O sonhos na Bíblia

 


Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 475 - Ano 2001 - Pág. 567


Em síntese: Desde os tempos pré-cristãos, os sonhos são estima¬dos como revelações da Divindade. Em nossos dias, há cristãos que apelam para a Bíblia a fim de fundamentar seu modo de ver. - Verdade é que, na história bíblica, Deus aparece a falar por sonhos. Mas a própria Escritura acautela o leitor a respeito de falsas interpretações e excessiva valorização dadas aos sonhos.


Os sonhos são um fenômeno natural, que a psicologia explica a partir do inconsciente de quem sonha. Registram-se hoje como outrora divergências a propósito da maneira de entender o simbolismo dos so¬nhos. Apesar destas oscilações, há quem acredite receber mensagens do além através dos sonhos. Para tanto, baseiam-se no testemunho da Bíblia, na qual Deus aparece a falar por sonhos. Eis por que procuraremos, nas páginas subseqüentes, analisar o que o texto sagrado propõe a tal respeito.


1. O pano de fundo não bíblico


Num cenário de vida oriental, não pode deixar de tocar aos sonhos papel importante, pois o homem do Levante, dotado de fantasia particularmente fecunda, vive muito de imagens, símbolos, nos quais ele vê significadas realidades superiores.


Entre os povos antigos, os sonhos eram geralmente tidos como estados de alma nos quais o homem entrava em contato com o mundo dos deuses ou dos gênios (espíritos superiores), recebendo destes admoestações atinentes ao passado ou ao presente, revelações a respeito de acontecimentos ocultos ou futuros; pensava-se que principalmente os reis eram agraciados por tais comunicações do Alto.1 Em particular, aos sonhos da terceira parte da noite atribuía-se grande significado;1 os ho¬mens de tal ou tal religião procuravam dormir nos santuários respectivos; tomavam ingredientes provocadores de sonhos; nos templos de Esculápio (o Deus Médico), era freqüentemente por sonhos que os doentes recebi¬am a indicação do processo de sua cura. Já que as imagens vistas em sonho eram não raro ambíguas, havia intérpretes oficiais das mesmas, que usavam de técnica complexa, aparentemente científica. Para quem não pudesse consultar os adivinhos, existiam catálogos de elucidação.2 É claro que a crença no valor profético dos sonhos estava freqüentemen¬te ligada a superstição, preconceitos humanos, e não raro levava a gra¬ves erros na vida prática (a semelhança do que ainda nos tempos atuais se verifica).


2. No texto bíblico


Chama, porém, a atenção o fato de que na Sagrada Escritura o povo de Israel professa fé nos sonhos e o próprio Deus parece corrobo¬rar esta atitude. Há, sim, episódios bíblicos em que os sonhos, explicita¬mente provocados ou elucidados pelo Senhor, desempenham função notável; tenham-se em vista, por exemplo, os que caracterizam a história do Patriarca José, residente na casa paterna, depois no Egito (cf. Gn 37, 5-11; 40, 5-22; 41, 1-36); os que marcam a vida do profeta Daniel (cf. Dn 2, 4.7); no Novo Testamento, os de S. José, e o dos magos (cf. Mt 1, 20-24; 2, 12s. 19.22).¹


À primeira vista, poderão parecer desconcertantes tão favoráveis alusões aos sonhos na história sagrada. Contudo, após breve reflexão, verifica-se que também estes têm significado condizente com a Sabedoria de Deus.


Já que o oriental, por suas disposições psicológicas, era propenso a deixar-se guiar por imaginações noturnas, considerando-as manifestações da Divindade, o verdadeiro Deus dignou-se utilizá-las para se comunicar com os homens, mesmo pagãos, em particular, porém, com o povo de Israel. 0 Senhor, sem dúvida, pode provocar tais fenômenos psicofisiológicos, e torná-los instrumentos de seus planos. Ora Ele o fez realmente em casos descritos pelos livros sagrados; em Nm 12, 6 lê-se mesmo que as visões e os sonhos eram meios pelos quais Deus se costumava revelar aos profetas.


"Se há entre vós um profeta, é em visão que a ele me revelo, é em sonhos que lhe falo. ”²


Contudo muito se devem notar as restrições que os autores bíbli¬cos impõem à' crença nos sonhos, visando com isto a remover todo ves¬tígio de politeísmo ou superstição que os povos pagãos professavam juntamente com aquela.


Não há, conforme a Bíblia, interpretes profissionais ou técnicos dos sonhos, como os havia entre os babilônios (cf. Dn 2, 2; 4, 3; 5, 15) e os egípcios (cf. Gn 41, 8). A explicação dos sonhos se deve a dom esporá¬dico de Deus; compete a quem, como o Patriarca José e o profeta Daniel, possui o "espírito de Deus".3 Os intérpretes populares de sonhos são condenados pela Lei mosaica junto com os magos, os adivinhos, os necromantes... (cf. Lv 19, 26; Dt 13, 2-4; 18, 10s). Nos tempos da decadência religiosa (séc. VIII/VI) pululavam os falsos profetas, que diziam haver recebido em sonhos autênticas comunicações do Senhor; ora Javé não cessava de acautelar os seus fiéis contra tais ilusões:


"0uço o que dizem esses profetas, que em meu nome proferem falsos oráculos, afirmando: “Tive um sonho, tive um sonho!”... Esses pro¬fetas julgam que poderão fazer esquecer o meu nome ao meu povo mediante os sonhos que contam uns aos outros?" (Jr 23, 25.27)


Também os sábios de Israel, propondo aos jovens discípulos conselhos para a vida, admoestavam-nos contra as imaginações noturnas:


"0 Insensato se entrega a esperanças vãs e enganosas, E os sonhos dão asas aos tolos.


Semelhante àquele que procura apreender uma sombra ou perse¬guir o vento, É quem se prende aos sonhos...

Do que é' impuro, que pode sair de puro?

Da mentira, que pode sair de verídico?

A adivinhação, os agouros e os sonhos são coisas vãs.

Semelhantes às imaginações do coração de uma mulher que está para dar à luz.


A menos que o Altíssimo te envie uma visão,

Não apliques o coração a essas coisas,

Pois os sonhos enganaram a muitos,

Os quais caíram porque neles colocavam a esperança."

(Eclo 34,1-7 [Vg 31,1-6])


Como se vê, este texto, ao mesmo tempo que inculca prudência em relação aos sonhos, não deixa de reconhecer que o Senhor os pode suscitar, a fim de se manifestar aos homens.


A reserva, porém, professada nas passagens acima dá suficiente¬mente a entender que tais fenômenos noturnos estavam longe de cons¬tituir a fonte principal das revelações divinas no Antigo Testamento. Quem confronta os livros sagrados entre si chega à conclusão de que, nos tempos dos Patriarcas, ou seja, nos primórdios da história de Israel (séc. XVIII/XIII), mais freqüentes eram os autênticos sonhos proféticos do que na época da monarquia (séc. XI/VI); os genuínos profetas, a partir do séc. VIII, recebiam as comunicações de Deus geralmente em estado de vigília, ora diurna, ora noturna,1 como atestam alguns dos seus oráculos.


No judaísmo posterior, isto é, nas proximidades da era cristã, recrudesceu entre os israelitas a crença nos sonhos. Estes eram invocados para servir de fundamento a concepções e profecias fantásticas. Na literatura dos rabinos, órgão das falsas predições messiânicas que fervilhavam em Israel sob o domínio romano, os sonhos constituiam estima¬do artifício de estilo, apto a dar autoridade aos oráculos mais surpreen¬dentes.2 Os ascetas judaicos, chamados Essênios, residentes no deser¬to, eram na mesma época assíduos cultores da arte de explicar os sonhos; contemporâneos aos Essênios, em cada ocasião na cidade de Jerusalém exerciam a sua profissão simultaneamente vinte e quatro adivinhos de visões noturnas.3


Estas, porém, eram manifestações que se desviavam da linha da Escritura Sagrada.


¹ No Egito, por exemplo, contava-se que o deus Ptah indicara ao faraó Merenptah o que devia fazer numa ocasião em que povos do mar invadiam o delta do Nilo.


A propósito do faraó Chechonque I narra-se o seguinte: um reizete egípcio viu durante a noite duas serpentes, uma à sua direita, a outra à esquerda. Acordou e, não mais percebendo animais, verificou haver sonhado. Tendo interrogado os intérpretes a respeito desta visão, responderam-lhe que um próspero futuro lhe estava reservado; já senhor do Alto Egito, havia de conquistar o Egito inteiro e fazer aparecer sobre a sua cabeça um abutre, símbolo das terras meridionais, e uma cobra, emblema da região setentrional do país.


Cf. P. Montet, La vie quotidienne en Egypte au temps de Ramsès (Paris), 46-8.


¹ Cf. Homero, Odisséia, 4,837.


² O papiro Chester Beatty III apresenta alguns dos critérios de interpretação, tais como estavam em uso no Egito. O documento data da 19ª dinastia (ca. De 1300 a.C.); refere, porém, idéias contemporâneas à 12ª dinastia (2000-1800). Eis o que se depreende do mesmo:


Em muitos casos, a interpretação do sonho se fazia simplesmente por analogia: um sonho feliz era bom agouro, ao passo que mau sonho pressagiava desgraça. Pão branco em sonho era bom sinal; anunciava prazeres. Sonhar com homens de autoridade e poder também implicava bem-estar para o futuro. Sonhos obscenos valiam como péssimos prenúncios.


Havia, porém, critérios mais complicados, a fim de que a interpretação dos sonhos não ficasse ao alcance de qualquer indivíduo. Assim os trocadilhos ou jogos de palavras eram muito explorados:


Comer carne de asno, em sonho, significava elevação, engrandecimento, pois os conceitos de “asno” e “grande” eram homônimos. Receber uma harpa implicava desgraça, pois o nome boiné, harpa, fazia pensar em bin, mau.


O homem que tivesse tido um sonho inquietador não devia desesperar, pois havia meios para obter os infortúnios previstos... Recomendava-se-lhe que invocasse a deusa Ísis, a qual saberia como defender o devoto dos males que Sete, filho de Nout, estava para desencadear... Também se usava a seguinte receita: umedecer em cerveja alguns pães com ervas verdes; à mistura acrescentava-se incenso, e com o conjunto resultante se esfregava o rosto de quem havia sonhado. Este proceder afugentaria todos os maus agouros transmitidos pelos sonhos.


Cf. Montet, La vie quotidienne en Egypte, 46-49.


No séc. II d.C., Artemídoro de Éfeso, baseado em suas experiências, escreveu cinco livros intitulados Oneirokritiká, código importante para os decifradores de sonhos.


¹ Outras referências a sonhos ocorrem em Gn 20, 3s; 28, 12s; 31, 11s. 24; Jz 7, 13s; 1Sm 28, 6; 1 Rs 3, 5; Jó 33, 15.


² Cf. Jl 3, 1:


“Derramarei meu Espírito sobre todo ser vivo:

Vossos filhos e filhas profetizarão;

Vossos anciãos terão sonhos;

Vossos jovens, visões.”

³ Cf. Gn 40, 8:

“Disseram o copeiro e o padeiro do faraó: “Tivemos um sonho e aqui não se acha quem no-lo explique.” Respondeu-lhes José: “Então não é a Deus que toca interpretar? Narrai-me, por favor, o vosso sonho.”


Dn 2, 27s: “Daniel respondeu em presença do rei e disse: “O mistério que o rei deseja compreender, nem os sábios, nem os magos, nem os encantadores, nem os astrólogos o poderão elucidar. Há, porém, no céu um Deus que desvenda os mistérios e quer comunicar ao rei Nabucodonosor o que deve acontecer na sucessão dos tempos.”


Vejam-se também Gn 41, 16.38s; Dn 4, 5s. 15; 5, 11. 14.


¹ É preciso, sem dúvida, distinguir dos sonhos as visões ocorrentes durante a noite. Estas se deram, por exemplo, na história de Abraão (cf. Gn 15, 12), na de Samuel (cf. 1Sm3), na do profeta Zacarias (cf. Zc 1, 8).


² Basta recordar os apocalipses apócrifos de Henoque, Baruque, Isaías...


³ Cf. M. Gaster, “Divination” (“Jewish”) em Encyclopaedia of Religion and Ethics edited by James Hastings. IV (Edinburgh, 1935), 812.


Data Publicação: 10/03/2008

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