21 Razões para Rejeitar a Sola Scriptura - Parte 1




Fonte: Site Militantis - EUA
Autor: Joel Perters
Traduzido gentilmente por Roberto ao site Exsurge Domini

O que é Sola Scriptura?

"Cremos que a Bíblia, sozinha e toda ela, é a única regra de fé do cristão!"

Talvez você já tenha ouvido um protestante fundamentalista ou evangélico dizer essas palavras, ou algo muito parecido. Elas são, essencialmente, o significado da doutrina da Sola Scriptura, ou "Somente Escritura", que alega ser a Bíblia - interpretada pelo indivíduo que crê - a única fonte de autoridade religiosa e a única regra ou critério de fé do cristão no que se refere ao que deva ser acreditado. Por esta doutrina, uma das crenças fundamentais do protestantismo, o protestante nega haver qualquer outra fonte de autoridade religiosa ou revelação divina para a humanidade.

Os católicos, por outro lado, afirmam que a regra de fé imediata ou direta é o ensinamento da Igreja; a Igreja, por sua vez, recebe seu ensinamento da Revelação divina - tanto a Palavra escrita, as chamadas Sagradas Escrituras, como a Palavra oral ou não-escrita, conhecida como "Tradição." A autoridade docente ou "Magistério" da Igreja Católica (chefiada pelo Papa), embora não seja por si mesma uma fonte de Revelação divina, tem uma missão confiada por Deus de interpretar e ensinar as Escrituras e a Tradição. As Escrituras e a Tradição são as fontes da doutrina cristã, a regra de fé remota ou indireta do cristão.

Obviamente, estas duas noções do que constitui a regra de fé do cristão se opõem entre si, e todo aquele que queira sinceramente seguir a Cristo deve estar certo de seguir a que for verdadeira.

A doutrina da Sola Scriptura tem origem em Martinho Lutero, o monge alemão do século XVI que rompeu com a Igreja Católica Romana e deu início à "Reforma" Protestante (1). Em resposta a alguns abusos que estariam ocorrendo na Igreja Católica, Lutero tornou-se um eloqüente opositor de certas práticas. No que diz respeito a esses abusos, eles realmente ocorreram e Lutero estava certo em reagir. No entanto, quando se desenvolveram uma série de confrontações entre ele e a hierarquia da Igreja, os problemas passaram a se concentrar na questão da autoridade da Igreja e - do ponto de vista de Lutero - de se o ensinamento da Igreja Católica era ou não uma regra de fé legítima para os cristãos.

Enquanto os confrontos entre Lutero e a hierarquia da Igreja se seguiam e a tensão aumentava, Lutero acusou a Igreja Católica de ter corrompido a doutrina cristã e de ter distorcido as verdades bíblicas, e passou cada vez mais a crer que a Bíblia, interpretada pelo indivíduo que crê, fosse a única verdadeira autoridade religiosa para o cristão. Por fim, ele rejeitou a Tradição e a autoridade docente da Igreja Católica (com o Papa em seu comando) como autoridades religiosas legítimas.

O pesquisador honesto deve perguntar-se, pois, se a doutrina da "Somente Escritura" de Lutero era uma autêntica restauração da verdade bíblica ou, ao contrário, a promulgação de uma idéia pessoal e individual sobre a autoridade cristã. Lutero estava obviamente entusiasmado com suas crenças, e teve sucesso em difundi-las, mas estes fatos em e por si mesmos não garantem que o que ensinava fosse correto. Já que está em jogo o bem-estar espiritual e até o destino eterno das pessoas, o cristão deve estar absolutamente certo acerca deste ponto.

Apresentamos a seguir 21 considerações que ajudarão o leitor a examinar atentamente a doutrina luterana da Sola Scriptura a partir de bases bíblicas, históricas e lógicas, e mostrarão que não se trata de uma autêntica verdade bíblica, mas sim de uma doutrina criada pelo homem.


1. A doutrina da Sola Scriptura não é ensinada em nenhum lugar da Bíblia

Talvez a mais notável razão para se rejeitar essa doutrina seja que não há nenhum versículo em toda a Bíblia em que ela seja ensinada, o que faz dela, portanto, uma doutrina autocontraditória.

Os protestantes muitas vezes indicam versículos como 2 Timóteo 3:16-17 ou Apocalipse 22:18-19 em defesa da Sola Scriptura, mas um exame mais atento destes dois trechos demonstra facilmente que eles de forma alguma dão fundamento a essa doutrina.

Lemos em 2 Timóteo 3:16-17: "Toda escritura, inspirada por Deus, é proveitosa para ensinar, reprovar, corrigir, instruir na justiça, para que o homem de Deus seja perfeito, preparado para toda boa obra." Há cinco considerações que destróem a interpretação favorável à Sola Scriptura desse trecho:

1) A palavra grega ophélimos ("proveitosa") usada no versículo 16 significa "útil", e não "suficiente." Um exemplo desta diferença seria dizer que a água é útil para a nossa existência - e até necessária - mas não suficiente; ou seja, não é a única coisa de que precisamos para sobreviver. Também precisamos de comida, de roupas, de alojamento, etc. Analogamente, as Escrituras são úteis na vida do cristão, mas nunca foram destinadas a ser a fonte única do ensinamento cristão, a única coisa necessária aos que crêem.

2) A palavra grega pâsa, que muitas vezes é traduzida por "toda", na verdade significa "cada uma" e tem o sentido de se referir a cada um e a todos os elementos da classe denotada pelo substantivo ligado a ela. (2) Ou seja, o grego deve ser lido de maneira tal que indique que cada uma das "Escrituras" é proveitosa. Se a doutrina da Sola Scriptura fosse verdadeira, então, com base no versículo grego 16, cada um dos livros da Bíblia poderia aparecer como a única regra de fé, posição esta que é obviamente absurda.

3) As "Escrituras" a que São Paulo se refere aqui são o Antigo Testamento, fato este que se evidencia pela referência às Escrituras que são conhecidas por Timóteo desde a "infância" (versículo 15). O Novo Testamente tal como o conhecemos ainda não existia, ou na melhor das hipóteses estava incompleto, portanto simplesmente não podia estar incluído no entendimento de São Paulo como o significado do termo "escrituras." Se tomarmos as palavras de São Paulo em seu valor literal, a Sola Scriptura significaria que o Antigo Testamento é a única regra de fé do cristão. Mas essa é uma premissa que todo Cristianismo rejeitaria.

Os protestantes talvez respondam argumentando que São Paulo não está discutindo aqui o cânon da Bíblia (a lista que faz autoridade sobre quais livros devem estar incluídos na Bíblia), mas sim a natureza das Escrituras. Embora essa afirmação tenha certa validade, a questão do cânon também é relevante aqui, pela seguinte razão: Antes de podermos falar da natureza das Escrituras como theopneustos ou "inspiradas" (literalmente, "respiradas divinamente"), é imperativo identificarmos com certeza que livros queremos dizer quando falamos em "Escrituras"; caso contrário, os textos errados podem ser classificados como "inspirados." Aqui, as palavras de São Paulo obviamente assumiram uma nova dimensão quando o Novo Testamento foi concluído, pois os cristãos por fim considerarm que ele também fosse "Escritura." Pode-se argumentar, pois, que o cânon bíblico também está em questão aqui, pois São Paulo - escrevendo sob a inspiração do Espírito Santo - ressalta o fato de que toda a Escritura é inspirada (e não só parte dela). A questão que deve ser levantada, porém, é esta: "Como podemos ter certeza de termos todos os textos corretos?" Obviamente, só podemos conhecer a resposta se soubermos qual é o cânon da Bíblia. Esta questão é um problema para o protestante, mas não para o católico, pois este último dispõe de uma autoridade infalível para responder a ela.

4) A palavra grega artios, aqui traduzida por "perfeito," pode à primeira vista sugerir que as Escrituras sejam de fato tudo aquilo de que se precisa. "Afinal," pode-se perguntar, "se as Escrituras tornam perfeito o homem de Deus, o que mais pode ser necessário? A própria palavra 'perfeito' não mostra que não está faltando nada?"

Pois bem, a dificuldade com essa interpretação é que o texto aqui não diz ser somente por meio das Escrituras que o homem de Deus se torna "perfeito." O texto talvez indique que o exato contrário é verdade, ou seja, que as Escrituras operam conjuntamente com outras coisas. Note-se que não é qualquer um que se torna perfeito, mas sim o "homem de Deus" - o que significa um ministro de Cristo (cf. 1 Tim. 6:11), um homem do clero. O fato de esse indivíduo ser um ministro de Cristo pressupõe que já tenha sido treinado e ensinado, o que o prepara para assumir esse ofício. Sendo assim, as Escrituras seriam apenas uma dentre as muitas coisas que tornam "perfeito" esse homem de Deus. As Escrituras podem completar essa lista de coisas necessárias ou podem aparecer como um item importante da lista, mas certamente não são o único artigo nessa lista nem se pretende que sejam tudo o de que ele precisa.

Por analogia, consideremos um médico. Neste contexto, poderiamos dizer algo como "O Physician's Desk Reference [um livro padrão de referência médica] torna perfeito o clínico geral, de forma que ele possa enfrentar qualquer situação clínica." Obviamente, uma tal declaração não significa que a única coisa de que um médico precisa é de seu manual de medicina. Não é nem o último item da lista nem um item de primeira linha. O médico também precisa do estetoscópio, do medidor de pressão, de treinamento, etc. Estes outros itens são pressupostos pelo fato de estarmos falando de um médico, e não de uma pessoa leiga em medicina. Seria, pois, incorreto supor que se o manual PDR torna "perfeito" o médico, seja a única coisa que contribua para isso.

Além disso, dizer que a palavra "perfeito" significa "a única coisa necessária" é uma contradição bíblica, pois em Tiago 1:4 lemos que a perseverança - e não as Escrituras - torna perfeito: "E a perseverança produz um trabalho perfeito; para que sejais perfeitos e íntegros, sem nenhuma deficiência." É bem verdade que aqui é usada uma outra palavra grega (teleios) para "perfeito," mas permanece o fato de que o significado básico é o mesmo. Ora, se reconhecermos corretamente que a perseverança obviamente não é a única coisa de que precisa o cristão para ser perfeito, um método interpretativo coerente nos obrigaria a reconhecer também que as Escrituras não são a única coisa de que um "homem de Deus" precisa para ser perfeito.

5) A palavra grega exartizo no versículo 17, aqui traduzida por "preparado" (outras versões da Bíblia dizem algo como "plenamente equipado" ou "inteiramente preparado"), é citada pelos protestantes como uma "prova" da Sola Scriptura, uma vez que essa palavra - mais uma vez - pode ser entendida como implicando que nada mais é necessário para o "homem de Deus." Todavia, ainda que o homem de Deus possa estar "preparado" ou "plenamente equipado," este fato em e por si mesmo não garante que ele saiba como interpretar corretamente e aplicar todos os trechos das Escrituras. O clérigo também deve aprender como usar corretamente as Escrituras, ainda que já possa estar "preparado" para elas.

Façamos novamente uma analogia com a medicina. Imaginemos um estudante de medicina no começo de sua residência. Ele pode ter à disposição todo o equipamento necessário para realizar uma operação (ou seja, estar "plenamente equipado" ou "preparado" para um procedimento cirúrgico), mas enquanto não aprender com os médicos responsáveis pela sua residência, observando as técnicas, aprendendo as habilidades e praticando alguns procedimentos sozinho, os instrumentos cirúrgicos à sua disposição continuarão sendo essencialmente inúteis. Na verdade, se não aprender a usá-los adequadamente, eles podem tornar-se realmente perigosos em suas mãos.

O mesmo ocorre no caso do "homem de Deus" e as Escrituras. As Escrituras, como os instrumentos cirúrgicos, são úteis apenas quando usados adequadamente. Quando utilizados impropriamente, podem ocorrer resultados diametralmente opostos. No caso dos instrumentos cirúrgicos, podem provocar a destruição física ou até a morte; no outro caso, podem trazer a destruição espiritual ou até a morte espiritual. Uma vez que a Bíblia nos adverte a lidarmos ou dispensarmos corretamente a palavra da verdade (cf. 2 Tim. 2:15), é portanto possível lidar incorretamente ou dispensá-la erradamente - exatamente como um estudante de medicina novato que lida inadequadamente com seus instrumentos cirúrgicos.

Com relação a Apocalipse 22:18-19, há duas considerações que infirmam a interpretação favorável à Sola Scriptura desses versículos. O trecho - quase o último da Bíblia - diz: "Pois testemunho a todos os que ouvem as palavras da profecia deste livro: Se alguém lhes fizer algum acréscimo, Deus lhe acrescentará as pragas escritas neste livro. E se alguém tirar algo das palavras do livro desta profecia, Deus lhe tirará sua parte do livro da vida e da cidade santa, que estão descritas neste livro."

1) Quando estes versículos dizem que nada deve ser acrescentado ou retirado das "palavras da profecia deste livro", não estão referindo-se a que a Sagrada Tradição seja "acrescentada" às Sagradas Escrituras. Pelo contexto, é óbvio que o "livro" a que se está referindo é o Apocalipse, e não a Bíblia inteira. Sabemos disto porque São João diz que aquele que for culpado de acrescentar coisas a "este livro" será amaldiçoado com as pragas "descritas neste livro", ou seja, as pragas que descreveu anteriormente em seu próprio livro, o Apocalipse. Afirmar o contrário é fazer violência ao texto e distorcer seu claro significado, sobretudo uma vez que a Bíblia tal como a conhecemos não existia quando esta passagem foi escrita e portanto o texto não podia referir-se a ela. (3)

Em defesa de sua interpretação destes versículos, os protestantes com freqüência alegarão que Deus sabia antecipadamente qual seria o cânon das Escrituras, tendo o Apocalipse como o último livro, e assim Ele teria "selado" esse cânon com as palavras dos versículos 18-19. Mas esta interpretação projeta um significado no texto. Além disso, se essa afirmação fosse verdadeira, como é que os cristãos sabem sem erro possível que Apocalipse 22:18-19 está "selando" o cânon, a menos que uma autoridade docente infalível lhe garanta que esta é a correta interpretação desse versículo? Mas se existe essa autoridade infalível, a doutrina da Sola Scriptura se torna ipso facto nula e invalidada.

2) A mesma advertência a não se adicionarem nem subtrairem palavras aparece em Deuteronômio 4:2, que diz: "Nada acrescentareis ao que Eu vos falo, e nada tirareis também: observai o mandamento do Senhor seu Deus que Eu vos imponho." Se fôssemos aplicar uma interpretação paralela a este versículo, tudo na Bíblia posterior aos decretos da lei do Antigo Testamento seria considerado não-canônico ou Escritura não autêntica - inclusive o Novo Testamento! Mais uma vez, todos os cristãos rejeitariam essa conclusão, sem hesitar. A proibição presente em Apocalipse 22:18-19 contra "acrescentar", portanto, não pode significar que os cristãos estejam proibidos de tomar como orientação algo fora da Bíblia.

2. A Bíblia indica que, além da palavra escrita, devemos aceitar a Tradição oral

São Paulo recomenda e ordena a conservação da tradição oral. Em 1 Coríntios 11:2, por exemplo, lemos: "Eu vos louvo por vos recordardes de mim, irmãos, em todas as ocasiões e por conservardes as tradições tais como vo-las transmiti." (4) São Paulo obviamente está aqui louvando a conservação da tradição oral, e deve-se notar em particular que elogia os fiéis por fazerem isso ("Eu vos louvo..."). Também está explícito nesta passagem o fato de a integridade dessa Tradição oral apostólica ter sido claramente conservada, como Nosso Senhor o prometeu , pela proteção do Espírito Santo (cf. João 16:3).

Talvez o apoio bíblico mais claro à tradição oral se encontre em 2 Tessalonicenses 2:14(15), onde é de fato ordenado aos cristãos: "Portanto, irmãos, estai firmes; guardai as tradições que vos ensinamos oralmente ou por escrito." Esta passagem é significativa porque 1) mostra a existência de tradições vivas dentro do ensinamento apostólico, b) nos diz de maneira inequívoca que os fiéis estão firmemente estabelecidos na Fé ao aderirem a essas tradições, e c) declara claramente que essas tradições eram tanto escritas quanto orais. Uma vez que a Bíblia declara aqui com clareza que as tradições orais - autênticas e apostólicas em sua origem - devem ser "guardadas" como um componente válido do Depósito da Fé, com que raciocínio ou desculpa os protestantes as rejeitam? Com que autoridade recusam uma claríssima ordem de São Paulo?

Além disso, devemos examinar o texto dessa passagem. A palavra grega krateite, traduzida aqui por "estar firmes", significa "ser forte, potente, prevalecer." (5) É uma linguagem um tanto enfática, e demonstra a importância de se manterem essas tradições. Evidentemente, deve-se distinguir entre a Tradição (com "T" maiúsculo) que faz parte da Revelação divina, por um lado, e, por outro lado, as tradições da Igreja (com "t" minúsculo) que, embora boas, se desenvolveram mais tarde na Igreja e não fazem parte do Depósito da Fé. Um exemplo de algo que pertence à Tradição é o batismo dos recém-nascidos; um exemplo de uma tradição da Igreja é o calendário dos dias festivos dos Santos. Tudo o que faz parte da Tradição é de origem divina e, portanto, imutável, ao passo que as tradições da Igreja podem ser mudadas pela Igreja. A Sagrada Tradição serve de regra de fé, ao mostrar no que a Igreja acreditou de modo constante ao longo dos séculos e como sempre entendeu cada parte da Bíblia. Uma das principais maneiras como a Tradição foi transmitida até nós é a doutrina contida nos antigos textos litúrgicos, o culto público da Igreja.

Deve-se observar que os protestantes acusam os católicos de promover doutrinas "não-bíblicas" ou "novas" baseadas na Tradição, afirmando que essa Tradição contém doutrinas estranhas à Bíblia. Contudo, essa acusação é completamente falsa. A Igreja Católica ensina que a Sagrada Tradição não contém nada que seja contrário à Bíblia. Alguns pensadores católicos diriam até que não há nada na Sagrada Tradição que também não se encontre nas Escrituras, pelo menos implicitamente ou de forma germinal. Com certeza, as duas estão no mínimo em perfeita harmonia e sempre se amparam uma à outra. No caso de algumas doutrinas, a Igreja se baseia mais na Tradição do que nas Escrituras para a sua compreensão, mas mesmo essas doutrinas estão não raro implícitas ou sugeridas nas Sagradas Escrituras. Por exemplo, o seguinte está em ampla medida baseado na Sagrada Tradição: batismo dos recém-nascidos, o cânon das Escrituras, a virgindade perpétua da Santíssima Virgem Maria, o domingo (e não o sábado) como o Dia do Senhor e a Assunção de Nossa Senhora.

A Tradição Sagrada complementa nosso entendimento da Bíblia e portanto não é uma fonte estranha de Revelação que contenha doutrinas sem relação com ela. Muito pelo contrário: a Tradição Sagrada age como a memória viva da Igreja, recordando-lhe o que os fiéis sempre e constantemente creram e como entender e interpretar corretamente o significado das passagens bíblicas. (6) De certa maneira, é a Tradição Sagrada que diz ao leitor da Bíblia: "Você tem lido um livro muito importante que contém a revelação de Deus ao homem. Deixe-me agora lhe explicar como esse livro sempre foi entendido e praticado pelos fiéis, desde o início."

3. A Bíblia chama a Igreja, e não a Bíblia, de "Coluna e Sustentáculo da Verdade."

É muito interessante notar que em I Timóteo 3:15 vemos, não a Bíblia, mas a Igreja - ou seja, a comunidade viva de fiéis fundada sobre São Pedro e os Apóstolos e guiada por seus sucessores - ser chamada "coluna e sustentáculo da verdade." Evidentemente, essa passagem não tenciona de modo algum diminuir a importância da Bíblia, mas pretende mostrar que Jesus Cristo realmente estabeleceu uma Igreja docente com autoridade, que recebeu a missão de ensinar "todas as nações." (Mt. 28:19). Em outro lugar da Bíblia, essa mesma Igreja recebeu a promessa de Cristo de que as portas do inferno não prevaleceriam contra ela (Mt. 16:18), de que Ele estaria sempre com ela (Mt. 28:20) e de que Ele lhe daria o Espírito Santo para lhe ensinar a verdade. (João 16:13). À cabeça visível de Sua Igreja, São Pedro, disse Nosso Senhor: "Eu te darei as chaves do Reino dos céus. Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus; e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus." (Mt. 16:19). É totalmente evidente a partir dessas passagens que Nosso Senhor dá ênfase à autoridade de Sua Igreja e ao papel que ela viria a ter na salvaguarda e na definição do Depósito da Fé.

Também fica evidente a partir dessas passagens que essa mesma Igreja seria infalível, pois se em qualquer momento de sua história ela realmente ensinasse o erro à Igreja como um todo em matéria de fé ou moral - mesmo temporariamente - ela cessaria de ser essa "coluna e sustentáculo da verdade." Uma vez que "sustentáculo" ou fundamento, por sua própria natureza, significa um suporte permanente, e uma vez que as passagens acima mencionadas não permitem absolutamente a possibilidade de a Igreja ensinar erros doutrinais ou morais, a única conclusão plausível é a de que Nosso Senhor estava de caso pensado ao estabelecer Sua Igreja e que Ele se estava referindo à infalibilidade dela ao chamá-la "coluna e sustentáculo da verdade."

Os protestantes, porém, enfrentam aqui um dilema ao afirmarem que a Bíblia é a única regra de fé para os fiéis. De que maneira, então, a Igreja é a "coluna e o sustentáculo da verdade" se não for para servir como uma autoridade infalível estabelecida por Cristo? Como pode a Igreja ser "coluna e sustentáculo" se não tiver nenhuma capacidade tangível e prática de valer como autoridade na vida do cristão? Os protestantes efetivamente negam que a Igreja seja a "coluna e o sustentáculo da verdade", negando que a Igreja tenha autoridade para ensinar.

Os protestantes também julgam que o termo "igreja" signifique algo diferente do que a Igreja Católica entende por ele. Vêem "a igreja" como uma entidade invisível, e para eles o termo se refere coletivamente a todos os fiéis cristãos do mundo unidos pela fé em Cristo, a despeito das grandes variações de doutrina e de filiação denominacional. Os católicos, por outro lado, entendem que o termo denote não só os autênticos fiéis que estão unidos como o Corpo Místico de Cristo, mas que se refira também a uma entidade histórica visível, a saber, aquela - e apenas aquela - organização que pode traçar sua linhagem como uma linha contínua até os próprios Apóstolos: a Igreja Católica. Foi essa Igreja, e apenas ela, que foi fundada por Cristo e manteve uma absoluta coerência de doutrina ao longo de toda a sua existência, e, portanto, apenas essa Igreja pode reivindicar o título de "coluna e o sustentáculo da verdade."

O protestantismo, em comparação, teve uma história de vacilações e mudanças doutrinais, e não há duas denominações que concordem completamente - mesmo a respeito das mais fundamentais questões doutrinais. Tal variabilidade e mudança dificilmente poderiam ser considerados um fundamento sólido ou "um sustentáculo da verdade." Quando a fundação de um edifíco se move ou é estabelecida de modo inadequado, fica impossível confiar na solidez desse edifício (cf. Mt. 7:26-27). Uma vez que na prática as crenças do protestantismo sofreram mudanças tanto dentro das denominações quanto através do surgimento contínuo de novas denominações, essas crenças são como uma fundação que desliza e se move. Tais crenças, portanto, deixam de oferecer a base necessária para manter firme o edifício que sustentam, e a integridade desse edifício se vê comprometida. É claro que Nosso Senhor não pretende que Seus seguidores construam suas moradas espirituais sobre fundamentos duvidosos como esses.

4. Cristo nos diz para nos submetermos à autoridade da Igreja

Em Mateus 18:15-18 vemos a Cristo instruindo Seus discípulos sobre como corrigir um companheiro de fé. É extremamente revelador neste caso que Nosso Senhor identifique a Igreja e não as Escrituras como a autoridade final a que se deve recorrer. Ele próprio diz que se um irmão ofensor "não ouvir a Igreja, trata-o como gentio ou publicano" (Mt. 18:17) - ou seja, como um estrangeiro perdido. Além disso, Nosso Senhor então de novo ressalta solenemente a infalível autoridade docente da Igreja no versículo 18, repetindo Sua declaração anterior acerca do poder de ligar e de desligar (Mt. 16:18-19), dirigindo-o agora aos Apóstolos como um grupo (7) em vez de apenas a Pedro: "Em verdade vos digo: tudo quanto ligardes na terra será ligado no céu e tudo quanto desligardes na terra será desligado no céu." (Mt. 18:18).

Evidentemente, há casos na Bíblia em que Nosso Senhor recorre às Escrituras, mas nesses casos Ele, como alguém que tem autoridade, estava ensinando as Escrituras; não estava permitindo que as Escrituras se ensinassem a si mesmas. Por exemplo, responderia aos escribas e aos fariseus com as Escrituras, justamente porque eles muitas vezes tentavam armar-lhe armadilhas usando as Escrituras. Nesses casos, Nosso Senhor muitas vezes demonstra como os escribas e os fariseus tinham interpretações errôneas, e então os corrigia interpretando corretamente as Escrituras.

Suas ações não dizem que a Escritura deva ser "sola", ou uma autoridade em si mesma e, na verdade, a única autoridade cristã. Muito pelo contrário; toda vez que Cristo remete os que O ouvem às Escrituras, também oferece Sua interpretação infalível, que tem autoridade, demonstrando que as Escrituras não se interpretam a si mesmas.

A Igreja Católica reconhece corretamente a inerrância e a autoridade das Escrituras. Mas a doutrina católica diz que a regra imediata de fé para o cristão é a autoridade docente da Igreja - uma autoridade de ensinar e interpretar tanto as Escrituras quanto a Tradição, como mostra Mt. 18:17-18.

Deve-se também observar que está implícito (talvez até explícito) nesta passagem de Mateus o fato de a "Igreja" dever ser uma entidade visível, tangível, estabelecida de maneira hierérquica. Se assim não fosse, como se poderia saber a quem se deveria remeter quem age errado? Se a definição protestante de "igreja" fosse correta, o que age erradamente deveria "ouvir" cada um dos fiéis existentes, esperando que houvesse unanimidade entre eles acerca do ponto em questão. O absurdo inerente a essa situação é bastante óbvio. A única maneira de entender corretamente estas palavras de Nosso Senhor é reconhecermos que havia uma organização definida, à qual se poderia apelar e cujo veredito definitivo se podia obter.

5 As próprias Escrituras afirmam serem insuficientes por si mesmas como mestras e precisarem de um intérprete.

A Bíblia diz em 2 Tim. 3:17 que o homem de Deus é "perfeito, preparado para toda boa obra." Como observamos acima, este versículo significa somente que o homem de Deus tem acesso completo às Escrituras; não é uma garantia de que saiba automaticamente como interpretá-las adequadamente. Este versículo, no máximo, argumenta a favor da suficiência material das Escrituras, posição esta que é hoje defendida por alguns pensadores católicos.

"Suficiência material" significa que a Bíblia, de algum modo, contém todas as verdades que o fiel precisa conhecer; em outras palavras, o "material" estaria assim nela presente por inteiro, ou pelo menos de maneira implícita. "Suficiência formal," por outro lado, significa que a Bíblia não só conteria todas as verdades necessárias, mas também apresentaria essas verdades de maneira perfeitamente clara, completa e facilmente compreensível. Em outras palavras, essas verdades estariam numa "forma" utilizável e por conseguinte não haveria necessidade da Tradição Sagrada para esclarecê-las e completá-las ou de uma autoridade docente infalível para interpretá-las adequadamente ou "dispensar corretamente" a palavra de Deus.

Uma vez que a Igreja Católica afirma que a Bíblia não é suficiente sozinha, naturalmente ensina que a Bíblia precisa de um intérprete. São duas as razões pelas quais a Igreja Católica ensina isso: primeira, porque Cristo fundou uma Igreja viva para ensinar com Sua autoridade. Ele não deu simplesmente a seus discípulos uma Bíblia, pronta e inteira, e lhes disse para irem e fazerem cópias dela para distribuição em massa, permitindo às gerações futuras fazerem dela a interpretação que pudessem. Segunda, a própria Bíblia afirma precisar de um intérprete.

Com relação a este segundo ponto, lemos em 2 Pedro 3:16 que nas epístolas de São Paulo há "certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e vacilantes torcem [distorcem],como fazem com as demais Escrituras, para sua própria perdição."

Só nesse único versículo observamos três coisas muito importantes acerca da Bíblia e de sua interpretação: a) a Bíblia contém textos que não são facilmente compreensíveis ou claros, fato este que demonstra a necessidade de um magistério infalível e dotado de autoridade para tornar esses trechos claros e compreensíveis; (8) b) não só é possível que as pessoas "torçam" ou distorçam o significado das Escrituras, mas isso, na realidade, tem ocorrido desde os primeiros dias da Igreja; e c) distorcer o significado das Escrituras pode provocar a "perdição" das pessoas, um destino realmente desastroso. A partir destas considerações, é óbvio que São Pedro não acreditava que a Bíblia fosse a única regra da fé. Mas tem mais.

Em Atos 8:26-40 lemos a narrativa do diácono São Filipe e do eunuco etíope. Nessa ocasião, o Espírito Santo leva Filipe a abordar o etíope. Quando Filipe percebe que o etíope está lendo o profeta Isaías, lhe faz uma pergunta muito reveladora: "Julgas entender o que lês?" Ainda mais reveladora é a resposta dada pelo etíope: "E como o poderia, se alguém não me explicar?"

Embora esse São Filipe (como conhecido como "o Evangelista") não fosse um dos doze Apóstolos, era porém alguém enviado pelos Apóstolos (cf. Atos 6:6) e que pregava o Evangelho com autoridade (cf. Atos 8:4-8). Conseqüentemente, sua pregação refletia o legítimo ensinamento apostólico. A questão aqui é que a afirmação do etíope confirma o fato de a Bíblia não ser suficiente em si mesma como mestra da doutrina cristã, e as pessoas que ouvem a Palavra precisam sim de uma autoridade para instruí-las adequadamente para que possam entender o que a Bíblia diz. Se a Bíblia fosse realmente suficiente sozinha, o eunuco não ignoraria o significado do trecho de Isaías.

Há também 2 Pedro 1:20, que afirma que "nenhuma profecia das Escrituras resulta de interpretação particular." Vemos aqui a própria Bíblia afirmando em termos inequívocos que as suas profecias não são matéria à qual o indivíduo deva chegar por sua própria interpretação. Também é muito revelador que esse versículo seja precedido por um trecho acerca do testemunho apostólico (versículos 12-18) e seguido por um texto acerca dos falsos doutores (capítulo 2, versículos 1-10). São Pedro está obviamente contrapondo o genuíno ensinamento apostólico aos falsos profetas e falsos mestres, e menciona a interpretação particular como o ponto axial entre os dois. A conseqüência clara disso é que a interpretação particular é uma trilha pela qual o indivíduo deixa o ensinamento autêntico e começa a seguir o ensinamento errôneo.

6. Os primeiros cristãos não tinham uma Bíblia

Os estudiosos da Bíblia dizem-nos que o último livro do Novo Testamento não foi escrito antes do fim do 1º século A.D., ou seja, até cerca do ano 100 A.D. (9) Este fato deixaria um intervalo de cerca de 65 anos entre a Ascenção de Nosso Senhor ao Céu e o acabamento da Bíblia tal como a conhecemos. É a seguinte, pois, a questão que se deve levantar: "Quem ou o que servia como autoridade final e infalível durante esse tempo?"

Se a doutrina protestante da Sola Scriptura fosse verdadeira, então, uma vez que a Igreja existiu por certo tempo sem a completa Palavra de Deus escrita, teria havido situações e questões doutrinais que não poderiam ter sido resolvidas definitivamente até que todos os livros do Novo Testamento estivessem completos. O barco teria sido deixado sem leme, por assim dizer, pelo menos durante algum tempo. Mas isso vai de encontro às afirmações e às promessas que Nosso Senhor fez acerca de Sua Igreja - sobretudo "e eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos" (Mt. 28:20) - para não falar que Ele disse a Seus discípulos: "Não vos deixarei órfãos." (João 14:18).

Este ponto é de especial importância, pois as primeiras diversas décadas da existência da Igreja foram tumultuosos. As perseguições já haviam começado, os fiéis estavam sendo martirizados, a nova Fé estava lutando para crescer e alguns falsos ensinamentos já haviam surgido (cf. Gálatas 1:6-9). Se a Bíblia fosse a única regra de fé do cristão, e uma vez que a Bíblia ainda não havia sido escrita - e muito menos havia sido determinado o seu cânon - até 65 anos depois da Ascenção de Cristo, como a Igreja dos primeiros tempos lidou com as questões doutrinais sem uma autoridade que determinasse o que se devia fazer?

Os protestantes aqui podem ser tentados a dar duas possíveis respostas: 1) que os Apóstolos eram temporariamente a autoridade final enquanto o Novo Testamento estava sendo escrito, e 2) que o Espírito Santo foi dado à Igreja e Sua orientação direta foi o que preencheu o intervalo de tempo entre a Ascenção de Nosso Senhor e o final da redação do Novo Testamento.

Com relação à primeira resposta, é verdade que Jesus Cristo investiu os Apóstolos com Sua autoridade; a Bíblia, porém, em nenhum lugar indica que o papel ativo dessa autoridade dentro da Igreja cessaria com a morte do último Apóstolo. Muito pelo contrário, a Bíblia é muito clara: a) em nenhum lugar diz que uma vez falecido o último Apóstolo, a forma escrita da Palavra de Deus se tornaria a autoridade final; e b) os Apóstolos claramente escolheram sucessores que, por sua vez, dispunham da mesma autoridade de "ligar e desligar." Isto fica claro na eleição de Matias em substituição a Judas Iscariotes (Cf. Atos 1:15-26) e na passagem por parte de São Paulo de sua Autoridade Apostólica a Timóteo e Tito (cf. 2 Timóteo 1:6, e Tito 1:5). Na melhor das hipóteses, o protestante reforça o ensinamento católico ao insistir na autoridade dos Apóstolos.

No que diz respeito à segunda resposta - que a orientação direta do Espírito Santo preencheu o intervalo de tempo -, o problema com uma tal posição é que a orientação direta do próprio Espírito Santo é uma fonte extra-bíblica (ou seja, "fora da Bíblia") de autoridade. Naturalmente, a Bíblia fala muito claramente da presença do Espírito Santo entre os fiéis e de Seu papel em ensinar "toda a verdade" aos discípulos, mas se a orientação direta do Espírito Santo fosse, de fato, a autoridade final durante aqueles 65 anos, a história da Igreja teria conhecido duas autoridades finais sucessivas: primeiro a orientação direta do Espírito Santo, com essa orientação sendo em seguida substituída pelas Escrituras, que se teria tornado sola, ou a "única" autoridade final. E se essa situação de uma autoridade suprema extra-Bíblica for concebível de uma perspectiva protestante, será que isso não abre as portas para a posição católica, que diz que a autoridade docente da Igreja é a autoridade direta final - pois tira sua autoridade de Cristo e seu ensinamento das Escrituras e da Tradição, guiada pelo Espírito Santo?

O Espírito Santo foi enviado à Igreja por Jesus Cristo, e é exatamente esse mesmo Espírito que protege o chefe visível da Igreja, o Papa, e a autoridade docente da Igreja, não permitindo jamais que ele ou ela caiam em erro. Os católicos crêem que Cristo de fato enviou o Espírito Santo à Igreja e que o Espírito Santo tem sempre estado presente na Igreja, ensinando-lhe toda a verdade (João 16:13) e protegendo continuamente sua integridade doutrinal, sobretudo por meio do ofício de Papa. Assim, o Evangelho ainda teria sido pregado - infalivelmente e com autoridade - mesmo se nenhum versículo do Novo Testamento tivesse sido escrito.

7. A Igreja fez a Bíblia, e não vice-versa

A doutrina da Sola Scriptura passa por alto - ou pelo menos minimiza enormemente - o fato de que a Igreja veio antes da Bíblia, e não o contrário. Foi, de fato, a Igreja que escreveu a Bíblia sob a inspiração de Deus Omnipotente: os israelitas como a Igreja do Antigo Testamento (ou "pré-católicos") e os primeiros católicos como a Igreja do Novo Testamento.

Nas páginas do Novo Testamento, observamos que Nosso Senhor dá certa primazia à autoridade docente de Sua Igreja e a sua proclamação em Seu nome. Por exemplo, em Mateus 28:20, vemos Nosso Senhor ordenando aos Apóstolos irem e ensinarem em Seu nome, fazendo discípulos de todas as nações. Em Marcos 16:15 observamos que se ordena aos Apóstolos irem e pregaram a todo o mundo. E em Lucas 10:16 vemos que aquele que ouve os setenta e dois ouve a Nosso Senhor. Estes fatos são muitíssimo reveladores, pois em nenhum lugar vemos Nosso Senhor ordenando a Seus Apóstolos que evangelizem o mundo escrevendo textos em Seu nome. A ênfase é sempre dada à pregação do Evangelho, não à impressão e distribuição dele.

Assim, segue-se daí que a liderança e a autoridade docente da Igreja são elementos indispensáveis entre os meios pelos quais a mensagem evangélica deve alcançar os limites da terra. Uma vez que a Igreja produziu as escrituras, é totalmente bíblico, lógico e razoável dizer que só a Igreja tem autoridade para interpretá-las e aplicá-las corretamente. E em sendo assim, em razão de sua origem e natureza, a Bíblia não pode servir como a única regra de fé para os cristãos. Ou seja, ao produzir as Escrituras, a Igreja não elimina a necessidade de que ela mesma ensine e interprete essas Escrituras.

Além disso, é razoável dizer que simplesmente por deitar por escrito o ensinamento apostólico, a Igreja de algum modo tornou esse ensinamento escrito superior ao oral? Como a organização docente que Nosso Senhor estabeleceu, Sua Palavra tem autoridade, mas porque a palavra é de uma forma e não de outra, isso não significa que uma forma deva ser subjugada pela outra. Uma vez que a única Revelação de Deus se apresenta sob duas formas, negar a autoridade de uma forma seria negar a autoridade também da outra forma. As formas da Palavra de Deus são complementares, não excludentes. Assim, se há necessidade das Escrituras, também há necessidade da autoridade docente que as produziu.

8. A idéia de que a autoridade das Escrituras existe à parte da autoridade docente da Igreja é totalmente estranha à Igreja primitiva.

Se consultarmos os textos dos primeiros Padres da Igreja, veremos referências à Sucessão Apostólica, (10) aos bispos como guardiães do Depósito da Fé (11) e ao primado e à autoridade de Roma. (12) O peso somado dessas referências revela claramente o fato de que a Igreja primitiva se compreendia a si mesma como dotada de uma hierarquia, a qual era central à preservação da integridade da Fé. Em nenhum lugar vemos alguma indicação de que os primeiros seguidores de Cristo desdenharam essas posições de autoridade e consideraram-nas não-válidas como norma de fé. Muito pelo contrário, vemos nesses textos que a Igreja, desde seus primórdios, considerou seu poder de ensinar fundamentado numa inseparável combinação de Escrituras e Tradição Apostólica - com ambas sendo ensinadas e interpretadas com autoridade pelo Magistério docente da Igreja, com o Bispo de Roma como chefe.

Dizer que a Igreja primitiva cria na noção de "só a Bíblia" seria o mesmo que dizer que os homens e as mulheres de hoje acham que as nossas leis civis possam funcionar sem o Congresso legislando sobre elas, sem tribunais para interpretá-las e sem polícia para fazê-las serem respeitadas. Só seria necessário um bom número de livros de direito em cada casa de família, para que os cidadãos pudessem determinar por si mesmos como entender e aplicar cada lei. Tal idéia é absurda, é claro, pois ninguém em sã consciência pode esperar que as leis civis funcionem dessa maneira. A conseqüência de um tal estado de coisas seria sem dúvida a anarquia total.

Muito mais absurdo, portanto, é afirmar que a Bíblia possa funcionar por si só e à parte da Igreja que a escreveu. É exatamente essa Igreja - e não qualquer cristão - que possui sozinha a autoridade divinamente concedida para interpretá-la corretamente, bem como para legislar sobre matérias que envolvem a conduta de seus membros. Se não fosse assim, a situação em todos os níveis - local, regional ou global - rapidamente degeneraria em anarquia espiritual, na qual cada cristão poderia formular um sistema teológico e desenvolver um código moral com base apenas em sua interpretação particular das Escrituras.

Não é isso que a história tem realmente presenciado desde o século XVI, quando ocorreu a chamada Reforma? De fato, um exame do estado de coisas na Europa imediatamente a seguir da gênese da Reforma - sobretudo na Alemanha - demonstra que o resultado direto do ensinamento da Reforma foi a desordem espiritual e social. (13) O próprio Lutero deplorou o fato de que "infelizmente, vemos todos os dias que agora, sob o Evangelho, [seu] povo conserva um ódio e uma inveja maiores e mais amargos, e sua avareza e fome de dinheiro são piores do que sob o Papado." (14)

9. Os heresiarcas e os movimentos heréticos basearam suas doutrinas nas Escrituras interpretadas à parte da Tradição e do Magistério.

Se considerarmos a história da Igreja primitiva, veremos que ela lutou sem cessar contra as heresias e aqueles que as promoviam. Também veremos a Igreja sempre respondendo a essas ameaças convocando Concílios (15) e voltando-se para Roma a fim de resolver essas disputas em matéria de doutrina e disciplina. Por exemplo, o Papa Clemente interveio numa controvérsia na Igreja de Corinto no final do século I e deu um fim a um cisma lá ocorrido. No século II, o Papa Vítor ameaçou excomungar uma grande parte da Igreja Oriental por causa de uma disputa acerca da data em que a Páscoa devia ser celebrada. No início do século III, o Papa Calixto pronunciou a condenação da heresia sabeliana.

No caso dessas heresias e/ou conflitos disciplinares que surgiriam, as pessoas envolvidas defenderiam suas crenças errôneas por suas respectivas interpretações das Escrituras, independentemente da Tradição Sagrada e do Magistério docente da Igreja. Uma boa ilustração deste ponto é o caso de Ário, o sacerdote do século IV que declarou ser o Filho de Deus uma criatura e não co-igual ao Pai.

Ário e aqueles que o seguiram citavam versículos da Bíblia para "provar" suas teses. (16) As disputas e controvérsias que surgiram acerca de seus ensinamentos tornaram-se tão ásperas que foi convocado o primeiro Concílio Ecumênico em Nicéia, no ano de 325 A.D., para resolvê-las. O Concílio, sob a autoridade do Papa, declarou heréticos os ensinamentos de Ário e fez declarações decisivas acerca da Pessoa de Cristo, e o fez com base no que a Tradição Sagrada tinha a dizer acerca dos versículos das Escrituras em questão.

Aqui vemos a autoridade docente da Igreja sendo usada como a palavra final numa questão doutrinal de extrema importância. Se não houvesse uma autoridade docente a quem apelar, o erro de Ário poderia ter tomado a Igreja. De fato, a maioria dos bispos da época caiu na heresia ariana. (17) Embora Ário tivesse baseado seus argumentos na Bíblia e provavelmente houvesse "comparado Escritura com Escritura," o fato é que chegou a uma conclusão herética. Foi a autoridade docente da Igreja - hierarquicamente constituída - que se adiantou e declarou que ele estava errado.

A aplicação disto é óbvia. Se perguntarmos a um protestante se Ário estava ou não correto ao crer que o Filho era criado, ele sem dúvida responderá pela negativa. Indique então que embora Ário provavelmente houvesse "comparado Escritura com Escritura," chegou a uma conclusão errada. Se isso aconteceu com Ário, que garantia têm os protestantes de que isso também não acontece com a sua interpretação de um determinado trecho da Bíblia? O próprio fato de que o protestante saiba que as interpretações de Ário eram heréticas implica que existe uma interpretação objetivamente verdadeira ou "certa" para as passagens bíblicas por ele usadas. O problema torna-se uma questão de como saber qual é essa interpretação verdadeira. A única resposta possíevl é que deve haver, necessariamente, uma autoridade infalível que nos diga isso. Essa autoridade infalível, a Igreja Católica, declarou Ário herético. Se a Igreja Católica não fosse infalível e dotada de autoridade em sua declaração, os fiéis não teriam tido nenhuma razão para rejeitarem os ensinamentos de Ário, e toda a Cristandade talvez fosse hoje composta por modernos arianos.

É evidente, portanto, que utilizar somente a Bíblia não é garantia de se chegar a uma verdade doutrinal. O resultado acima mencionado é o que acontece quando a errônea doutrina da Sola Scriptura é usada como princípio de orientação, e a história da Igreja e as inúmeras heresias que ela teve de corrigir são um testemunho inegável deste fato.

10. O cânon da Bíblia só foi definido no século IV.

Um fato histórico que se mostra extremamente conveniente contra os protestantes é o de que o cânon da Bíblia - a lista oficial de quais são os exatamente os livros que fazem parte das Escrituras inspiradas - não estava definido e estabelecido até o final do século IV. Até então, havia muitas divergências acerca de quais textos bíblicos eram considerados inspirados e apostólicos em sua origem. O cânon da Bíblia variava de lugar para lugar: algumas listas continham livros que mais tarde foram definidos como não-canônicos, enquanto outras listas não incluíam livros que mais tarde foram definidos como canônicos. Por exemplo, havia textos cristãos primitivos que eram considerados por alguns como inspirados e apostólicos e eram realmente lidos no culto público cristão, mas mais tarde foram omitidos do cânon do Novo Testamento. Entre eles, o Pastor de Hermas, a Epístola de Barnabé e a Didaqué. (18)

Foi apenas após o Sínodo de Roma (382) e os Concílios de Hipona (393) e Cartago (397) que vemos ser estabelecida uma lista definitiva de livros canônicos, e cada um desses Concílios reconheceu a mesmíssima lista de livros. (19) Daí em diante, não houve na prática nenhuma divergência acerca do cânon da Bíblia, sendo a única exceção os chamados Reformadores protestantes, que entraram em cena em 1517, após inacreditáveis 11 séculos!

Mais uma vez, há duas questões fundamentais para as quais é impossível dar respostas em consonância com a doutrina da Sola Scriptura: A) Quem ou o que servia como a autoridade cristã final até a época em que o cânon do Novo Testamento foi identificado? B) E se havia uma autoridade final reconhecida pelos protestantes antes do estabelecimento do cânon, com que base essa autoridade deixou de ser final uma vez estabelecido o cânon da Bíblia?

11. Uma autoridade "extra-bíblica" identificou o cânon da Bíblia.

Uma vez que a Bíblia não veio com um índice inspirado, a doutrina da Sola Scriptura cria outro dilema: Como se pode saber com certeza quais livros pertencem à Bíblia - especificamente, ao Novo Testamento? O fato incontrovertível é que não se pode saber isso, a menos que haja uma autoridade fora da Bíblia que no-lo diga. Além disso, essa autoridade deve, necessariamente, ser infalível, pois a possibilidade de erro na identificação do cânon da Bíblia (20) significaria que todos os fiéis correm o risco de ter os livros errados em suas Bíblias, situação esta que infirmaria a doutrina da Sola Scriptura. Mas se há essa autoridade infalível, desmorona-se a doutrina da Sola Scriptura.

Outro fato histórico muito difícil de reconciliar com a doutrina da Sola Scriptura é que foi exatamente a Igreja Católica que finalmente identificou e ratificou o cânon da Bíblia. Os três concílios acima citados foram todos eles concílios dessa Igreja. A Igreja Católica deu sua definição final, definitiva, infalível do cânon da Bíblia no Concílio de Trento, em 1546 - nomeando a mesmíssima lista de 73 livros aceitos no século IV. Se a Igreja Católica pode, portanto, promulgar uma decisão final e infalível acerca de um ponto tão importante quanto o da lista de livros que pertencem à Bíblia, com que base alguém poderia questionar sua autoridade em outras matérias de fé e moral?

Os protestantes deveriam pelo menos reconhecer um ponto que Martinho Lutero, o fundador de sua religião, também reconhecia, a saber, que a Igreja Católica preservou e identificou a Bíblia: "Somos obrigados a reconhecer muitas coisas nos católicos - (por exemplo), o fato de possuírem a Palavra de Deus, que deles recebemos; caso contrário, absolutamente nada saberíamos sobre ela." (21)

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