado. Mas se bem analisada, estudada e entendida essa dificuldade se desvainece; mais ainda, se converte em argumento positivo, mais eficaz que os anteriores, em favor da doutrina católica. Vamos demonstra-lo. Mas antes será conveniente reproduzir a pasagem em que fala S. Paulo no incidente de Antioquía. Disse o Apóstolo:


Quando, porém, Cefas veio a Antioquia, resisti-lhe francamente, porque era censurável.Pois, antes de chegarem alguns [homens] da parte de Tiago, ele comia com os pagãos convertidos. Mas, quando aqueles vieram, retraiu-se e separou-se destes, temendo os circuncidados.Os demais judeus convertidos seguiram-lhe a atitude equívoca, de maneira que mesmo Barnabé foi levado por eles a essa dissimulação.Quando vi que o seu procedimento não era segundo a verdade do Evangelho, disse a Cefas, em presença de todos: Se tu, que és judeu, vives como os gentios, e não como os judeus, com que direito obrigas os pagãos convertidos a viver como os judeus? (Gál. 2,11-14).


Antes de analisar este passagem convém notar duas coisas. Primeiramente, alguns antigos entenderam que ou Cefas de quem se fala não era S. Pedro, ou que a atitude de S. Paulo não foi de séria oposição, mas uma espécie de comedia que convinha de antemão com o mesmo São Pedro. Sem duvida, estas hipóteses cortariam a raíz da dificuldade. Mas não as admitimos, nem ninguém as admite hoje em dia. Porque é evidente, que S. Paulo fala com S. Pedro, ou, contra S. Pedro. Alias falamos agora da autoridade de S. Pedro, não de sua infalibilidade. A autoridade não pode subsistir sem a prerrogativa da infalibilidade, como de fato assim as tem os chefes dos Estados. Notemos que S. Paulo não ataca a doutrina de S. Pedro, mas seu proceder prático. Mais ainda, desde o momento que ataca a S. Pedro de inconsequente e de simulação, pelo mesmo caso nos dá testemunho positivo de que S. Pedro não errou na doutrina; se errou foi precisamente porque não conformava com suas obras: Fica em pé assim a sentença de Tertuliano, que o erro de Pedro «conversationis fuit vitium, non praedicationis» (“foi um erro em seu comportamento, não em sua pregação”, De praescript. 23: ML, 2,42). Ou, como alguem modernamente disse, utilizando do jogo de palavras insinuado por S. Paulo, o erro de Pedro não foi de ortodoxia, mas de ortopedia[1].


Entedido isto, examinemos o fato com S. Pedro e a atitude que toma S. Paulo.


Estamos em Antioquía, cuja Igreja estava em sua maioria composta de gentios. Pouco depois do chamado concilio de Jerusalém, aonde se havia definido a liberdade dos gentios a respeito da lei mosaica, chegou à S. Pedro, o qual, em conformidadr com o resoluto de Jerusalém, não teve o menor receio em viver e comer com os gentios, sem ater-se, portanto, as prescrições da lei relativas a distinção aos de fora. Mas é aqui que chegam de Jerusalém certos emissários de São Tiago; e Pedro, temendo aos da circuncisão, foi se retirando do trato com os gentios. O efeito deste retração medroso foi desastroso. Todos entenderam, sem duvida, que Pedro obrava não por convicção, mas por debilidade ou por uma condescêndencia mal entendida. Sua atitude era, como diz S. Paulo, uma simulação, ou, segundo a força da palavra original “hypócrisis”, uma hipocrisia, uma especie de comedia. E esta simulação se arrastou aos demais judeus e o que mais espantou e doeu em S. Pablo, é que afetou ao mesmo Barnabé, seu compaheiro de apostolado até então entre os gentios, ele que em Jerusalém trabalhou tanto e tão bem para libertar aos gentios do jugo da lei mosaica. Esta retração de Pedro, de Barnabé e de todos os judeus, além de ser sumamente doloroso para os gentios, colocava em sério perigo a verdade do Evangelho, a paz e a unidade da Igreja.


Foi terrivel o conflito criado pela simulação de Pedro. Mas nos perguntamos: que força tão avasaladora teria essa simulação de Pedro para arrastar atrás de si todos os judeus e ao mesmo Barnabé? Vale a pena reflexionar um pouco sobre este fenômeno a primeira vista tão extranho, pois seu exame nos dará uma das probas mais eficazes e convincentes do primado de S. Pedro, reconhecido e acatado por todos, tanto judeus como gentios.


A Igreja de Antioquia estava composta principalmente de gentios, gozosos com o recente decreto do concilio de Jerusalém. Já a presença de Pedro nesta Igreja de gentios não deixa de ser significativa. Então, a principio, Pedro se porta como um deles, sem preocupar-se com as prescrições mosaicas. E como Pedro, os demais judeus que havia em Antioquía. Em semelhantes circunstancias, a tímida simulação de Pedro, se Pedro houvesse sido simplesmente um dos apóstolos, haveria suscitado os enojos, os protestos, as reclamações dos gentios, e nada mais. A Pedro restava então retirar-se não do trato com os gentios, mas da cidade. E passa-se tudo o contrario. Os gentios se calam; os judeus o imitam; Barnabé desmente a si mesmo. Alem disso, Pedro não havia pronunciado uma só palavra para exortar aos demais que seguissen seu exemplo; não ameaçou com anatemas; não defendeu seu modo de proceder. Somente seu exemplo, negativo, tímido, simulado, contraditorio, reprenssivel, foi, como diz S. Pablo, uma coação moral, que forçava todos a judaizar. Ja antes do concilio de Jerusalén outros haviam feito o que fazia Pedro agora, e seu exemplo se despreciou.Como agora o exemplo de Pedro arrasta a todos? E Barnabé, amigo íntimo de Paulo até então de carater tão forte e independente, que pouco depois se apartou de Paulo e que havia comprometido seu apostolado entre os gentios, por que cedeu tão fácilmente a simulação de Pedro? E não lhes ocorreu sequer que estavam se opondo ao decreto do concilio?


O ejemplo indeciso de Pedro faz mais força que o decreto de um concilio! Deveria haver algo em Pedro para que somente seu exemplo dominasse de tal manera… Este algo não eram seus dotes pessoais. Humanamente, S. Paulo superava muito a S. Pedro. O que dava tal força ao exemplo de Pedro era sua autoridade suprema e universal, reconhecida e acatada por todos. Seu exemplo não era imitavel, mas a autoridade daquele que o dava pesava mais que os decretos de um concilio apostólico.


Diante ao conflito criado pela debilidade ou condescendencia de Pedro, qual atitude tomou Paulo? Ele mesmo o diz. Viu que Pedro, inconsequente com seus principios, não procedeu neste caso conforme a verdade deo Evangelho, e era, portanto, culpavel e reprenssivel. Por isto se opôs abertamente. A esta atitude leal e decidida responde seu maravilloso discurso, com o qual se propõe solucionar o perigoso conflito. Não nos interessa agora a apreciação moral da atitude de S. Paulo, se bem que podemos notar a moderação e respeito com que fala a S. Pedro. O que nos interessa são as consequências que se desprendem da atitude e das palavras do grande Apóstolo dos gentios.


Ninguém que conheça S. Paulo, mesmo quando não fosse mais que por haver lido a Epístola aos Gálatas, duvidará da perspicácia de sua inteligencia em assumir o peso dos fatos e das pessoas, nem menos duvidará da nobre franqueza e resolução ao dizer o que sente. Em tais circunstâncias, vejamos o que S. Paulo dissee, e o que não disse, em seu discurso contra a simulação de S. Pedro. Não se pode esconder que a razão da eficácia que teve o exemplo de São Pedro era a autoridade que os demais davam a sua pessoa. Em tal caso, se esta autoridade não houvesse sido legítima e verdadeira e S. Paulo não ataca a autoridade de S. Pedro. E em tais circunstancia não ataca-la era reconhece-la. Aelm disso, S. Paulo em seu discurso se dirige somente a S. Pedro; isto basta para seu intento. Faltam todos, e Paulo fala somente a Pedro. Não se dirige aos demais para refutar Pedro. É que não considerava suficiente para solucionar o conflito convencer e endireitar aos demais se não convensesse e encaminhasse a Pedro. Ou, melhor ainda, pensou que não ganharia convencendo aos demais se de antemão não convensesse a Pedro.


Sem isto não se arrancaria o mal da raíz. Por isto fala só de Pedro e somente a Pedro. Nem tampoco menciona o concilio. Se ele jugasse que a autoridade do concilio era superior a de Pedro, o recurso mais eficaz para desautorizar a conduta de Pedro teria sido apelar ao concilio. E S. Paulo não apela ao concilio, e concilio apostólico. O que faz então ?


Apela de Pedro a Pedro: de Pedro, que em um caso particular não obra conforme a verdade do Evangelho, a Pedro apóstole e supremo depositario da verdade do Evangelho; de Pedro vacilante e inconsequente nas obras a Pedro chefe supremo da Igreja. Necessitou assim grande ousadia e grande ousadia desenvolveu S. Paulo ao opor-se abertamente a S. Pedro; mas esta mesma ousadia de sua atitude e de suas palavras é para nós a mais segura garantia de que S. Paulo, ao não atacar a autoridade de S. Pedro, ao apelar de Pedro a Pedro, reconhecia, como todos os demáis, ainda que de maneira contrária, a suprema autoridade hierárquica do Príncipe dos Apóstolos. Tenhamos, por conseguinte, que a atitude e as palavras de S. Paulo, longe de ser uma negação ou uma dificuldade contra o primado de S. Pedro, é sua mais esplêndida confirmação. Paulo não opõe a Pedro nem a sua propria autoridade e nem a autoridade dos demais apóstolos reunidos no concilio: convencido de que o conflito criado pela suprema autoridade de Pedro somente o mesmo Pedro, voltando a si, poderia com sua autoridade suprema soluciona-lo.


Conclusão


Na Epístola aos Gálatas, S. Paulo faz sua propria apologia: defende energicamente sua autoridade de Apóstolo de Jesus Cristo, defende a verdade de seu Evangelho, defende a santidade de sua doutrina moral. E ao fazer sua propria apologia, Paulo faz a apologia mais brilhante do primado de S. Pedro. Paulo, além disso, se mostra nobremente autoritario. Sua Epístola aos Gálatas não é mais que um ato de autoridade apostólica. E enquanto reclama para si a autoridade de Apóstolo, combate resultadamente, sem ceder em nenhum ponto, aos judaizantes, destituidos da autoridade. Em contrapartida a respeito de Pedro, se rende a sua autoridade. A visita somente a Pedro, pede a aprovação de seu apostolado e de seu Evangelho, e quando se opõe a debilidade de Pedro, o faz apelando a mesma autoridade daquele a quem se opõe. E juntamente da testemunho de que todos, o mesmo que ele, se renden a autoridade de Pedro. É que Pedro recibeu de Jesus Cristo uma autoridade única, eminente, soberana e universal. E ao reconhecer esta autoridade única, S. Pablo confessa e testifica o primado de São Pedro.


NOTAS


[1] A carta de Paulo diz que Pedro não “caminhava retamente”, em grego “ortopodousin”.

Postar um comentário

Deixe seu Comentário: (0)

Postagem Anterior Próxima Postagem