Antigo testamento: Lendas ou História Real?

 


Revista: “Pergunte e Responderemos”

D. Estevão Bettencourt, osb.

Nº 510 – Ano 2004 – Pág. 545.


ANTIGO TESTAMENTO: LENDAS OU HISTÓRIA REAL?


Em síntese: O artigo dá continuidade a quanto já foi escrito em PR 485/2002, 445ss, apontando as figuras de Moisés e Davi como fidedignas e realçando a referência ao pagamento em siclos nos episódios anteriores ao ano 600 a. C. (as primeiras moedas foram cunhadas pelos persas nessa data aproximadamente).


É discutida a historicidade de personagens e episódios do Antigo Testamento, visto que as escavações arqueológicas nem sempre confirmam os relatos bíblicos. Em PR 485/2002, pp. 445ss foi abordada a história dos Patriarcas, que, considera à luz de certos indícios, aparece digna de crédito. Prosseguiremos o estudo, levando em conta as figuras de Moisés, Davi e a referência ao siclo ¹.


1. Moisés


Embora tenha desempenhado papel importante no Egito do século XIII a. C., Moisés é totalmente desconhecido fora do mundo bíblico; donde a pergunta: por que nada se encontra a respeito dele nas inscrições e nos documentos do Egito? Terá realmente existido? - Para entender este silêncio, levem-se em conta dois fatores:


a) os faraós mandavam gravar as suas façanhas heróicas nas pedras de seus tempos: os administradores confeccionavam listas de receitas e despesas..., mas nos templos do Egito nunca se registravam desastres ou a tragédia das tropas impedidas de atravessar o Mar Vermelho...


b) Mais: para escrever, os egípcios usam papiro, matéria que se deteriorava na umidade do país; eram bem conservados os rolos de papiros enterrados ou guardados em túmulos. Por conseguinte não causa surpresa o silêncio relativo a Moisés no documentário do Egito.


2. Davi


O rei Davi (1010-970) foi muito importante em sua época não somente por sua atuação em Israel, mas também por sua projeção fora do país. Não obstante, as fontes literárias dos povos vizinhos não o mencionam; daí a questão: terá existido mesmo?


Em resposta note-se que naquela época (por volta do ano 1.000 a. C.) os egípcios não se interessavam por assuntos de fora das suas fronteiras. Quanto à Assíria, estava ocupada em debelar as tribos aramaicas que se agitavam e tinham invadido a Babilônia, além de terem fundado o reino de Damasco. No tocante a Tiro, sabe-se que os seus reis foram amigos de Israel, mas também nos documentos de Tiro não há referência a Davi. Nem este fato causa estranheza, pois Tiro é cidade, ainda hoje existente, de cujo passado quase nada se sabe; não apresenta inscrição alguma de seus próprio reis. Por isto não causa espécie o silêncio sobre o rei Davi.


Recentemente foi descoberto em Tel Dan (fronteira setentrional de Israel) um fragmento de tábua de pedra portadora de inscrições em caracteres fenícios: registra a vitória de um rei cujo nome se perdeu pela fragmentação da pedra; poderia ser Razael de Damasco: venceu “um rei da Casa de Davi”. Estes dizeres dão testemunho de que, por volta de 849 a. C., havia uma dinastia fundada por um rei chamado Davi. Tem-se assim uma referência extra-bíblica ao rei Davi e à sua descendência.


É importante considerar ainda a armadura com que Davi se muniu para enfrentar o gigante Golias (1 Sm 17, 5-7). “Cobria a cabeça com um capacete de bronze; vestia uma couraça de escamas que pesava cinco mil siclos de bronze e trazia as pernas protegidas por peneiras de bronze e um escudo de bronze entre os ombros. A haste de sua lança era como uma travessa de tear e a ponta de sua lança pesava seiscentos siclos de ferro”.


No trecho acima aparece quatro vezes a palavra “bronze” e uma vez o vocábulo “ferro”. Este pormenor oferece valiosa pista para se definir a data do relato. Com efeito, se este tivesse sido redigido em época tardia, ou seja no século VII a. C., ou depois, a proporção dos metais seria estranha, pois então a armadura de um guerreiro seria de ferro; o bronze seria antiquado, ao passo que no século XI a. C, (época de Davi), o bronze era habitual e o ferro ainda era uma novidade reservada a casos especiais, como seria o da ponta de lança. Um escritor que redigisse um relato fictício sobre Davi 400 anos após a morte deste, não teria conhecimento de tais minúcias. Pergunta-se então: se o episódio da luta de Davi contra Golias é digno de crédito, por que não o seria a narrativa de outras façanhas do rei Davi? ¹


3. Siclos e Moedas


Do livro do Gênesis até os livros dos Reis não há referência a moedas: está só ocorre nos livros posteriores ao exílio (587-538 a. C.); usava-se a palavra “siclo”, que significava anéis ou barras de ouro e prata, com os quais se fazia o comércio. Assim Abraão comprou o campo de Efron por 400 siclos de prata, a fim de lá enterrar sua esposa Sara; cf. Gn 23, 16; o ciclo era posto na balança ou pesado. Verdade é que em 1 Cr 29, 7 se diz que Davi pagou com moedas; isto se explica pelo fato de terem sido os livros das Crônicas escritos após o exílio. As primeiras moedas foram cunhadas e postas em circulação pelos persas no ano de 600 a. C., aproximadamente. Será lícito então concluir que o uso da palavra “siclo” é sinal de que os mencionados livros foram escritos em época remota, como relatos históricos e não como produtos de ficção literária.


Em conclusão seja dito: o conjunto dos indícios catalogados neste Módulo fundamenta satisfatoriamente a tese de que a historiografia do Antigo Testamento é digna de crédito.


4. Salomão


No tocante ao rei Salomão (970-930), a arqueologia é sóbria; os arqueólogos estão divididos. Aplicando o método do Carbono 14, vários pesquisadores afirmam nada ter encontrado que correspondas ao brilho do reinado de Salomão: atividade literária, monumentos, inscrições... O esplendor atribuído aos tempos de Salomão terá ocorrido no reinado de Omri e no de seus sucessores que reinaram na Samaria após o cisma das dez tribos. Tal sentença é contestada por autores que julgam impreciso o método do Carbono 14 tal como foi aplicado pelos colegas.


A questão fica aberta. Veja-se a respeito o artigo de Hubert Lepargneur intitulado “Contestação sobre Salomão” em ATUALIZAÇÃO nº 308 maio-junho 2004, pp. 217-228.


¹ Estas páginas muito devem ao artigo de Alan Millard: La arqueologia y la fiabilidad de la Bíblia, na revista ECCLESIA 2004-2, pp. 147-156.

¹ A bem da verdade, deve-se dizer que, conforme 2Sm 21, 18, foi Elcanã, filho de Jair, quem matou Golias; “a madeira de sua lança era como cilindro de tear”. O autor de 1Cr 20, 5 tenta conciliar as duas tradições dizendo que Elcanã, filho de Jair matou Lacmi, irmão de Golias.

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