Sessenta e oito, mística, satanismo

 



A atualidade da gnose antiga e de suas perversões, que podem se insinuar até no mais alto pensamento católico. Entrevista com Alessandro Olivieri Pennesi, docente da Pontifícia Universidade Lateranense


de Giovanni Cubeddu



A questão da New Age e a atualidade das crenças gnósticas levou dois Pontifícios Conselhos, o da Cultura e o do Diálogo Inter-Religioso, a compartilharem recentemente um documento em formato de “relatório provisório”, ao mesmo tempo “guia para os católicos empenhados na pregação do Evangelho e no ensino da fé em todos os níveis da Igreja” e “convite a compreender essa corrente cultural”.



A última ceia, Salvador Dalí, 1955, National Gallery of Art, Washington


Entre os autores citados nos estudos cristãos tomados como referência pelos redatores do relatório, Alessandro Olivieri Pennesi é o único italiano. Sacerdote romano e docente na Universidade Lateranense, é citado graças a seu Il Cristo del New Age, editado pela Libreria Editrice Vaticana. Texto exaustivo, que já se abre com um capítulo dedicado a Cristo na gnose contemporânea (que, tanto quanto a antiga, vive da “desvalorização do presente”, eliminando qualquer possibilidade de salvação histórica para o homem) e põe em evidência mais uma vez o “fundo comum esotérico-ocultista” daqueles que, tendo “acessado as mesmas fontes” dos cristãos, interpretaram-nas com a pretensão de ultrapassá-las, na perspectiva de uma nova era, para afirmar um “Cristo de sempre”, princípio abstrato e desencarnado.


Começamos a conversa com padre Olivieri Pennesi partindo do documento vaticano.


ALESSANDRO OLIVIERI PENNESI: Nos ambientes dos estudiosos, já se esperava o relatório vaticano. Alguns notaram o seu atraso substancial, já que o documento estava em preparação havia um bom tempo. Seja como for, é preciso registrar que já em 1993 o Papa advertiu para a expansão da New Age num encontro com os bispos norte-americanos. Os mais atentos entre eles, aliás, já tinham consciência disso e haviam preparado cartas pastorais sobre o contágio de algumas comunidades locais. A Conferência Episcopal fez o mesmo na Itália, com um documento de 1993: O empenho pastoral da Igreja diante dos novos movimentos religiosos e das seitas. É notável o esforço que os redatores vaticanos fizeram para oferecer um instrumento de trabalho que possa ser utilizado um pouco por toda parte, posto que o fenômeno New Age existe da América Latina ao Japão.


A difusão dessas posturas e crenças já chegou ao nível popular.


OLIVIERI PENNESI: O documento da Congregação para a Doutrina da Fé de 1989, Carta aos bispos da Igreja Católica sobre alguns aspectos da meditação cristã, já é um texto de referência sobre a atenção que se deve dar à ritualização das gnoses antigas, onde a salvação aconteceria por meio do conhecimento, esotérico, para poucos. Acerca da prática da New Age (ou prática gnóstica, que significa mais ou menos ý mesma coisa) no nível da base, há muitos exemplos. Para dar apenas um, o último texto vaticano sobre a New Age chama a atenção para o uso do eneagrama, que vem se expandindo de forma alarmante: é um símbolo de caráter originalmente iniciático, que se desenvolveu no âmbito esotérico-sincretista, tornando-se depois sistema de classificação da personalidade em nove tipos psicológicos, que serve para a busca de uma auto-realização por via esotérica e/ou mágica. Neste último caso, a auto-divinização se dá em função da aquisição do poder, que se torna concreta também por meio da forma extrema do satanismo. Estamos em plena gnose. Em ambientes cristãos anglo-americanos, esse método ganhou espaço no campo da orientação e direção espiritual (e os bispos norte-americanos criaram uma comissão para dedicar-se especialmente a esse fenômeno).


O que o senhor nota na reflexão teológica?


OLIVIERI PENNESI: No campo do diálogo inter-religioso, conheço autores que, procurando pontos de contato com as religiões orientais, acabam por aderir a temas gnósticos. Acrescento que existe uma espiritualidade ecológica católica que chega quase a acolher a divinização do mundo criado na figura da mãe terra (por que, depois disso, não se virá a erguer o arquétipo universal da Virgem Mãe, em lugar da virgem Maria?). São temas promovidos, por exemplo, em alguns de seus escritos, por Leonardo Boff e pelo ex-dominicano Matthew Fox, que fundou em Oklahoma a University of Creation Spirituality. Em geral, quem concorda com essas teses elimina também o pecado original, substituindo-o pela “bênção original”. Então o homem, se é bom e não precisa de graça nenhuma, deve se ocupar ele mesmo de recuperar a centelha de Deus que lhe foi posta ab initio. A dialética entre natureza e graça é apagada. Existe também uma teologia da energia, que diz respeito aos fluxos cósmicos caros à New Age, e que, no campo da inculturação católica, parece ter adquirido cidadania especialmente no Extremo Oriente.


A seu ver, por meio de quais percursos se chega a desnaturar a fé?


OLIVIERI PENNESI: Simplificando, o que se quer, talvez com a melhor das intenções, é estar à la page, é chegar até o homem de hoje, só que, no fundo, degradando-se ou acreditando que o senso religioso é o fator do encontro. Além disso, essa gnose New Age afirma poder transformar o homem sem dor, anula a própria idéia de pecado. Ao passo que, na vida cristã, está presente o mistério da cruz, da dor que o próprio Jesus padeceu. Se não é Jesus quem salva, é uma idéia não-católica de auto-salvação que acaba por seduzir certos ambientes eclesiais. Como na Profecia de Celestino, de James Redfield, bíblia gnóstica contemporânea, onde depois de nove graus se chega à iluminação perfeita. Ou como na chamada teologia católica do processo, sempre no âmbito norte-americano, que corre o risco de abrir as portas à auto-salvação.


Há escritos do religioso americano Maloney sobre New Age e misticismo cristão que parecem ficar do lado da New Age, acolhendo alguns de seus princípios, como a “consciência crística”: algo que não tem, de certo ponto de vista, dificuldade em insinuar-se no pensamento católico, até no mais alto nível.


Portanto, um pensamento não-católico pode estar se difundindo também na Igreja...


OLIVIER PENNESI: As interpretações distorcidas a respeito da pastoralidade do Concílio Vaticano II têm certa responsabilidade nisso. É o caso da incompreensão do que significa a atenção aos “sinais dos tempos”. Seguramente, a New Age é um sinal dos tempos, com o qual se confrontar, com isso todos concordamos... mas não para ir além da tradição, da concretude, como a gnose induz a fazer sempre. Aldo Natale Terrin, questionando o pós-moderno, afirma que a Igreja de hoje viveria aceitando um duplo pertencer: poder ser católica (mas de que modo?) e ao mesmo tempo uma outra coisa, vangloriando-se por aceitar impunemente outras fontes. O duplo pertencer não apenas seria aceito no interior da Igreja, em seus vários níveis, mas faria parte da própria proposta da Igreja para o homem contemporâneo. É um pacto tácito, interno e externo. Aldo Natale Terrin acrescenta que o cristianismo reduzido a religião não pode de forma alguma proteger-se da New Age, não pode defender-se, pois ela carrega em si o espírito de uma época que não pretende confrontar um mundo religioso definido (cf. Terrin. New Age. La religiosità del postmoderno. Bolonha, 1993). Além disso, há outro sério perigo a propósito da New Age; a revista Jesus (março de 2003) afirma que o contexto próprio do New Age seria o esoterismo e o ocultismo. E eu concordo com isso, pois a New Age é apenas uma etiqueta para esses conteúdos, e um fenômeno que certifica simplesmente o quanto já é vasta a extensão do esoterismo e do ocultismo.


Qual a difusão da New Age?


OLIVIERI PENNESI: Há uma expressão atribuída a Malraux, de certo ponto de vista inquietante e profética, segundo a qual o século XXI seria místico, ou não existiria de jeito nenhum. Isso, unido à perda da experiência da fé na Europa que se acreditava cristã, permite entender o quanto pode ser comum a adesão a uma fé pagã, pré-cristã, mágica (que sobrepõe à criação original um “reencantamento” do mundo, recuperando uma visão mítica que a primeira evangelização pusera de lado). E aqui voltamos também ao duplo pertencer de que falávamos.

Por outro lado, a presença de um certo satanismo existe in nuce nas próprias raízes da New Age, ou seja, na teosofia, onde está previsto o culto a Lúcifer. Lúcifer não seria o mal, mas a outra face do próprio Deus. A fundação cultural a que se referia Alice Bailey, primeira anunciadora da nova era, se chamava Lucis Trust (Lucis é abreviação de Lúcifer). Vocês escreveram muito sobre Jacob Frank, o frankismo... e sobre a purificação buscada por meio do mal (dado que para eles o próprio mal vem de Deus).

A tentativa de divinização do homem que a New Age propaga, por meio de uma transformação que pode se realizar


mediante um trabalho sobre a própria pessoa, acontece mediante uma recuperação da idéia de alquimia. Na Profecia de Celestino há a metáfora da espiritualização do homem, que se torna pura energia: uma tentativa gnóstica de remeter à centelha divina. Que existe também num outro dos textos sagrados da New Age, Percurso em milagres. É um livro que nasceu no ambiente acadêmico nos Estados Unidos, por obra da judia Helen Schucman. Esta afirmava entrar em contato com seu eu profundo, recebendo nele a “revelação” de Cristo...


Definitivamente, não resta quase nada da figura histórica de Jesus Cristo na New Age.


OLIVIERI PENNESI: Mas, sem uma esperança histórica, o que o cristianismo se torna? Entre os estudiosos da New Age, fala-se, entre outras coisas, de uma “cristosofia” que vai contra a história, que lança mão de textos alternativos ou apócrifos para “preencher o tempo” entre a apresentação no Templo e a vida pública de Jesus, introduzindo subrepticiamente - como fizeram os “sessenteoitistas” - as viagens esotéricas de Jesus, sua iniciação entre os essênios da comunidade de Qumran, ou suas visitas à Índia budista... É sintomático o exemplo de uma publicação como Rei Nuý onde quem viveu e fez o 1968, depois de longa peregrinação a partir do marxismo, encontra-se agora numa nova posição, gnóstica. E seria interessante - em tempos nos quais a escatologia gostaria de introduzir a todos numa guerra mundial definitiva - uma leitura política dos resultados desse novo posicionamento.

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