Predestinação e Livre Arbitrio


PARTE 1


Concílio de Trento, Sessão VI (13-1-1547)


"Cap. 12 - Presunção temerária de ser predestinado


805. Ninguém, enquanto peregrina por esta vida mortal, deve querer penetrar tanto no mistério oculta da predestinação divina, que possa afirmar com segurança ser ele, sem dúvida alguma, do número de predestinados [cân. 15], como se o justo não pudesse mais pecar [cân. 23] ou, que se tiver pecado, poderá com certeza prometer-se a si mesmo uma nova conversão. Pois, sem uma revelação toda especial de Deus, não se pode saber quais os que Deus escolheu para si [cân. 16].


(...)


814. Cân. 4. Se alguém disser que o livre arbítrio do homem, movido e excitado por Deus, em nada coopera para se preparar e se dispor a receber a graça da justificação - posto que ele consinta em que Deus o excite e o

chame - e que ele não pode discordar, mesmo se quiser, mas se porta como uma coisa inanimada, perfeitamente inativa e meramente passiva - seja excomungado [cfr. n° 797].


815. Cân. 5. Se alguém disser que o livre arbítrio do homem, depois do pecado de Adão, se perdeu, ou se extinguiu, ou que é coisa só de título, ou antes, titulo sem realidade, e enfim, uma ficção introduzida na Igreja por Satanás - seja excomungado [cfr. n° 793 e 797].


816. Cân. 6. Se alguém disser que não está no poder do homem tornar os seus caminhos maus, mas que Deus faz tanto as obras más como as boas, não só

enquanto Deus as permite, mas [as faz] em sentido próprio e pleno, de sorte

que não é menos obra sua a própria traição de Judas do que a vocação de

Paulo - seja excomungado.


817. Cân. 7. Se alguém disser que todas as obras que são feitas antes da justificação, de qualquer modo que se façam, são verdadeiramente pecados ou merecem o ódio de Deus; ou que, com quanto maior veemência alguém se esforça em se dispor para a graça, tanto mais gravemente peca - seja excomungado [cfr. n° 797].


(...)


825. Cân. 15. Se alguém disser que o homem renascido e justificado está obrigado pela fé a crer que certamente é do número dos predestinados - seja excomungado [cfr. n° 805].


(...)


827. Cân. 17. Se alguém disser que a graça da justificação só se dá aos predestinados para a vida, e que todos os outros que são chamados, são-no, sim, mas não recebem a graça, visto estarem pelo poder divino predestinados

para o mal - seja excomungado."



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PARTE 2



SANTO TOMÁS DE AQUINO

Suma Teológica, I, q. 23, a. 1:


Os homens são ou não são predestinados por Deus?


Objeções pelas quais parece que os homens não são predestinados por Deus:


1. Diz o Damasceno no II livro [1]: "deve-se ter em mente que Deus tudo conhece de antemão, mas que não predetermina tudo. Pois de antemão conhece o que existe em nós e não o predetermina. Mas os méritos e deméritos humanos estão em nós enquanto, por livre arbítrio, somos donos de nossos atos.


Portanto, o que pertence ao mérito ou demérito não está predestinado por Deus. Assim, desaparece a predestinação dos homens.


2. Além disso, como foi dito (q. 22 a. 1 e 2), todas as criaturas estão ordenadas a seus fins pela providência divina. Mas das outras criaturas não se diz que estão predestinadas por Deus. Logo tampouco deve-se dizê-lo dos

homens.


3. Mais ainda. Os anjos, como os homens, são capazes de ser felizes. Mas aos anjos, aparentemente, não corresponde o serem predestinados, pois neles nunca houve miséria. E Agostinho afirmou [2] que a predestinação é o propósito de ter misericórdia. Logo os homens não são predestinados.


4. Por último. Os benefícios que Deus dá aos homens são dados a conhecer aos santos pelo Espírito Santo, como nos diz o Apóstolo em 1 Cor 2,12: Não recebemos o espírito deste mundo, mas o Espírito que vem de Deus para que saibamos aquilo que Deus nos concede. Portanto, se os homens fossem predestinados por Deus, como a predestinação é um dom, a predestinação seria conhecida pelos predestinados. E isto é falso.


Pelo contrário, está escrito em Rm 8,30: Aos que predestinou, a estes chamou.


Solução. É necessário afirmar: É apropriado Deus predestinar os homens. Pois, como foi demonstrado (q. 22, a. 2), tudo está submetido à providência divina. E como também foi dito (q. 22, a. 1), corresponde à providência ordenar as coisas ao seu fim. E o fim para o qual são ordenadas as coisas por Deus é duplo. Um, que ultrapassa a capacidade e proporção da natureza criada, e este fim é a vida eterna, que consiste em ver a Deus, algo que

ultrapassa a natureza de qualquer criatura, como foi provado (q. 12, a. 4).


O outro fim é proporcional à natureza criada, o qual pode ser alcançado com a capacidade de sua própria natureza. E aquilo ao qual não pode chegar com a capacidade de sua própria natureza, é necessário que lhe seja outorgado por outro, como a flecha necessita do arqueiro para chegar ao alvo. Por isso, e falando com propriedade, a criatura racional, capaz de chegar à vida eterna, chega a ela como se esta lhe fosse comunicada por Deus. A razão de tal

comunicação preexiste em Deus, como também nele preexiste a razão da ordem do todo ao fim, que é a providência, como já afirmamos (q. 22, a. 1). A razão de algo que se vai fazer existe na mente do que vai fazer, é uma determinada preexistência do que se vai fazer que existe nele. Por isto, a razão da mencionada transmissão à criatura racional do fim da vida eterna se chama predestinação; pois destinar é enviar. Fica claro que a predestinação, com respeito ao seu objetivo, faz parte da providência.


Respostas às objeções:


1. À primeira deve-se dizer: O Damasceno chama predeterminação à imposição de necessidade; como sucede com as coisas naturais, que estão predeterminadas a algo fixo. Este sentido se apóia no que disse: Pois não quer a malícia e nem força a virtude. Desta forma, não nega a predestinação.


2. À segunda deve-se dizer: As criaturas irracionais não possuem capacidade para aquele fim que ultrapassa a capacidade da natureza humana. Por isso não se diz propriamente que estão predestinadas, embora se abuse às vezes da palavra predestinação para falar de qualquer outro tipo de fim.


3. À terceira deve-se dizer: Aos anjos corresponde serem predestinados como os homens, embora nunca tenha havido miséria entre eles. Pois o movimento não se especifica pelo ponto de partida, mas pelo de chegada. Exemplo: Não importa que algo branco, antes de ser branco, tenha sido preto, amarelo ou vermelho. De modo semelhante, para ser predestinado não importa que alguém seja predestinado à vida eterna saindo de um estado de miséria ou não.


Também pode-se dizer que conceder um bem superior ao merecido é algo que pertence à misericórdia, como já afirmamos (q. 21, a. 3 ad 2; a. 4).


4. À quarta deve-se dizer: Mesmo que por um privilégio especial seja revelada a alguns a sua predestinação, não é conveniente que a predestinação seja revelada a todos, porque os não predestinados se desesperariam, e a segurança de ser predestinado poderia suscitar negligência nos predestinados.


[1] De Fide Orth. c.30: MG 94,972.


[2]. Cf. De diversis quaest. ad Simplic. 1.1 q.2: ML 40,115; Contra duas

epist. Pelag. l.2 c.9: ML 44,586; De Praedest. Sanct. c.3: ML 44,965; c.6:

ML 44,969; c.17: ML 44,985.


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Suma Teológica, I, q. 23, a. 3:


Deus condena ou não condena algum homem?


Objeções pelas quais parece que Deus não condena nenhum homem:


1. Ninguém condena aquele que ama. Mas Deus ama todos os homens, como é afirmado em Sb 11,25: Amas tudo o que existe, e não odeias nada do que fizeste. Logo Deus não condena nenhum homem.


2. Além disso, se Deus condena algum homem é necessário que a condenação seja para os condenados o que a predestinação é para os predestinados. Mas a predestinação é causa de salvação para os predestinados. Logo a condenação será a causa da perdição dos condenados. E isto é falso, pois se diz em Os 13,9: Israel, tu mesmo te perdes; de mim vem o teu auxílio. Logo Deus não condena ninguém.


3. Além disso, não se pode imputar o que não pode ser evitado. Mas se Deus condena a alguém, não pode evitar que pereça, pois se diz em Ecl 7,10: Contempla as obras de Deus, porque ninguém pode corrigir o que Ele

desprezou. Logo não há como imputar aos homens que pereçam. Portanto, Deus não condena ninguém.


Pelo contrário, é dito em Mal 1,2s: Amei Jacó; odiei Esaú.


Solução. É necessário dizer: Deus condena alguns. Já se disse anteriormente (a. 1) que a predestinação é parte da providência, e à providência, como também foi dito (q. 22, a. 2 ad 2), pertence permitir a existência de algum

defeito nas coisas que lhe estão submetidas. Por isso, como pela providência divina os homens estão ordenados à vida eterna, também pertence à providência divina permitir que alguns não alcancem este fim. E a isto se

chama condenar. Portanto, assim como a predestinação é parte da providência com respeito àqueles que, divinamente, estão ordenados à salvação eterna, assim também a condenação eterna é parte da providência com respeito àqueles que não alcançam o dito fim. Daí que a condenação inclua, além da presciência, a providência segundo nosso modo de entender, como já se disse (q. 22, a. 1 ad 3). Assim como a predestinação inclui a vontade de conceder a graça e a glória, assim também a condenação inclui a vontade de permitir a alguém cair em culpa e receber a pena pela culpa.


Resposta às objeções:


1. À primeira deve-se dizer: Deus ama a todos os homens e também a todas as criaturas enquanto lhes deseja algum bem; e, contudo, não quer qualquer bem para todos. Quando não quer para alguns o bem da vida eterna, se diz que os odeia ou os condena.


2. À segunda deve-se dizer: enquanto causa, a condenação não é o mesmo que a predestinação. Pois a predestinação é causa do esperado na vida futura pelos predestinados, isto é, a glória; e é causa, também, do que se recebe na vida presente, isto é, a graça. Pelo contrário, a condenação não é causa do que acontece na vida presente, isto é, da culpa, na qual Deus não tem parte.


Mas, mesmo assim, é causa de sua retribuição futura, isto é, a pena eterna. Mas a culpa provém do livre arbítrio pelo qual se condena e se separa da graça. Este é o sentido do que é dito pelo profeta: Israel, tu mesmo te

perdes.


3. À terceira deve-se dizer: A condenação de Deus não tira a capacidade do condenado. Por isso, quando se diz que o condenado não pode alcançar a graça, não se deve entendê-lo como uma impossibilidade absoluta, mas

condicionada, do mesmo modo que é necessário que o predestinado se salve, como já dissemos (q. 19, a. 8 ad 1), com necessidade condicionada, isto é, que não anule a sua liberdade de arbítrio. Pois isso, se bem que o condenado

por Deus não possa alcançar a graça, porém, o que incorre neste ou naquele pecado o faz seguindo sua liberdade de arbítrio. Por isso, com razão se lhe imputa a culpa.


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Suma Teológica, I, q. 23, a. 4:


Os predestinados são ou não são eleitos por Deus?


Objeções pelas quais parecee que os predestinados não são eleitos por Deus:


1. Dionísio, no cap. 4 De Div. Nom. [1] diz que assim como o sol sem acepção emite sua luz sobre todos os seres corpóreos, assim também Deus o faz com sua bondade. Mas a bondade divina se comunica a alguns sobretudo pela

participação da graça e da glória. Logo Deus comunica sua graça e sua glória sem eleição. Isto pertence à predestinação.


2. Além disso, a eleição se faz entre os que existem, mas a predestinação desde a eternidade se estende também aos que não existem. Logo alguns predestinados o são sem eleição.


3. Mais ainda, a eleição implica certa seleção. Mas, tal como se diz em 1Tm 2,4: Deus quer salvar a todos os homens. Logo a predestinação, que predetermina os homens à salvação, se dá sem eleição.


Pelo contrário, está o que se diz em Ef 1,4: Nos escolheu n'Ele antes da fundação do mundo.


Solução. É necessário dizer: Tal como a entendemos, a predestinação pressupõe eleição, e a eleição pressupõe amor. O porquê disto está em que a predestinação, como se disse (a. 1), é parte da providência, e a providência, como a prudência, é a razão presente no entendimento, dirigindo a ordenação das coisas a um fim, como já se afirmou (q. 22, a. 1). E nada se predetermina para um fim se não há vontade de tal fim. Por isso, a predestinação de alguns à salvação eterna pressupõe, tal como o entendemos, que Deus queira sua salvação. E a isto pertencem a eleição e o amor. O amor enquanto quer para eles o bem da salvação eterna. pois amar é querer o bem

para alguém, como afirmamos (q. 20, a. 2 e 3). E a eleição, enquanto quer este bem para uns e não para outros aos quais condena, como também afirmamos (a. 3). Sem dúvida a eleição e o amor não indicam o mesmo para Deus e para nós. Em nós, a vontade de amor não causa o bem, mas somos incitados a amar pelo bem já existente, escolhendo a quem amar. Por isso em nós a eleição precede o amor. Mas em Deus acontece o contrário, pois sua vontade, pela qual amando quer o bem para alguém, causa que uns alcancem o bem e outros não. Assim, tal como o entendemos, o amor pressupõe a eleição, e a eleição, a predestinação. Por isso, todos os predestinados são eleitos e amados.


Resposta às objeções:


1. À primeira deve-se dizer: Se se considera em geral a comunicação da bondade divina, tal bondade se comunica sem eleição, quer dizer, nada há que não participe algo de sua bondade, segundo foi dito (q. 6, a. 4). Mas se se

considera a comunicação deste ou daquele bem, não se concede sem eleição, porque há bens que são concedidos a uns e não a outros. Nisto consiste a eleição ao conceder a graça e a glória.


2. À segunda deve-se dizer: Quando a vontade de eleger é incitada a eleger pelo bem preexistente, então é necessário que a eleição seja do que existe. Assim sucede em nossa eleição. Mas, como já dissemos (q. 20, a. 2), em Deus não é assim. Por isso, como disse Agostinho [2]: Os que não existem são eleitos por Deus e, mesmo assim, quem elege não se equivoca.


3. À terceira deve-se dizer: Como já foi dito (q. 19, a. 6), Deus quer de forma antecedente que todos os homens se salvem. Esta forma de querer não consiste em querer algo absolutamente, mas de certo modo. Deus não o quer de

forma conseqüente, que consiste em querer algo absolutamente.


[1] § 1: MG 3,693: S. Th. lect.1.


[2] Serm. ad Popul. n.26 c.4: ML 38,173.



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PARTE 3



Trechos retirados do livro:


OS PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA DE SANTO TOMÁS DE AQUINO - AS VINTE E QUATRO TESES FUNDAMENTAIS, Pe. Édouard Hugon O. P., traduzido por D. Odilão Moura O. S. B., EDIPUCRS, Porto Alegre, 1998 (o autor foi conselheiro de várias Congregações Romanas e assessor de três papas: São Pio X, Bento XV e Pio XI - os três pontífices jamais deixavam de consultar o piedoso e prudente dominicano em questões atinentes à doutrina. Em particular, este livro foi escrito por recomendação de São Pio X).


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Capítulo Oitavo


A VONTADE E O LIVRE-ARBÍTRIO


Tese XXI - "Intellectum sequitur, non praecedit voluntas, quae necessario appetit id quod sibi praesentatur tanquam bonum ex omni parte explens

appetitum, sed inter bona quae judicio mutabili appetenda proponuntur,

libere eligit. Sequitur proinde electio judicium practicum ultimum; at quod

sit ultimum voluntas efficit." [*]


"A vontade segue o intelecto, não o precede. Ela se aplica necessariamente

sobre o objeto que lhe é apresentado como um bem que sacia totalmente o

apetite, mas entre os bens que lhe são propostos por um juízo reformável,

ela escolhe livremente. A eleição, portanto, segue o último juízo prático,

mas que este juízo seja o último é a vontade que escolhe" [1].


Os pontos fundamentais que vão afirmados nesta tese visam : 1° às relações

da vontade com a inteligência; 2° à necessidade em que se acha a vontade de

se dirigir para o bem o universal; 3° à sua independência relativamente aos

bens particulares; 4° à relação entre a eleição e o último juízo prático.


[*] Cf. ST I., 82; 83; QQ. disp. De Verit. XIII, 5; De Malo II; II Cont.

Gent. 72 ss; HUGON. Cours. Phil. Thomist. II, II; GARRIGOU LAGRANGE.

Intellectualisme et Liberté. (Revue des Scienc. Philosoph. Et Théolog. -

oct., 1907).


[1] S. T. I, 19.1; HUGON. Cours. Philosoph. Thomist. 111, III.


I - A vontade e a inteligência


O princípio que domina e rege a presente questão, é que a vontade segue a

inteligência, de tal modo que todo ser inteligente, justamente porque é

inteligente, é necessariamente dotado de vontade.


Toda natureza tem uma tendência proporcionada que nasce da forma e sempre a

acompanha. Constituido por sua forma específico, posta por ela em atividade,

o ser recebe dela sua inclinação e por isso verificamos na criação tantas

inclinações irredutíveis quantas as formas diversas: a forma do cristal é

seguida duma tendência que mantém a unidade e faz reparar os ângulos

quebrados segundo o mesmo invariável tipo; a forma da planta é seguida de

uma outra inclinação que busca o bem do todo, faz tudo convergir para a

perfeição da planta, para o seu desenvolvimento, sua conservação e sua

propagação.


Como aqui não há senão a forma natural, não descobrimos senão uma tendência

do mesmo gênero, e a chamamos de apetite inato. O animal que, conservando a

sua própria natureza, recebe a forma intencional ou a imagem dos seres

corporais, deve ter, com seu apetite inato, um apetite sensível, saído da

forma e do conhecimento sensível; o homem e o anjo, que recebem uma forma

intelectual destituída de sua substância, terão também um apetite

intelectual distinto da sua substância, e este apetite é a vontade [2].

Deus, que está no ápice da imaterialidade e da espiritualidade, deve ter uma

vontade perfeita, ato puro e idêntico à substância. Portanto é verdade que

todo conhecimento é seguido dum apetite proporcionado e que o ser

inteligente, precisamente porque é inteligente e assimila espiritualmente os

objetos, deve ter um apetite espiritual ou vontade [3].


[2] Cf. FRANK. Dict. Philosoph., palavra vontade.


[3] Este conjunto constitui o que S. Tomás chama consistentiam naturalem.

Cf. ST I. II 10,1.


Fora de Deus, a vontade não pode ser substância, porque, princípio de

operações acidentais, ela deve reproduzir o mesmo gênero que é o seu, isto

é, o de acidente.


Nossa prova fundamental mostra que a vontade resulta ou emana da essência da

alma por intermédio do entendimento, como o apetite nasce da forma.

Portanto, como à vontade procede necessariamente da inteligência, toda

filosofia que coloca à vontade antes da inteligência ofende a natureza e o

senso comum.


II - Como a vontade se dirige para a o bem universal


Segue-se daí também que a vontade, saída da inteligência, deve ser

esclarecida por ela e se dirigir para o seu objeto, segundo ele lhe é

apresentado pelo entendimento. Quando este propõe o bem universal, que pode

saciar todos os desejos, preencher todas as suas capacidades, satisfazer

todas as suas tendências, a vontade será necessariamente dominada por um

objeto maior que ela mesma, e assim como o nosso espírito adere

necessariamente aos primeiros princípios evidentes e às conclusões que

evidentemente deles derivam, também a vontade se dirige para o último fim,

que é o bem universal, o bem em toda plenitude, e para os meios necessários

e evidentemente ligados a este fim.


Há um conjunto de coisas que formam um todo indissolúvel, sem o qual o nosso

ser humano não poderia subsistir [4], e diante do qual a vontade não poderia

ficar indiferente: é por isso que ela quer necessariamente o bem para si, a

verdade para a inteligência, para as outras faculdades os seus objetos

próprios, para o homem inteiro a existência e a vida. Querer a felicidade é

querer viver para sempre.


[4] P. JANVIER, OP. La Liberté (segunda conferência).


III - Como a vontade se dirige para os bens particulares


Quanto aos bens particulares que a inteligência mostra como não estando

necessariamente ligados ao bem universal, a vontade conserva a sua

independência. Sua escolha é livre, como também o julgamento do espírito é

reformável. Já se vê que a prova fundamental da liberdade é a própria

natureza da substância racional. "O homem é livre, porque é inteligente; o

livre arbítrio é um apanágio e um privilégio do espírito. Onde quer que

exista espírito haverá liberdades" [5]. Ora, esta independência provém da

elevação da alma sobre a matéria. "A vontade humana é livre porque ela é uma

energia capaz de apreender o bem universal e absoluto; essa dimensão imensa

lhe vem da inteligência e da alma. A alma e a inteligência a possuem da sua

independência da matéria, ou, se quiserdes, da sua espiritualidade. Por

isso, espiritualidade da alma e liberdade constituem uma só coisa. Esses

dois dogmas da razão mantêm-se entre si, em nossos espíritos, pelo fio de

ouro e indestrutível da sabedoria, como eles se mantém na realidade pelo

laço duma vida imortal" [6].


O espírito, pela própria causa da sua amplitude, que lhe permite ver todas

as faces da realidade, descobre no objeto finito uma face agradável, que

pode excitar na vontade uma verdadeira complacência, e uma face

desagradável, que pode provocar a repulsa; ele as apresenta à vontade ao

mesmo tempo todas as duas. O objeto assim proposto não poderia dominar a

vontade, porque ele é menor que ela, destinada ao infinito: ele é incapaz de

satisfazer uma capacidade imensa. A vontade tem uma razão de o aceitar,

devido ao primeiro aspecto ou a primeira face, e uma razão de o repelir,

devido ao outro aspecto. Nenhuma alternativa se impõe. Se uma é adotada,

isto provém desta independência, desta amplitude da vontade, semelhante à

amplitude da inteligência e à da alma.


[5] Idem, ibidem.


[6] BOSSUET. Connaissance de Dieu e de soi même. I, n° XV; Traité du Libre

Arbitre; FÉNELON, Traté de l'éxistence de Dieu.


Quando S. Tomás diz que a vontade permanece indiferente em presença dos

objetos finitos, não entende que dela dependa não aprovar nehuma alegria ou

nenhum desprazer, mas somente que a aceitação final ou definitiva vem

somente dela, precisamente por que ela é maior que todos os objetos. Desse

modo é livre a escolha, porque o juízo é reformável - mutabili judicio

proponuntur.


Tal é a grande prova tomista, que confirmam, de outra parte, a consciência e

o senso comum. Ouçamos, quanto a isso, dois pensadores franceses: "Um homem

que não tem o espírito corrompido, diz Bossuet, não necessita que lhe provem

o seu livre arbítrio, pois ele o sente; e ele não sente mais claramente que

ele veja ou que ele viva, ou que ele raciocine, que ele não se sinta capaz

de deliberar ou de escolher" [7]. "Não é verdade, acrescenta Fénelon, que

esta bizarra filosofia que ousa negar o livre-arbítrio na Escola, o suporá

como indubitável na sua casa, e que não será menos implacável contra as

pessoas que se ele tivesse sustentado toda a sua vida, o dogma da maior

liberdade? É visível que esta filosofia carece de unidade e que desmente a

si mesma sem pudor algum".


Mas para terminar a demonstração, será necessário comparar a eleição com o

último juízo prático, porque é a indiferença do juízo que assegura a

liberdade.


IV - Análise da eleição


A psicologia da liberdade compreende uma série de atos coordenados, quer do

lado da inteligência, quer do lado da vontade.


O primeiro é a apreensão do bem no espírito, e lhe corresponde, da parte do

apetite, a volição; depois, vem o juízo pelo qual a razão propõe o fim como

possível e conveniente, que corresponde, na vontade, a intenção do fim. Será

necessária, em seguida, uma pesquisa pormenorizada das medidas a serem

tomadas, é o conselho, que comporta muitas etapas para descobrir os meios

adaptados, ponderar a utilidade de cada um deles, propor os que merecem ser

os escolhidos de preferência. Ao conselho do espírito corresponde na vontade

o consentimento. Qual será então o que irá determinar em última instância o

meio que devemos preferir aos outros? É o juízo prático ao qual, na vontade,

corresponde a eleição.


[7] Cf. ST. I.II 11,18; GARDEIL. La crédibilité I, I; P. PÉGUES. coment. l.

II. l I.


Trata-se, agora, de passar à execução: do espírito é necessário o

mandamento, do lado da vontade, a aplicação ativa, que põe em movimento as

diversas faculdades, e do lado destas assim postas em movimento, a aplicação

passiva. Uma vez que a execução está feita, a vontade repousa no fim

realizado ou no bem possuído: é o gozo, décimo segundo e último ato, que

coroa toda a série [8].


O nosso documento insiste sobre o juízo prático e sobre a eleição. E com

razão, porque a liberdade se define: a faculdade de escolher. (vis

electiva). Todo o jogo da liberdade está nesta harmonia da eleição e do

juízo prático.


Às vezes, há desacordo entre o juízo especulativo e a conduta da vida,

porque o homem escolhe muitas vezes o que a sua razão fortemente condena,

mas, quando o juízo prático está formulado, a eleição segue infalivelmente.

Visto que, com efeito, o espírito é de si mesmo indiferente, o juízo não é

prático, e não será o último, a não ser que a vontade impulsione o espírito

a sair desta indeterminação e a se pronunciar efetivamente neste sentido.


Ora, pelo próprio fato de que ela mesma se aplica a tal parte, ela se engaja

a seguir esta parte. Haveria flagrante contradição em seguir o contrário,

como também quanto ao longo tempo da demora deste juízo prático. É isto uma

necessidade hipotética feita pela própria eleição, é uma lei que é obra

própria da vontade, e que, por conseguinte, atesta sua plena independência e

a garantia da liberdade. Enquanto este juízo prático estiver mantido, a

escolha fica suspensa, mas a vontade poderá aplicar o espírito a uma outra

determinação, e poderá ainda levá-lo à renovação desta determinação a

assumir uma outra. Será, pois, o juízo prático efetivamente o outro? É

realmente a vontade que o faz segundo os termos da nossa tese: at quod sit

ultimum voluntas efficit.


[9] BOSSUET. Traité du Livre Arbitre, XIV.


Esta análise do ato livre é suficiente para refutar a objeção dos

deterministas. Seria a eleição inexplicável, se ela se realizasse sem razão

adequada, mas um motivo suficiente para provocar tal escolha não é motivo

necessitante. O último motivo que necessita é o fim último, o bem universal

e absoluto. Ora, não é para tal objeto que leva a eleição, mas para os bens

particulares. Estes terão sempre, já o dissemos, uma face agradável, e é um

motivo suficiente para serem amado. Se a vontade se fixa num deles, não age

de maneira cega, pois a sua escolha se explica. Mas, como eles também

possuem uma outra face, que é suficiente para afastá-los, nenhum deles se

impõe, e, então, uns são rejeitados e um só aceito, e tal provém da plena

independência da vontade espiritual.


Eis nos seus princípios essenciais, e nas suas grandes aplicações, a

psicologia de S. Tomás.


A primeira tese da ontologia nos levou a encontrar Deus no Ato Puro; a

última da psicologia, nos conduziu à Providência: "Se tivéssemos destruído

ou a liberdade pela Providência ou a Providência pela liberdade, não

saberíamos por onde começar, tanto essas duas coisas são necessárias, e

tanto são evidentes e indubitáveis as idéias que delas temos"


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Capítulo Sexto


A VONTADE DE DEUS


I - A vontade encontra-se em Deus excelentemente


Esta asserção é uma verdade de fé constantemente afirmada nas Escrituras e

expressamente definida pela Igreja [1].


No Antigo Testamento, os Salmos atribuem à vontade divina a criação: "Tudo o

que ele quis, ele o fez no céu e na terra" [2]; "Ele ordenou, e tudo foi

criado" [3]; "Suas obras são grandes e conforme as suas vontades" [4]. Os

Profetas glorificam a eficácia absoluta desta adorável vontade: "Meu

conselho é firme, e todas as minhas vontades acontecem." [5]


Nosso Senhor, distinguindo tão claramente a sua vontade humana da vontade

divina - "Que vossa vontade seja feita e não a minha" [6], prova a

existência das duas. São Paulo assegura que a vontade de Deus tem por objeto

nossa santificação [7], que ela é misteriosa, insondável, toda poderosa,

irresistível [8], boa, benfazeja, perfeita [9].



[1] Uma exposição Teológica não pode prescindir da doutrina das Escrituras e

dos Santos Padres, por isso, trazemos textos de ambos, embora breves.


[2] Ps. CXXV, 6.


[3] Ps. CXLVIII, 5.


[4] Ps. CX, 2.


[5] Is, XL, 10.


[6] Luc., XXII, 42.


[7] I Tess., IV,3.


[8] Rom IX, 18s.


[9] Rom., XII, 2.


O concílio Vaticano I afirma, contra os ateus, os materialistas e os

panteístas, que Deus é infinito na inteligência, na vontade e em todas as

perfeições [10].


Esse dogma está necessariamente ligado com as outras verdades fundamentais

da nossa fé. Não se pode conceber a Trindade sem uma processão de vontade e

de Amor.


A criação é obra de uma vontade eficaz e não menos que de uma inteligência

infinita. Todas as vias divinas referentes ao mundo, à salvação, à reparação

do gênero humano, à graça, à glória, supõem uma vontade infinitamente boa

que gratuitamente ama as criaturas.


Enfim, a vontade, perfeição tão nobre que acompanha a inteligência dos anjos

e a nossa, não pode faltar àquele que é chamado de inteligente e perfeito.

Diz Santo Irineu: "Também Deus pensa quando ele quer, e ele quer quando

pensa: ele é pensamento, vontade e fonte de todos os bens" [11].


II - A vontade de Deus é soberanamente livre em relação a tudo que não é ele


É evidente que Deus necessariamente quer o seu ser, sua vida, sua beatitude,

em uma palavra, tudo o que é ele mesmo. Não podemos ficar indiferentes senão

diante do que é limite, lacuna, imperfeição: dizer que permanece livre em

relação a ele mesmo, seria reconhecer que a sua bondade é medida e a sua

perfeição incompleta. Logo, Deus se conhece e se quer necessariamente; ele

produz espontânea e necessariamente seu Verbo e seu Amor, mas não cegamente,

porque essa dupla ação é espiritual e consciente.


[10] DENZINGER, 1782, 3001.


[11] S. IRINEU. Adv. Haereses, l. I, c. 12; P. G., VII, 574.


Com relação a tudo que não é ele, a sua vontade goza de soberana

independência, que é a liberdade perfeita. Verdade de fé, que muitos erros

tentaram obscurescer.


Os pagãos acreditavam que Deus, ligado pelo destino como os mortais, opera

inúmeras vezes por necessidade. Os monistas, os panteístas, os imanentistas,

submetendo Deus à evolução, atacam sua liberdade, não menos que sua

imutabilidade. Arnaldo de Brescia, Abelardo, Wiclef, Lutero, Calvino, não

conseguem isentar Deus do seu fatalismo. Alguns filósofos nacionalistas,

como Emílio Saisset, Cousin, Robinet, pretenderam que Deus não podia não

criar. Guenther e Hermes parecem dizer que Deus criou o mundo quase tão

necessariamente quanto ele se ama a si mesmo.


A Escritura mostra Deus agindo com plena liberdade. No momento de criar o

homem, ele busca conselho nas profundezas da sua eterna sabedoria e é na

plenitude da sua independência que ele diz: "Façamos o homem à nossa imagem

e semelhança" [12]; "O que ele produziu no céu e na terra, ele o fez porque

quis" [13]; "Não foi devido a uma fatalidade, mas por ele mesmo que ele

criou todas as coisas" [14]. O mesmo se deu na ordem sobrenatural: "Se ele

insufla a graça nas almas, se distribui os carismas, é porque ele o quer e

como o quer" [15].


Os Santos Padres defenderam esse dogma com energia. Diz Teófilo de

Antioquia: "O poder de Deus se mostra ao criar as coisas do nada e a

criá-las com toda liberdade" [16]. Macário, após ter explicado que Deus com

toda liberdade criou o mundo, acrescenta que o homem é feito à imagem de

Deus, porque ele é livre como o Criador [17], "Deus tem toda independência

para agir, observa santo Epifânio, mas de tal modo que ele faz sempre o que

convém a sua divindade" [18]. "Buscar por que Deus criou o mundo, é buscar a

causa da vontade divina, conclui santo Agostinho. Ora, não há nada maior do

que a vontade de Deus, pois não há causa que a determine" [19]. É dizer que

ela é soberanamente livre e independente, porque não tem outra lei que a lei

sempre sábia que o seu bem querer.


[12] Gen., 1, 26.


[13] Ps. CXXXV, 6.


[14] Prov. XVI, 4.


[15] Jo. III, 8: 1, Cor. XII, 11.


[16] S. TEÓFILO DE ANTIOQUIA. Ad Antolycum, l. II; P. G., VI, 1072.


[17] MACÁRIO. Fragm.; P. G., X, 1392, 1398.


[18] S. EPIFANIO. Haeres, 70, 7; P. G., XLII, 349.


[19] S. AGOSTINHO. De 83 quaest., q. 28; P. L., XL, 18.


Numerosas são as declarações do Supremo Magistério a respeito da liberdade

de Deus. O Papa Inocêncio II proclama que Deus poderia fazer de outro modo o

que fez [20]. João XXII condena a proposição na qual Eckart sustenta que o

Pai cria o mundo "como gera o seu Filho" [21]. O concílio de Florença crê e

prega que Deus criou o mundo quando quis e por pura bondade [22]. Pio IX

denuncia as teorias de Guenther, contrárias à fé Católica, referentes à

liberdade de Deus, que está isenta de toda necessidade na produção das

criaturas [23]. O concílio Vaticano I, no capítulo De Deo Creatore,

estabelece primeiramente o princípio da liberdade divina: "Deus cria, não

por necessidade ou indigência, mas por bondade, para manifestar as suas

perfeições nos bens que concede às criaturas, e na plenitude do seu

conhecimento e da sua liberdade, por um designo muito livre - liberrimo

consilio" [24]. Depois, no canon 5°, ataca frontalmente todos os erros,

sejam dos panteístas e dos racionalistas, sejam os de Guenther: "Anátema a

quem disser que a vontade divina não é livre de toda necessidade, mas que

Deus criou o mundo tão necessariamente quanto ele ama a si mesmo" [25].


O Santo Ofício, aos 14 de dezembro de 1887, proscreveu a 18a. proposição de

Rosmini: "O amor pelo qual Deus se ama nas criaturas, e que é a razão pela

qual ele se determina a criar, constitui uma necessidade moral, que, no Ser

perfeito, produz sempre o seu efeito" [26]. Portanto, em Deus não há nem

necessidade moral, nem determinismo físico. Enfim, Leão XIII, afirma e prova

de novo este dogma: "Deus é infinitamente perfeito e soberanamente

inteligente e a bondade por essência; é também soberanamente livre, embora

não possa querer de modo algum o mal da falta, como também não o podem,

devido à contemplação do bem supremo, os bem-aventurados do céu" [27].


[20] DENZINGER, 374. 726.


[21] Idem, 503. 933.


[22] Idem, 706. 1333.


[23] Idem, 1655. 2106.


[24] Idem, 1783. 3002.


[25] Idem, 1805. 3065.


[26] Idem, 1908. 3218.


[27] Encycl. Libertas, 1888.


Para apreciar essa doutrina e responder às objeções, é necessário lembrar as

distinções que trouxemos a respeito da imutabilidade divina: "Embora o ato

de Deus seja em si mesmo infinito, necessário, eterno, o termo não o é:

nenhum objeto criado merece por ele mesmo e necessariamente ser o termo da

vontade divina, porque não é de tal modo perfeito que Deus deva o escolher,

nem de tal modo defeituoso, que Deus o deva necessariamente rejeitar. Por

esse lado, portanto, a independência divina permanece perfeita; e, se tal

plano é adotado, e tal efeito existe, e sem necessidade alguma da parte do

Criador, em virtude duma escolha muito livre, liberrimo consilio, como já o

disse o Vaticano I.


III - A vontade de Deus relativa à salvação dos homens


Há duas grandes categorias de erros inteiramente opostas quanto à vontade

salvífica de Deus. Segundo os Pelagianos, Deus quer igual e indiferentemente

a salvação de todos os homens, se estes a querem por eles mesmos. Eles podem

chegar ao termo sem o socorro da graça, ou, se a graça é necessária como

admitem os Semi-Pelagianos, eles podem pelos seus esforços naturais

prepararem-se e a merecer.

Em posição oposta, os predestinacionistas, e, mais tarde, alguns corifeus da

Reforma ousaram proferir a blasfêmia de que Deus quer a salvação de alguns e

a condenação eterna de outros. Os Jansenistas renovam essa heresia com

algumas matizes: antes da falta original Deus quer a salvação de todos os

homens, depois da queda, ele não quer senão a salvação dos predestinados.

Voltaremos a esses erros sobre a predestinação e sobre a graça. Aqui

contentar-nos-emos de expor a doutrina católica sobre a vontade salvífica,

ou sobre a universalidade da redenção, porque é manifesto que Deus

sinceramente quer a salvação de todos pelos quais ele entregou o seu próprio

Filho à morte.


1° - É de fé que Jesus Cristo morreu para os outros, não somente pelos

eleitos. O Papa Inocêncio X condenou como herética a 5a. proposição de

Jansênio, que Cristo não teria morrido e não teria derramado o seu sangue a

não ser somente pelos predestinados [28]. Os textos da Escritura e da

Tradição que citaremos no momento oportuno, provam ao menos essa primeira

universalidade.


2° - É de fé, admitem comumente os teólogos, que Jesus Cristo morreu por

todos os fiéis. É impossível interpretar de outro modo a afirmação

categórica de S. Paulo: "Ele é o Salvador de todos os homens, e, em primeiro

lugar, dos fiéis": Salvator omnium hominum, maxime fidelium [29]. Além

disso, todos os fiéis são obrigados a crer, como um artigo de fé, as

palavras do Símbolo: "Por nós e para nossa salvação, desceu dos céus,

encarnou-se, sofreu, morreu". Logo, é de fé que Deus quer a salvação de

todos os homens.


3° - É doutrina ao menos próxima da fé que Jesus Cristo morreu por todos os

adultos, até pelos infiéis. Acabamos de ouvir São Paulo nos dizer que, se

Cristo quer especialmente a salvação dos fiéis, ele será, contudo, o

Salvador de todos os homens "Salvator omnium hominum" [30].


[28] DENZINGER, 1096. 2005.


[29] 1. Tim., VI, 10.


[30] I. Tim., II, 1-6.


Demais, ele recomenda orar por todos homens, porque isto é agradável ao

Salvador, nosso Deus, que quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao

conhecimento da verdade. Com efeito, há um só Deus, um só mediador entre

Deus e os homens, o Cristo Jesus, que a si mesmo se deu por resgate de

todos.


Todas as particularidades dessa argumentação do Apóstolo estabelecem que a

vontade salvífica tem um alcance universal e sem restrição: 1° deve-se rezar

por todos, porque Deus quer que todos sejam salvos; 2° há para todos um só e

mesmo Deus, um só e mesmo Mediador; 3° ele propõe a todos no conhecimento da

verdade, o meio de alcançar a salvação; 4° o Cristo pagou por todos, e esta

imensa redenção é ele mesmo.


O Apóstolo inculca por todo o seu ensinamento o dogma da vontade salvífica:

Cristo morreu por todos aqueles que pecaram em Adão, e a sua graça tem maior

universalidade e eficácia para o bem do que a falta de Adão, para o mal

[31]. Ele morreu por todos, para que aqueles que vivem não vivam para si

mesmos, mas para aquele que morreu por todos e que ressuscitou [32].


O Antigo Testamento já havia pregado essa consoladora doutrina. O livro da

Sabedoria explica longamente quanto Deus ama todos os homens e que tem

piedade mesmo dos pecadores endurecidos e dos idólatras de malícia

inveterada e parecer incorrigível [33].


Vejamos agora a interpretação dos Santos Padres. "Deus quer que todos os

homens sejam salvos, diz S. Gregório de Nissa, e a vontade de Deus não está

em causa se alguns se perdem". [34]


Escreve Santo Ambrósio: "Ele quer ter para si todos os homens que criou.

Possas tu, o homem, não fugir para longe de Cristo, não te esconder dele! E,

todavia, ele procura ainda aqueles que se escondem" [35]. Diz S. Próspero:

"Deus tem cuidado de todos os homens. A infidelidade eles devem atribuir a

si mesmos e a fé, à graça de Deus" [36].


[31] Rom., V, 15. ss.


[32] II Cor., V, 14-15.


[33] Sap. XI.


[34] S. GREGÓRIO NISSENO. Adv. Apollin. 29, P. G., XLV, 1187.


[35] S. AMBROSIO. Enarrat in Ps. 39, no. 20, P. L., XIV, 1117.


[36] S. PRÓSPERO. Ad capit, Gallorum, 8; P. L., LI, 164.


Quanto à Declaração do Magistério da Igreja, será suficiente citar o

capítulo III do concílio de Kiersy, em 853: "O Deus todo-Poderoso quer que

todos os homens, sem exceção, sejam salvos, embora, de fato, nem todos se

salvem. Que eles se salvem, é dom do salvador, que alguns se percam, é por

sua falta" [37].


4° - É o ensinamento quase unânime dos teólogos que Jesus Cristo morreu até

pelas crianças sem o uso da razão e que não receberam a graça do Batismo.

Ora, nós vimos que o Salvador deu o seu sangue por todos os que morreram em

Adão. Por conseguinte, pelas criaturas, como também pelos adultos. Logo,

eles estão contados na fórmula universal: "Salvator omnium hominum", o

Salvador de todos os homens, e nada autoriza excluí-las.


Deus lhes preparou (às crianças também) os meios de salvação, e se elas não

se beneficiam, isto decorre de causas segundas que não trouxeram a

indispensável cooperação.


Por outro lado, a sorte eterna dessas crianças não é tão lamentável como

pretenderam os jansenistas, e não é uma fábula pelagiana, declara Pio VI,

este lugar do limbo, onde as crianças estão isentas da pena do fogo [38].

Muito mais, no dizer de Santo Tomás, elas têm de Deus um conhecimento e um

amor naturais que são para elas a fonte de verdadeiras alegrias: "De ipso

gaudere naturali cognitione et dilectione" [39].


Não tendo aqui em vista senão as verdades de Fé Católica, não entraremos na

exposição dos diversos sistemas da escola a respeito da vontade de Deus.

Embora existam soluções particulares, é certo que a vontade divina a nosso

respeito é soberanamente benfazeja e que: "Querer o que Deus quer é a única

ciência que nos põe em repouso [40].


[37] DENZINGER, 318. 623.

[38] Bull. Auctorem Fidei, n. 26; DENZINGER-BANNWART, 1526. 2626.

[39] ST. Supplem., p. 71, a. 1.

[40] Cf. sobre a vontade divina: ST, I, P., q. 19. e o Comentário de PÉGUES;

Mgr GINOULHIAC, Histoire du dogme catholique, l. III, ch 8-9; P. MONSABRÉ.

9a. Conférence; A. FARGES. L'Idée de Dieu. p. 383, ss.; P. GARRIGOULAGRANGE.

op. cit.


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Capítulo Oitavo


A PREDESTINAÇÃO E A REPROVAÇÃO


I - Noção e existência da predestinação


A predestinação pode ser definida: é o ato misericordioso pelo qual, desde

toda eternidade, Deus amou gratuitamente, escolheu livremente e orientou

eficazmente para a beatitude suprema todos aqueles que devem ser salvos. Os

termos dessa definição se compreendem por si mesmos. Se toda graça é uma

misericórdia, deve-se considerar como soberanamente misericordioso o ato

divino que assegura o coroamento eterno da graça, o insigne beneficio, a

glória.


Os predestinados são escolhidos e, antes de tudo, os bem amados, porque toda

escolha supõe o amor. Deus, portanto, ama, desde toda eternidade com um amor

que, não tendo sido provocado pela sua criatura, é, de sua parte,

inteiramente gratuito; e, porque ele a escolheu, ele orienta eficazmente

para o seu destino, de modo que o eleito chegará infalivelmente, embora com

a sua livre cooperação, ao termo da salvação.


A predestinação é mais que a Providência comum, mais até que a Providência

sobrenatural em geral ela é uma Providência toda singular que garante ao

eleito graças eficazes para o tempo e glória para a eternidade.


Todos os católicos admitem, contra os Pelagianos, a existência em Deus de

uma predestinação. Alguns teólogos da escola de Molina, sem praticamente pôr

em dúvida a Predestinação, pensaram que teoricamente ela não era em absoluto

necessária, e que os mesmos efeitos poderiam, em rigor, ser procurados pela

Providência geral. Ambrósio Catarino distingue duas espécies de

predestinados: para a Virgem Maria, e para os heróis da santidade que devem

constituir as maravilhas da ordem sobrenatural, é necessária uma

predestinação especial, mas, para o comum dos eleitos, a predestinação não é

absolutamente necessário. Essa opinião não tem mais defensores.


Outros teólogos, em contrário, declaram com o dominicano Domingos Bañez, que

não se pode sem prejuízo para a fé negar a necessidade da predestinação

divina [1].


O que quer o que se pense sobre esta questão especulativa a respeito da

necessidade absoluta, a existência de fato de uma predestinação é verdade de

fé.


Temos, em primeiro lugar, as afirmações categóricas da Escritura: "Vinde

benditos de meu Pai, possuir o reino que vos foi preparado desde a origem do

mundo" [2]. Portanto, Deus desde toda eternidade preparou para os seus

eleitos, seus bem-amados, a beatitude e a glória, e esta preparação é uma

eleição; uma predestinação especial, porque ela não foi concedida a todos os

homens, nem mesmo a todos os cristãos.


S. Paulo é o Doutor da predestinação: "os que Deus predestinou, os chamou,

os justificou, os glorificou" [3]. O Apóstolo atribui ao ato misterioso de

Deus, chamado predestinação, três grandes efeitos: a vocação à salvação, a

justificação pela graça, a glorificação no céu.


Em outro texto ele volta a essa doutrina: "Deus nos escolheu no Cristo,

antes da constituição do mundo, para que sejamos santos e imaculados aos

seus olhos, na caridade; ele nos predestinou para que fôssemos seus filhos

adotivos, por Jesus Cristo, segundo o bel prazer da sua vontade, para o

louvor da glória de sua graça". [4]


[1] Cf. BAÑEZ e os outros comentadores na S. T., in I. P., q.23.


[2] Mat., XXV, 34.


[3] Rom., VIII, 28, 30.


[4] Ef. I, 4, ss.


Toda a teologia da salvação está condensada nesse texto. Deus escolheu os

bem-amados desde toda eternidade, e escolhendo-os, ele tinha um ideal, ele

olhava para um modelo, o seu Bem-amado por excelência, o Cristo Jesus, cuja

filiação natural é o tipo da nossa filiação adotiva; ele nos elegeu

gratuitamente segundo o seu bel prazer, e para que própria felicidade se

tornasse glória para ele.


Alguns rápidos testemunhos dos Santos Padres nos instruem sobre a tradição

católica. "Esta predestinação que defendemos segundo a Sagrada Escritura,

diz Santo Agostinho, ninguém a pode contestar, sem erro" [5]. Acrescenta S.

Próspero: "Nenhum católico nega a predestinação divina" [6]. Conclui São

Fulgencio: "Crede firmemente que Deus antes da constituição do mundo,

predestinou como filhos adotivos todos aqueles os quais quer fazer por sua

bondade gratuita vasos de misericórdia". [7]

Eis agora as declarações do Magistério Eclesiástico. Lê-se no concílio de

Kiersy (853): "O homem, ao fazer um mau uso do seu livre-arbítrio, pecou e

caiu; daí vem esta massa de perdição; do gênero humano inteiro. Deus justo e

bom escolheu nessa massa pela sua presciência aqueles que por sua graça

predestinou à vida, e ele os há predestinado para a vida eterna." [8] Assim,

o ato eterno de Deus é uma eleição, e tal eleição é gratuita, porque é pela

graça que Deus escolhe: essa escolha predestina os eleitos para a vida

eterna.


Ensina o concílio de Valença (855), a esse respeito três verdades

principais: "1° que há uma predestinação dos eleitos para a vida eterna; 2°

esta eleição é uma misericórdia que precede as boas obras dos santos; 3°

pela predestinação Deus decreta de toda a eternidade o que ele mesmo

cumprirá no tempo, pela sua misericórdia gratuita." [9]


[5] S. AGOSTINHO. De Dono Persev., c. XIX, n. 48, P. L., XLV. 1023.


[6] S. PROSPERO. Resp. I, ad object. Gall.; P. L., LI, 157.


[7] S. FULGENCIO. De Fide ad Petrum, c. XXV.; P. L., LXV, 703.


[8] DENZINGER. 316. 621.


[9] Idem., 322. 628.


O concílio de Trento constantemente apela para o dogma da predestinação como

para um mistério tão insondável quanto certo: "Que ningúem, nesta vida

mortal, tenha a presunção de penetrar no mistério secreto da predestinação

divina, a ponto de afirmar absolutamente que ele é do número dos

predestinados, como se fosse certo que aquele que é justificado não pode

pecar ou que, se pecar, pode prometer seguramente o seu arrependimento. A

não ser por uma revelação especial ningúem pode conhecer os que Deus

escolheu" [10]. "Anátema a quem disser que o homem regenerado e justificado

tem o poder de crer que ele está no número dos predestinados" [11]. "Anátema

a quem disser que a graça da predestinação não é concedida senão aos

predestinados e que os outros são também certamente chamados, mas não

recebem a graça, visto que eles são predestinados para o mal pelo poder

divino" [12].


O ensinamento conciliar de Trento pode ser resumido assim: 1° - a

predestinação divina é uma verdade de Fé; 2° - ela é um mistério insondável,

e ningúem neste mundo pode sem revelação saber com uma certeza infalível se

está predestinado; 3° - pode haver verdadeiros justos que não são

predestinados: essas almas receberam realmente a graça santificante e, se

elas a perderam e não perseveraram, é unicamente por sua falta, e não por

que Deus as devotou para o mal.


Que nos dia a razão teológica? A perfeição do Deus imutável, cuja ciência

infinita e a causalidade universal descem a todos os pormenores, exige que

ele ordene e regule de toda a eternidade o que executará no tempo, porque

ele deve realizar um dia pela sua graça a beatitude dos seus eleitos, ele a

quis e a decretou de toda eternidade; ele a destinou anteriormente a tais e

tais, e, ao mesmo tempo determinou os meios que a asseguram eficazmente a

posse. "Ver este meio e este fim sobrenaturais preparar eficazmente o meio

para o fim; é o que chamamos de predestinação. Na inteligência divina é a

obra de uma profunda sabedoria; na vontade divina, a obra de uma

misericórdia infinita, totalmente gratuita" [13].


[10] Sess., VI, cap. 12; DENZINGER, 805. 1540.


[11] Sess., VI, can. 15; DENZINGER, 825. 1565.


[12] Sess., VI, can. 17; DENZINGER, 827. 1367.


[13] P. MONSABRÉ. Conférences de Notre-Dame, 23a. Conf.


II - Os efeitos da predestinação


Chamamos de efeito da predestinação tudo aquilo que no plano divino e sob a

direção de Deus deve realmente conduzir à glória. Esses efeitos são de duas

ordens: uns são diretos e imediatos, os outros, indiretos.


Os efeitos diretos são, por si mesmos, de ordem sobrenatural e devem levar o

homem ao seu termo final. São aqueles já formulados pelo apóstolo Paulo

[14].


Primeiramente, a vocação que começa a obra de vida e sem a qual nada poderá

chegar a termo. Entendemos por vocação sejam as graças cristãs que solicitam

a inteligência e a vontade, sejam os socorros exteriores, pregação, bons

exemplos, e outros meios dos quais a Providência se serve para levar as

almas à salvação. "Quos praedestinavit hos et vocavit" aos quais

predestinou, a estes chamou.


Em segundo lugar a justificação que nos torna filhos e herdeiros de Deus e

permite aos adultos merecer a recompensa como uma espécie de conquista. A

justificação compreende a graça santificante, nossa verdadeira deificação; o

bom uso da graça que é um trabalho excelente na obra da salvação, como

acentua S. Tomás [15]; a perseverança final, que conclui definitivamente o

curso e que é chamada pelo Concílio de Trento [16] "magnum donum, o dom por

excelência". "Et quos vocavit hos et justificavit", aos que Deus chamou,

justificou-os.


Finalmente, a glorificação, porque a predestinação é, antes de tudo, a

eficaz intenção da glória. Essa glorificação comporta a visão e o amor

beatíficos, que são a recompensa essencial; as auréolas e as outras

recompensas acidentais; e, após a Ressurreição, a glória inadmissível do

corpo: "Quos autem justificavit illos et glorificavit"; aqueles que Deus

justificou, glorificou-os.


[14] Rom., VIII, 28-30.


[15] S. TOMÁS, Comm. in Epist., ad Rom., VIII, 28-30.


[16] Sess., VI, cap. 16; DENZINGER, 826.1560.


Entende-se por efeito indiretos da predestinação um conjunto de fatos, de

circunstâncias ou de realidades, que embora naturais, são ordenados pela

Providência para o sobrenatural e, finalmente, à salvação: a saúde, as

riquezas, a prosperidade, enquanto elas se fazem auxiliares da virtude e um

meio de amor a Deus. A doença, os infortúnios, as desgraças de todas as

espécies, enquanto são queridos ou permitidos por Deus, como uma ocasião de

paciência e de mérito, de penitência mais generosa, de caridade mais

ardente, etc., são efeitos da predestinação e procedem do Amor infinito.


Esta doutrina, tão bela quanto consoladora, não é invenção dos teólogos. Ela

está contida na palavra tão significativa de S. Paulo: "Diligentibus Deum

omnia cooperantur in bonum" [17]. Para os que amam a Deus, todas as coisas

concorrem para o bem, para este bem verdadeiro que é a salvação.


III - A reprovação. Os erros e a fé católica.


Atribui-se a Lucídio, padre gaulês do século V, ter ensinado que quem não

foi escolhido para a vida eterna é forçado ao mal. Seja quem fosse esse

Lucídio, que aliás se retratou [18], esses erros foram retomados, no século

IX, por Gottescalk, monge da abadia de Orbais, e pouco a pouco condensados

em um sistema, que foi chamado de o predestinacionalismo. Esse inovador

admitia uma dupla predestinação: uma, dos eleitos ao repouso na glória;

outra, dos reprovados, para a morte eterna. Todos aqueles que não foram

escolhidos para o Bem, são forçados para para o mal, como os eleitos fazem o

bem fatalmente [19].


[17] Rom., VIII, 28.


[18] Esta retratação está reproduzida em Bibl. Max., VIII. 525.


[19] Cf. SCHWANE. Histoire des dogmes, tom. V, ch. IV.


Wiclef, João Hus, Jerônimo de Praga, renovam essas blasfêmias, repetidas

ainda por Lutero e Calvino. Lutero abribui a Deus a responsabilidade do

pecado e do mérito. A doutrina de Calvino é ainda mais radical: os homens,

diz ele, não são todos criados em condição igual, porque Deus predestina uns

para a vida eterna, os outros, para a condenação eterna.


Os Jansenistas pretendem que Deus, depois da culpa original, não quer

sinceramente a salvação de todos os homens, e que, Cristo não tendo morrido

senão para os predestinados, os outros são abandonados e entregues à ruína.

Apressemo-nos a opor a essas monstruosas teorias os ensinamentos da Igreja

Católica. O concílio de Orange (529) declara: "Não somente nós não cremos

que alguns homens sejam predestinados para o mal pelo poder divino, mas, se

há espíritos que desejam acreditar em tão grande mal, nós lhes lançaremos o

anátema com indignação" [20]. O concílio de Kiersy (853) diz paralelamente:

"Deus conheceu pela sua presciência os que devem se perder, mas ele não os

predestinou a se perderem. Porque Deus é justo, ele predestinou uma pena

eterna para a sua falta" [21]. Mais explícito foi o concílio de Valença

(855): "Nós confessamos firmemente a predestinação dos eleitos para a vida e

a predestinação dos ímpios para a morte, mas com esta diferença: que na

eleição dos que devem ser salvos, a misericórdia de Deus precede o mérito,

enquanto que na condenação dos que se perderam, o demérito precede o justo

julgamento de Deus. Pela predestinação Deus somente decretou o que ele mesmo

deve fazer por sua misericórdia ou por seu justo julgamento. Para os maus

Deus previu a malícia deles, porque ela vem deles mesmos. Ele não a

predestinou porque a malícia não vem dele. Quanto à pena, que segue as suas

obras más, ele a previu e a predestinou, porque ele é justo e coloca sobre

todas as coisas, segundo a observação de Sto. Agostinho, uma sentença tão

irrevogável quanto certa é sua presciência. Com o concílio de Orange nós

lançamos o anátema a todos os que disserem que alguns homens são

predestinados para o mal pelo poder de Deus" [22].


[20] DENZINGER, 200. 397.


[21] DENZINGER, 316. 627.


[22] Can., 3; DENZINGER, 816. 1556.


Por fim, é necessário lembrar as definições do concílio de Trento: "O pecado

não vem de Deus, pois são os próprios homens que tornam más as suas vias"

[23].


A doutrina católica se reduz aos seguintes pontos:


1° - Há uma reprovação para os maus, quer dizer, um justo julgamento de

Deus, que de toda a eternidade decreta que os indignos serão punidos por

suas faltas. A Escritura não emprega a palavra reprovação, mas afirma a sua

realidade em termos equivalentes: ela chama os reprovados de maus: "Ide

malditos de meu Pai, para o fogo eterno" [24]; de filhos da perdição:

"Aqueles que me destes, eu os guardei, e nenhum deles pereceu senão o filho

da perdição" [25]; de vasos de cólera, destinados à ruína [26].


2° - A reprovacão não é um ato que decreta o pecado, como a predestinação

decreta o bem, mas somente um ato que pronuncia o castigo, por causa dos

pecados que os homens cometerão por si mesmos e por sua malícia. Também

nosso Senhor dizendo aos reprovados: "Retirai-vos de mim malditos, ide para

o fogo eterno", justifica a sua sentença: "Tive fome e não me destes de

comer", etc.


3° - Na reprovação Deus não decreta a pena senão após ter previsto a falta,

enquanto que na predestinação ele decide dar ao menos a graça de prever o

mérito.


4° - Na predestinação Deus decide auxiliar os eleitos a se salvarem. Na

reprovação muito longe de querer ajudar os maus a se perderem, consente em

lhes conceder todos os socorros necessários ao cumprimento do dever, e ainda

se ocupa delas pela sua Providência comum e mesmo pela sua Providência

sobrenatural geral, de modo que se eles se perdem, não é porque se lhes foi

impossível serem bons, mas porque rejeitaram sê-lo: "Nec ipsos malos ideo

perire quia boni esse non potuerunt, sed quia boni esse noluerunt" [27].


[23] Sess., VI, can. 6; DENZINGER, 816. 65.


[24] Mat., XXV, 41.


[25] Jo., XVII, 12.


[26] Rom., IX, 22.


[27] Conc. Valent., can. 2; DENZINGER, 321.


IV - A gratuidade da predestinação e a justiça da reprovação.


O que é certo, o que é livremente discutido


Os Pelagianos, que negavam a necessidade da graça, destruíram, de um só

golpe, o fundamento da predestinação ao sustentarem que o homem pode, sem a

intervenção gratuita de Deus, alcançar a salvação. Os semi-Pelagianos

admitiam a graça sobrenatural, mas pretendiam que todos podem somente pelas

suas forças chegar ao começo da salvação e a se preparar para a primeira

graça. Uma vez recebida a justificação teremos direito à perseverança final

e conseqüentemente à glória que a coroa. Portanto, não há predestinação

gratuita.


Todos os católicos estão de acordo sobre estes pontos fundamentais:


1° - A reprovação é um ato de perfeita justiça, porque ela pronuncia a pena

unicamente para punir a falta, e após ter previsto essa falta.


2° - A glória não sendo concedida senão àqueles que fizeram o bem, ela é, em

sentido muito verdadeiro, a recompensa do mérito e pode ser chamada segundo

a linguagem de S. Paulo, uma coroa de justiça [28].


[28] II Tm 4,8.


3° - Mas, para merecer a glória, é necessário possuir a graça e, a primeira

graça sendo inteiramente gratuita, disto se conclui que Deus, coroando

nossos méritos, coroa os seus próprios dons. Expressão que gostavam de

repetir os papas e os concílios, depois de Sto. Agostinho, que escreve: "É

tão grande a bondade de Deus, diz o Papa Celestino I, que ele quer que os

seus dons sejam os nos

sos méritos, para os quais será reservada a recompensa eterna" [29]. Segundo

o concílio de Orange: "A coroa é devida às nossas boas obras se elas têm

lugar, mas a graça, que não é devida, precede para que elas tenha lugar"

[30].


4° - A predestinação, tomada no seu conjunto, para a preparação de todos os

bens da salvação, desde a vocação até a glorificação, ou mesmo só para o

apelo à graça, é inteiramente gratuita: porque é de fé que ninguém pode se

preparar para a graça unicamente pelas suas energias [31].


O que é livremente discutido entre os teólogos católicos é o problema: a

escolha divina que chama os predestinados para a glória será absolutamente

gratuita ou será influenciada pela previsão dos méritos, no sentido de que

Deus escolhe tais homens para a glória após ter previsto que eles

aproveitarão a graça?

Em largos traços, vejamos as principais soluções desse problema: Eis, em

primeiro lugar, a solução da escola tomista: Deus quer sinceramente a

salvação de todos os homens, e ele não predestina ninguém para o pecado e

para a condenação. Contudo, antes de toda previsão dos méritos do homem, só

por sua bondade, ele escolhe tais e tais para a glória eterna. Em virtude

desta escolha, ele lhes prepara os socorros e as glórias que os farão chegar

infalivelmente, mas pela sua cooperação pessoal, à salvação e à beatitude:

eis a predestinação. Paralelamente, antes de toda previsão dos atos humanos,

ele quer permitir que outros homens por sua própria falta não cheguem à

gloria e se condenem. Mas também para estes Deus prepara todas as graças

necessárias para a salvação, de sorte que, se eles se perdem, não será por

falta de graça, mas por falta de boa vontade. Eis então, a reprovação

negativa. É somente após ter previsto que os homens abusando da graça e do

livre-arbítrio se entregarão ao mal, que Deus decreta a puni-los. Eis,

então, a reprovação positiva. Neste sistema verificam-se perfeitamente as

palavras do concílio de Kiersy: "Que os homens sejam salvos, é dom de Deus;

que alguns outros se perdem, é falta

deles mesmos" [32].


[29] S. CELESTINO. Lettre aux Evêques des Gaules, cap. 12; DENZINGER,

184,381.


[30] Concílio de Orange, can. 18; DENZINGER, 191. 388.


[31] Cf. Concílio de Orange, can. 5, ss; Concílio de Trento, sess. VI, can.

3; DENZINGER, 178, ss. 813. - Ver os textos dos conc.de Kiersy e de Valência

precedidamente citados, onde está dito que Deus predestina pela graça e

salva pela misericórdia.


[32] DENZINGER, 317. 622.


Os molinistas puros rejeitam a reprovação negativa, e não admitem que a

eleição dos predestinados seja em todos os pontos gratuita. Deus quer

igualmente a salvação de todos os homens, embora não conceda a todos graças

iguais. Ele prevê, por sua ciência média, que alguns homens cooperarão com a

graça até o fim, e é por causa dessa previsão que os predestina para a

glória. Deus prevê que outros farão o mal, e é por isso que eles os reprova.

Os congruístas, com Suarez, Belarmino, etc., dizem: Deus prevê que se

colocasse tais homens em tais circunstâncias favoráveis, eles cooperariam

com a graça e se salvariam, e por isso ele os escolheu.


A eleição é gratuita neste sentido que Deus, independentemente da previsão

dos méritos, predestina à glória e quer colocar tais pessoas em

circunstâncias favoráveis; mas, por outro lado, a gratuidade não é absoluta,

por que Deus sabe, por sua ciência média, e independente do seu decreto, que

os homens se beneficiarão das graças oferecidas.


Nesta exposição em que nos colocamos ao abrigo de toda polêmica, não será o

lugar de empreender a crítica dos diversos sistemas [33].


Apenas queremos lembrar que o molinismo e o congruísmo são perfeitamente

livres na Igreja, e, se o tomismo tem para si o mistério, tem também consigo

a lógica, que proclama a independência absoluta de Deus e a gratuidade das

suas escolhas: mistério e lógica, os tomistas não temem nem um nem o outro,

persuadidos de que a lógica leva à verdade, e o mistério, a Deus. Na

prática, o cristão não tem que se preocupar com as teorias das escolas. O

meio infalível para ele resolver o problema, é amor a Deus e seguir a sua

Lei, segundo o mandamento de S. Pedro: "Esforçai-vos meus irmãos, de

tornardes certas pelas vossas boas obras vossa vocação e vossa eleição"

[34].


[33] Cf. Tractatus dogmatici, t. I, De Deo Uno, et t. II, de Gratia.


[34] II. Pe., I, 10. - Cf. Santo AGOSTINHO. De Praedestinatione sanctorum,

P. L., XLIV, De dono perseverantiae, P. L., XLV; S. T., I, 23 e o comentário

do Pe. PÈGUES. P. MONSABRÈ. Carême de 1876; Ed. HUGON. Hors de l'Eglise

point de salut Paris, Téqui.

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