A origem do Novo Testamento

 


Autor: D. Estevão Bittencourt


Em síntese: 0 rabino Evilásio Araújo ataca fortemente o Cristia¬nismo, que, segundo ele, deve sua estrutura e doutrina às influências pagãs; os principais veículos do paganismo terão sido o Concílio de Nicéia I (325) e a tradução da Bíblia por obra de S. Jerônimo (t 420 aproximadamente). As alegações do autor são vagas e não devidamente fundamentadas.

O rabino Evilásio Araújo, de Brasília, elaborou veemente panfleto contra o Cristianismo, atribuindo mentiras e contradições aos escritos do Novo Testamento. - A pedido de leitores, exporemos, a seguir, alguns tópicos desse escrito e lhes proporemos breves comentários.


1. Historicidade

O autor impugna principalmente a fidelidade histórica dos escritos do Novo Testamento:

"Os Evangelhos e as Cartas entram em colapso quando os mes¬mos relatos ou ensinos são comparados entre si... Não é raro perceber-se, desde logo, que uma fraude, nem sequer bem arquitetada, foi levada a efeito nos escritos neotestamentários, pelo menos como atualmente conhecidos. Em razão da fé cega dos cristãos, esse assunto não é en¬frentado como merece".


Comentando:

1) 0 autor fala de numerosas contradições entre os Evangelhos e as cartas do Novo Testamento, mas em todo o seu escrito não aponta uma só à guisa de exemplo. É preciso que concretize suas afirmações para que mereçam crédito.

2) Houve fraude ou retoques no texto originário do Novo Testamen¬to para que chegasse à forma atual? - Quem afirma isto, deve saber como era o texto originário. Cabe-lhe mostrar ao público essa face primitiva do texto sagrado (estaria oculta em poder de alguma sociedade esotérica?). Manuscritos neotestamentários que a ciência conhece, não permitem dizer que o Novo Testamento foi mutilado, acrescido ou altera¬do de modo a perder sua identidade inicial.

3) A fé cega dos cristãos terá ignorado a dita fraude ou manipulação do texto sagrado... Respondemos que em vinte séculos houve cristãos críticos dispostos a reconhecer as vicissitudes do texto sagrado. Ademais o estudo bíblico não é privilégio dos cristãos; é cultivado também por não cristãos e racionalistas que não têm fé cega, mas que nem por isto puderam provar ter havido fraudes ou manipulação do texto bíblico. 0 prof. Evilásio julga que foram dois os grandes momentos de deturpação da mensagem primitiva: o Concílio geral de Nicéia I (325) e a tradução da Bíblia para o latim por obra de São Jerônimo (séc. IV/V).

Examinemos cada qual de per si.


2. 0 Concílio de Nicéia 1(325) Eis o que escreve Evilásio:

1.5 Dois marcos históricos principais estão associados com a formarão do "Novo Testamento", atualmente conhecido. 0 primeiro marco foi o Concílio de Nicéia (iniciado em 325 EC), convocado pelo Imperador Constantino, que o presidiu na sua abertura, mesmo sendo um pagão, pois jamais Constantino se convertera ao cristianismo, conforme relato falso da igreja de Roma. Ele exerceu o cargo de sacerdote do deus-Sol até que, no seu leito de morte, em 337 EC, o Bispo de Roma procedeu a um ritual de conversão, quando ele nem mais podia manifestar-se sobre se essa era sua vontade. No Concílio de Nicéia, foi aprovado, além da autoridade política dos bispos, o cânon do "Novo Testamento", quando foram rejeitadas centenas de escritos tidos como sagrados por muitos cristãos fora de Roma, compostos de relatos evangélicos e cartas dos apóstolos e primitivos discípulos, hoje rejeitados. Também, naquela ocasião, por meio de voto, foi aprovada a Divindade de Jesus, que, a partir de então, passou a ser, oficialmente, a Segunda Pessoa da Trindade, abrindo-se daí a oportunidade ao estabelecimento de Mariolatria, pois Maria, genitora de Jesus Nazareno, logo seria alçada ao papel de Mãe de Deus (em grego: Theotokos), já que, obviamente, Jesus sendo deus, segundo essa doutrina, sua mãe seria a Mãe de Deus, como hoje é adorada pelos cristãos católicos e ortodoxos gregos e russos.


Comentando... 0 texto acima é confuso:

1) Constantino era adorador do Sol Invictús quando em 312 obteve uma vitória decisiva sobre seu rival Maxêncio após a visão da Cruz no céu (visão que, conforme bons historiadores, foi um fato histórico). Daí por diante, tornou-se adepto do Cristianismo, embora só tenha sido batizado em seu leito de morte. Por isto quis harmonizar os cristãos divididos pela heresia ariana (o Filho seria a primeira criatura de Deus Pai) e, para tanto, convocou o Concílio geral de Nicéia I em 325. Reuniram-se assim padres conciliares e teólogos, que, juntamente com legados do Papa, puderam deliberar livremente sobre a questão em foco e acabaram formulando o símbolo de fé niceno, que professava a Divindade do Filho: "gerado, não criado, da essência mesma do Pai". Esta profissão de fé, que a um não cristão pode parecer um avanço do paganismo, nada tinha de inovador: desde o século I os cristãos morriam mártires porque professavam a Divindade de Cristo, como atestam os trechos de Atas de martírio transcritos às pp. 157-159 deste fascículo; em Nicéia apenas se removeu uma falsa concepção da Divindade do Filho - a concepção de Deus inferior ou Deus criado.

2) Se Jesus é Deus feito homem, entende-se que Maria desde remota época tenha sido invocada como Mãe de Deus (Theotókos) feito homem - o que não implica adoração de Maria, mas veneração, ... veneração como aquela que todo bom filho tributa à sua mãe.

3) Quanto à rejeição de livros tidos como apócrifos, não foi feita segundo critérios políticos, mas em conseqüência do amadurecimento da consciência do povo de Deus, que se manifestou finalmente pela voz da Igreja. A primeira definição do catálogo bíblico tal como ele hoje existe deve-se ao Concílio de Hipona (393).

Vê-se, pois, que o Concílio de Nicéia I não pode ser considerado canal de deturpação da primitiva mensagem cristã.

Passemos a São Jerônimo.


3. A Vúlgata Latina de São Jerônimo Eis o que a propósito escreve o autor do panfleto:

"1.7 O segundo marco desta história mal contada e deturpada pe¬los cristãos, como bem sabido dos estudiosos, tem a ver com o tempo do Bispo Dâmaso (Papa Dâmaso), que determinou a São Jerônimo que procedesse a uma reforma no texto do "Novo Testamento" para eliminar seus conteúdos considerados exacerbadamente judaicos, retirando as possíveis dúvidas sobre a origem de Jesus Nazareno [a que nenhum livro de História da época se refere] e afastando certas passagens que retratavam a humanidade do messias cristão de forma exagerada. Em seu livro derradeiro, Retractationis, Jerônimo confessa sua resistência em obedecer à ordem papal e principalmente suas crises de consciência em ter cumprido uma missão que resultou em maior fraude do que aquela per¬petrada pelo Concílio de Nicéia.

Quando um cristão ler o "Novo Testamento", o grau de sua ignorân¬cia pode ser mensurado pelo valor atribuído à obra como um todo. Ou ela é de Deus, ou não é, e a única maneira de saber isso é comparando-a com a "Revelação do Sinai"


Comentando...

1) Antes do mais, é de notar que entre as obras autênticas de São Jerônimo não constam as Retractationes (nes no fim) atrás citadas. Sabe-se que há elevado número de obras falsamente atribuídas a São Jerônimo entre as quais devem estar as Retractationes.

2) São Jerônimo não foi intimado pelo Papa São Dâmaso a fazer uma reforma do texto bíblico, retirando ou acrescentado alguns tópicos para dissipar dúvidas sobre a origem de Jesus Nazareno, mas recebeu a incumbência de traduzir a Bíblia dos originais para o latim. 0 propósito desta tarefa era a confusão que se instaurara nos ambientes cristãos por causa das diversas traduções latinas em curso; não havia uma tradução única, oficial, mas diversas modalidades devidas a improvisadores, que não traduziam do hebraico (original) para o latim, mas da tradução grega dos LXX para o latim. 0 próprio Jerônimo transmite uma idéia dessa confusão quando escreve:

"Mas hoje em dia a arte de entender as Escrituras a cada passo qualquer um pensa sabê-la. E como disse o poeta: Os doutos e os tontos escrevemos a cada instante coisa de poesia".

A velha tagarela e o velho caduco, o sofista charlatão e quaisquer pessoas presumem entender a Escritura, esmiuçam-na e até a ensinam antes de aprendê-la.

Há os que organizam círculos de mulherzinhas, alteiam a sobran¬celha, soltam grandes palavras e tratam das Escrituras Sagradas como filósofos. Outros - que vergonha! - aprendem de mulheres o que hão de ensinar a homens e, como se não bastasse, explicam adiante o que eles não entendem.

Não quero falar de meus colegas que, se acaso vêm das letras profanas ao estudo das santas Escrituras, compõem grandes discursos para gosto do povo, e qualquer coisinha que falam têm por Lei de Deus. Não se dignam saber o que em verdade pensaram os profetas ou os apóstolos, mas ainda a seu próprio sentido adaptam à força testemunhos incongruentes. Como se fosse grande coisa, e não maneira viciosíssima de ensinar, depravaras sentenças e caprichosamente torcera Escritura. Não temos, talvez, o espetáculo das centenas de imitadores de Homero e Virgílio? Não poderíamos dessa maneira chamar cristão a Virgílio (sem Cristo), porque escreveu aqueles versos que dizem: Já volve a Virgem, já volvem os reinos de Saturno: E uma nova Prole é enviada do alto céu?' E o outro, onde diz o pai ao filho: Tu, filho, és minha força, somente tu és grande potência, ainda com palavras que recordam a nosso Salvador na Cruz: `Tais coisas dizia, relembrando, e estava fixo e pregado?'.

Mas estas são coisas de criança e semelhantes ao jogo dos charlatães de feira: ensinar o que não sabem ou, para dizer mais clara¬mente, nem sequer sabem que não sabem" (Carta 53, a Paulino).

Atendendo ao encargo recebido, Jerônimo trabalhou de 382 a 406; fez uma revisão dos textos do Novo Testamento, cotejando as versões latinas existentes com o original grego e traduziu o Antigo Testamento do hebraico para o latim. A obra assim efetuada encontrou resistência por parte do povo, não porque inovasse a doutrina da fé, mas porque o povo cristão estava acostumado às expressões do texto latino em curso; tenha-se em vista, por exemplo, Jonas 4, 6 onde o texto hebraico fala de "mamoneira", ao passo que o povo estava habituado a ler "Deus fez crescer um pé de hera sobre Jonas"; a troca de hera por mamoneira causou alvoroço entre os fiéis, como refere S. Agostinho. Aos poucos, porém, foi prevalecendo a versão de Jerônimo, que se tornou a Vulgata Latina.

Está claro que o texto bíblico sofreu as costumeiras modificações dos copistas, que lhe acrescentaram ou tiraram palavras, trocaram letras, fizeram interpolações... que a crítica moderna sabe detectar e corrigir, sem que haja essencial alteração do texto. Tais fatos ocorrem não somente com os livros do Novo Testamento, mas também com os do Antigo Testamento.

4. 0 Novo Testamento, composição tardia? 0 rabino Evilásio escreve:

"1.4 Nesse sentido, registra-se a própria origem do `Novo Testa¬mento', tal como hoje conhecido, não como uma obra acabada dos primitivos apóstolos e discípulos de Jesus, mas como uma produção literária muito posterior, forjada em época de fortes contendas teológicas sobre a pessoa e a obra do Nazareno, com interesses políticos evidentes, tanto da parte do Império Romano, já então em decadência, quanto pelas auto¬ridades religiosas, já empenhados em disputas pelo Poder mundano".


Comentando...

1) Existe hoje uma respeitável escola de exegetas que tendem a aproximar de Jesus a redação dos Evangelhos. Baseiam-se, em parte, na papirologia. Com efeito, foram descobertos em Qumram e Oxford frag¬mentos papiráceos atribuídos respectivamente a Marcos e Mateus que bons pesquisadores datam de meados do século I; ver a propósito PR 415/1996, pp. 564-569. Para o prof. Carsten Peter Thiede a proximidade é tal que ele tem o Evangelho de Mateus (ao menos, em parte) como testemunha ocular de Jesus (tal é o título do livro publicado pela Edito¬ra Imago; cf. PR 399, 1995, pp. 350ss.

2) Alguns estudiosos traduziram os Evangelhos do grego para o aramaico e verificaram que o texto é mais compreensível neste idioma do que naquele. Isto evidencia a origem antiga do atual texto do Evangelho; é o eco fiel da pregação dos primeiros discípulos e não data da época tardia influenciada por interesses políticos como pensa o prof. Evilásio.

Diz a propósito o Prof. Gianfranco Ravasi, emitente biblista italiano:

"Foi possível captar no aramaico os jogos fonéticos subjacentes, com os quais se favorecia a lembrança e se comprovava a fidelidade da transmissão dos conteúdos. A poesia e a prosa literária hebraicas, de fato, estão ligadas à sonoridade, isto é, ao amálgama harmônico dos sons dos vocábulos..., aos matizes das tonalidades, que se manifestavam so¬bretudo na recitação oral" (citado por V. Messori, Padeceu sob Pôncio Pilatos?, p. 295).

Vê-se assim que a rima dos vocábulos reaparece nas traduções feitas para o aramaico, que era a língua falada por Jesus e pelos Apóstolos.

Em conclusão, escreve Gerhardson: "A própria raiz hebraica da árvore cristã fez com que a tradição evangélica, ligada ao rabino Jesus de Nazaré, ofereça uma sólida garantia de qualidade e fidelidade histórica nas palavras de Jesus e nas lembranças sobre Jesus" (ib. p. 297).


5. Conclusão

0 panfleto que acaba de ser comentado, é autêntico espécime da crítica preconceituosa e cega desferida contra a Igreja Católica. Deus leve em conta a possível candura ou boa fé de quem se deixou assim iludir!

Juntamente com o antagonismo expresso pelo panfleto existem no mundo de hoje correntes de "Judeus por Jesus", que aceitam Jesus como Messias e os escritos do Novo Testamento. Como dizem esses irmãos, tornar-se cristão não significa deixar de ser judeu, pois o judaísmo é es¬sencialmente expectativa do Messias. Possa tal concepção sobrepujar a atitude fechada do fundamentalismo! Ver PR 498/2003, pp. 543-553.


Apêndice

Para mostrar que a crença na Divindade de Cristo não foi forjada paulatinamente sob a inspiração do paganismo e definida no século IV, vão, a seguir, transcritos trechos das Atas de Mártires que desde o século II (geração pós-apostólica) morreram por proclamarem Cristo Deus.


1. SÃO POLICARPO DE ESMIRNA (? 156) Das Atas do Martírio de São Policarpo:

«Insistiu ainda o procônsul: "Faze o juramento e eu te libertarei. Insulta ao Cristo". Respondeu Policarpo: "Há oitenta e seis anos que o sirvo e nunca me fez mal algum. Como poderia blasfemar meu Rei e Salvador?".

Como de novo insistisse, dizendo: "Jura pela fortuna de César", replicou Policarpo: "Se esperas, em vão, que vá jurar pela fortuna de César, simulando ignorar quem sou, ouve o que te digo com franqueza: eu sou cristão! Se, por acaso, quiseres aprender a doutrina do cristianis¬mo, concede-me o prazo de um dia e presta atenção!"

Nem com isso desistiu o procônsul: "Tenho feras", disse, "às quais te lançarei, se não te converteres". "Faze-as vir", respondeu Policarpo; "impossível para nós uma conversão do melhor ao pior; o bom é poder passar dos males à justiça". De novo, o procônsul: "Se não te converteres, se desprezas as feras, eu te farei consumir pelo fogo". Policarpo: "Ameaças com o fogo que arde um momento e logo se apaga. Não conheces o fogo do juízo que há de vir e da pena eterna onde serão queimados os inimigos de Deus. Mas, que esperas ainda? Dá a sentença que te apraz!"

Proferindo estas e outras palavras, transbordaram nele a generosidade e a alegria e no seu rosto resplandeceu a graça. Não somente o interrogatório não o perturbou, mas foi o procônsul quem perdeu a calma. Este mandou então o arauto proclamar por três vezes no estádio: "Policarpo acaba de confessar-se cristão">>.


2. SÃO JUSTINO (? 165 aproximadamente)

Justino foi denunciado por um invejoso, que de filósofo só tinha o nome e as vestes aparatosas; as atas do processo foram conservadas. São de uma autenticidade incontestável. 0 filósofo comparece diante de Rústico, que havia iniciado o jovem Marco Aurélio na moral de Epicteto. Fazem-se as jogadas. Justino sabe-o. Não se trata mais de convencer, senão de confessar.

«A que ciência te dedicas?

- Estudei sucessivamente todas as ciências. Acabei por apegar-me à doutrina verdadeira dos cristãos,,.

As respostas são simples e nobres, nítidas como o metal. Conde¬naram Justino a ser flagelado e depois a sofrer a pena capital. Assim, glorificou ele a Deus. Sua vida terminava, como as atas que no-la contam, numa doxologia. Era a sua última celebração.

Justino não estava só: achava-se cercado de seus discípulos. As atas citam seis deles. E esta presença constituía a homenagem mais comovente que se possa prestar a um mestre da sabedoria.


3. OS MÁRTIRES DE LIÃO (177-178)

<<Maturus,Sanctus, Blandina e Átala foram conduzidos às feras no anfiteatro para alegrar os olhos dos pagãos sem coração. Era um dia de combate contra as feras, feito expressamente por causa dos nossos.

Maturus e Sanctus sofreram novamente no anfiteatro toda sorte de tormentos como se antes não tivessem sido torturados. Mas eles eram como atletas, já vencedores do adversário em outros combates e que travavam então a batalha decisiva pela coroa. Vieram ainda as chicotadas, segundo os usos do país, os ferimentos das feras e tudo que o povo delirante reclamava aos gritos provenientes de todos os lados; enfim, a cadeira de ferro onde os corpos, tostando, exalavam um odor de gordura. Mas os pagãos não estavam saciados. Sua raiva redobrava contra os mártires, querendo vencer sua resistência.

Apesar de tudo, nada puderam arrancar de Sanctus, a não ser a confissão de fé que ele repetia desde o princípio. Para terminar, pois a vida dos mártires resistia ainda após toda essa luta, degolaram-nos. Nesse dia, os mártires oferecidos em espetáculo bastaram para substituir os duelos de gladiadores e suas peripécias.

Blandina, suspensa a um poste, devia servir de presa às feras de sencadeadas. Vendo-a assim, como crucificada e orando em voz alta, os combatentes se sentiam mais valentes. Em plena luta, eles olhavam sua irmã e criam ver nela, com os olhos do corpo, o Cristo crucificado por eles, a fim de assegurar aos crentes que aqueles que sofrem por sua glória viverão para sempre com o Deus vivo.

Entretanto nenhuma das feras tocou Blandina naquele dia. Tira¬ram-na do poste e tornaram a levá-la para a prisão. Guardavam-na para outro combate. Suas vitórias repetidas no decorrer de tantas provações tornavam-se assim para a pérfida Serpente um revés sem remédio e para esses irmãos um aguilhão à bravura. Ela, a pequena, a frágil, a desprezada, mas revestida de Cristo, o grande e invencível Atleta, havia rechaçado várias vezes o Adversário. Ela devia merecer no último com¬bate cingir a coroa da imortalidade».


4. SÃO CIPRIANO DE CARTAGO (? 258)

Um ano mais tarde, um novo edito imperial agravou o primeiro. Cipriano foi chamado a Cartago. Ele só chegou aí no momento em que o procônsul já estava de volta. Porque, escrevia ele com a grandeza que o definia: "Convém que um bispo confesse o Senhor na cidade de sua igreja, e deixe a seu povo a lembrança de sua confissão". Prepara-se para a morte com a mesma coragem lúcida que costuma colocar em todas as coisas que faz.

Assim que os fiéis souberam da chegada de seu bispo, cercaram-lhe a casa. Cipriano, com o tato que lhe era característico, pediu simples¬mente que afastassem as jovens, para poupá-las aos desmandos dos homens da tropa. A última noite antes do comparecimento parecia uma vigília de martírio. No dia seguinte, o bispo comparece diante do procônsul. Possuímos o processo, lacônico, onde cada palavra é carregada de sentido.

«És Thascius Cyprianus?

- Sou.

- Tu te fizeste papa desses homens sacrílegos? - Sim.

- Os santíssimos imperadores ordenaram que fosses sacrificado. - Eu sei.

- Reflete bem.

- Faze o que te foi ordenado. Em semelhante situação, a reflexão é inútil.

O procônsul deliberou, depois pronunciou a sentença: "Ordenamos que Thascius Cyprianus seja morto pelo gládio".

- Graças a Deus. Deo gratias>>, respondeu o mártir.

Imediatamente o condenado foi conduzido ao lugar do suplício. Despojou-se de seu manto, depois de sua dalmática, que entregou aos diáconos, conservando apenas a túnica de linho. Ajoelhou-se para mergulhar-se numa longa oração. Fez dar ao carrasco, com uma magnanimidade régia, vinte e cinco moedas de ouro. Ele mesmo colocou a venda em torno dos olhos, entregou as mãos para um padre e um diácono amarrarem, a fim de oferecer o seu último sacrifício, e recebeu o golpe mortal.

Era o dia 14 de setembro de 258.

Transcrito da revista Pergunte & Responderemos, abril de 2004 por D. Estevão Bettencourt

Postar um comentário

Deixe seu Comentário: (0)

Postagem Anterior Próxima Postagem