Autor: Octavio Carmo
A exegese bíblica voltou a estar na ordem do dia quando o Pe. José Tolentino Mendonça, actual secretário da Comissão Episcopal da Cultura, apresentou a sua tese de doutoramento tendo por base uma aproximação narratológica ao Evangelho de Lucas. A interpretação dos textos bíblicos continua a suscitar nos nossos dias um vivo interesse e muita discussão, sinal da importância fundamental da Bíblia para a vida da Igreja.
O termo exegese vem do grego “ek egnomai”, pensar, interpretar, arrancar para fora do texto. A exegese Católica foi marcada, durante séculos, por apegar-se aos métodos tradicionais: usava mais a tradição do que a Bíblia. Mesmo no século XIX, a tendência era ainda conservar a apologética, a defesa da fé.
Nessa altura, a Bíblia foi colocada em xeque pelo cientificismo, pela secularização, pelo liberalismo racionalista: a resposta da Igreja veio através de Leão XIII, em 1893, com o Documento "Providentissimus Deus", uma defesa da Bíblia contra os ataques do racionalismo.
Ainda persistia, contudo, a impressão de que os exegetas católicos, eram impedidos de desempenhar um trabalho científico sem restrições, e que desta forma a exegese católica, em relação à protestante, nunca poderia estar completamente ao nível dos tempos.
Cinquenta anos depois, em 1943, Pio XII publica um outro documento importante sobre a Bíblia, a encíclica "Divino Afflante Spiritu". Desta vez, a Igreja defende a Bíblia contra aqueles que queriam negar uma contribuição das ciências no estudo da Bíblia, pugnando por uma interpretação apenas "espiritual" da Bíblia.
A Bíblia é ao mesmo tempo "palavra humana", e como tal está sob o domínio da ciência, e é também "palavra divina", e como tal expressa um sentido "espiritual", não deduzido de interpretação subjectiva, mas indicado pela condição objectiva do texto. Este é o tema do documento "A Interpretação da Bíblia na Igreja", de 1993, a cargo da Comissão Pontifícia Bíblica.
Há hoje em dia diferentes métodos de interpretação da Bíblia, muito variados nos seus processos e abordagens. Alguns preferem considerar o texto na sua dimensão histórica, procurando explicar a sua origem e processo de formação; nasce a tese, segundo a qual, é preciso percorrer as etapas da génese e evolução do texto, evitando qualquer subjectivismo interpretativo.
Este método tem o nome de histórico-crítico e articula-se em quatro momentos fundamentais: a crítica textual, que procura estabelecer um texto fidedigno, na base de uma comparação dos manuscritos antigos; a crítica filológica; a crítica literária, que analisa a história das formas literárias, das tradições e da redacção do texto; a crítica histórica, que procura avaliar a credibilidade histórica do que se relata e encontrar o contexto histórico de origem de cada livro.
Outra via de interpretação é a que tenta explicar o texto a partir da sua forma actual, em que o todo esclarece a sua relação com as partes e vice-versa. A análise semiótica é recente e utilizado em conjunto com outros métodos críticos, atendo-se rigorosamente ao texto.
A aproximação narrativa bíblica, por seu lado, aplica ao texto as categorias da narratologia ou estudo da narração. O Pe. Tolentino Mendonça fala no “regresso ao texto” e trata-se, neste caso, de efectuar uma análise sincrónica do mesmo, considerado na sua unidade e coerência interna e, mais precisamente, segundo os elementos e as técnicas da narração.
A exegese canónica é um método de interpretação recentemente que está particularmente atento à forma final do texto bíblico, sem descurar um exame histórico-crítico do mesmo. Afirma-se que o sentido bíblico dos textos é o canónico, o sentido que cada um revela no contexto do conjunto dos livros bíblicos.
Há ainda quem tenha aplicado à interpretação da Bíblia a teoria marxista da sociedade. A exegese materialista tem um modo especial de entender as “superestruturas” de ordem económica e política, com a intenção de valorizar a ideologia revolucionária capaz de mudar a sociedade.
Igualmente difundida é a exegese fundamentalista ou literal, sobretudo entre as seitas ou movimentos mais conservadores do cristianismo. Este tipo de leitura absolutiza e sacraliza a “letra” da Bíblia, rejeitando todas as formas de aproximação crítica, pressupondo que o texto inspirado tem autoridade e evidência indiscutíveis e óbvia por si mesmas. Ate praticamente ao Concílio Vaticano II, de facto, a inspiração divina da Bíblia era entendida como uma acção sobrenatural exercida pelo Espírito Santo nas faculdades dos escritores bíblicos, movendo-os directa e imediatamente como instrumentos seus, para conceberem rectamente com a inteligência e quererem escrever fielmente com a vontade tudo o que o Espírito Santo lhes mandasse.
Factores como a reflexão bíblico-teológica sobre as raízes sociais da inspiração bíblica, a descoberta de documentos escritos do antigo Próximo Oriente pelas escavações arqueológicas e a aplicação da crítica histórica e literária aos estudos bíblicos foram permitindo uma mudança de perspectiva na forma de entender as linguagens da Bíblia.
Nacional | Octávio Carmo| 20/07/2004 | 12:33
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