Budismo, o desafio da modernidade


 

Revista : “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 419 – Ano: 1997 – pág. 188


Em síntese : O budismo vai-se expandindo na Europa e na América não porque corresponda ao espírito lógico e cientificista do homem ocidental, mas porque é uma tentativa de descobrir mais e mais os valores da oração e da contemplação. Ora o Cristianismo possui rica tradição mística, que pode atender às aspirações do homem contemporâneo, ao passo que o budismo, professando o panteísmo, incide numa falta contra a lógica, visto que o Absoluto (a Divindade) nunca se poderá identificar com o relativo (o mundo visível). A propagação do budismo vem a ser um apelo indireto aos fiéis católicos para que mostrem ao mundo, de maneira teórica e vivenciada, as riquezas de seu patrimônio de oração e contemplação.


O JORNAL DO BRASIL, cad. B, edição de 10/11/96, pág. 4 publicou um artigo de Ernesto Soto intitulado “Budismo, o Desafio da Modernidade”. – Dado que tem chamado a atenção de muitos leitores, passamos a comentá-lo nas páginas subseqüentes.


1. “BUDISMO, DESAFIO ...”


Antes do mais, importa pôr em relevo os principais traços do artigo em foco. Assim começa o autor :


“Parece religião, tem gosto de religião, jeito de religião, mas não é religião. É o budismo, apontado como o maior fenômeno espiritual deste final de milênio. Uma verdadeiro onda budista envolve o mundo ocidental. A crescente aceitação de noções como Karma e reencarnação, dezenas de livros, filmes (após Bertolucci é Jean-Jacques Annaud quem filma atualmente no Tibete com Brad Pitt no papel principal), programa de televisão e a enorme popularidade mundial do Dalai Lama são apenas alguns indicativos da surpreendente atração que os ensinamentos de Buda exercem sobre os ocidentais, fascinando um público constituído principalmente por universitários, profissionais liberais e formadores de opinião.


Cientistas sociais se debruçam sobre o fenômeno procurando entender como as milenares propostas budistas (Buda viveu no século VI, antes de Cristo), mais antigas que as do cristianismo, respondem às indagações espirituais do homem da virada do terceiro milênio que convive com viagens espaciais, computadores, informação em tempo real, CNN e Internet”.


Entre as causas que explicam o avanço do budismo, o articulista aponta as seguintes :


1) O budismo oferece ajuda “para enfrentar a angústia e a depressão geradas pela ameaça do desemprego, a crise econômica, social e psicológica. E, por não encontrarem nas instituições religiosas tradicionais respostas às suas inquietações nem aceitarem que lhes respondam com “normas” enquanto elas buscam desesperadamente um sentido”.


2) “O budismo atrai também porque jamais se afasta da experiência cotidiana das pessoas, resiste perfeitamente à crítica da razão e jamais faz apelo a algo exterior. Na cultura budista não existem nem Deus todo-poderoso, dogmas intocáveis ou normas morais mais impostas do exterior. Albert Einstein costumava afirmar que o budismo era a única religião compatível com a ciência moderna. O budismo dá um gosto de divino permanecendo totalmente humano”.


3) “O budismo fascina por seu respeito ao próximo, sua visão tolerante do ser humano e o profundo respeito pelo meio ambiente ... A atitude não violenta do Dalai Lama em relação aos chineses que oprimem e cometem crime de genocídio no Tibete contribui para o charme envolvente e pouco discreto do budismo”.


4) “O budismo é perfeitamente conciliável com a atual cultura ocidental. Os ocidentais parecem ter-se cansado de conviver com um Deus exterior ao mundo real e de acreditar em verdades imutáveis. Mas não é só isto. O budismo vem também seduzindo pela beleza de seus rituais, sua liturgia e exotismo. Para muitos ocidentais, ele atende às necessidades de símbolos e emoção religiosa sem renunciar a uma transação racional e pragmática”.


Disto isto, vejamos propriamente em que consiste o Budismo. Poderemos averiguar que a pretensa conciliação de budismo e mentalidade ocidental é mais aparente do que real; consiste mais em palavras do que em convergências doutrinárias. O pensamento oriental é pouco lógico em se tratando de religião, ao passo que o pensamento ocidental prima pelo rigor lógico, que é o penhor do êxito de toda pesquisa científica.


2. O BUDISMO: MENSAGEM


Vejamos quem foi o fundador, e o que anunciou ao mundo.


2.1. O fundador


A Palavra “Buda” significa, em língua páli, “o iluminismo”. É o congnome atribuído a Siddhartha Gautama, também conhecido por “Sakyamuni” (o sábio dos Sakya). Deve ter vivido entre os anos 566 a 486 a.C., no nordeste da Índia. Filho de família principesca, foi educado por seu pai no luxo burguês. Casou-se com 19 anos e levou uma vida conjugal feliz e abastada durante dez anos.


A existência faustosa que levava, no entanto, não lhe satisfez. Um belo dia, estimulado pelo encontro com um velho, um doente e um cortejo fúnebre, viu-se forçado a considerar a realidade da vida e a seriedade da passagem do homem sobre a terra. Depois, o exemplo de um religioso mendicante levou o príncipe a abandonar tudo para pesquisar as causas do sofrimento, da velhice, da morte e do renascer. Abandonou então a família, fez-se monge numa floresta e se pôs a estudar os grandes mestres da época.


2.2. As quatro “nobres verdades”


Buda refletiu sobre a realidade que o cercava, fez o respectivo diagnóstico, procurou a causa dos fatos descobertos e finalmente a cura e a terapia dos males apontados. Esse roteiro se concretizou do seguinte modo :


1 – O homem é afetado por múltiplos sofrimentos. Dukkha, ou sofrimento, é o mesmo que nascer, declinar e morrer. Nesse itinerário estão disseminadas a dor e a tribulação. A contínua mudança de tudo, ou sua desintegração, é especial motivo de sofrimento.


2 – A causa de todo esse sofrimento é o desejo, o anseio; o homem quer ser, quer ter ou quer evitar ... Apega-se às coisas sensíveis, porque estas lhe proporcionam uma satisfação momentânea, satisfação esta que, por sua vez, gera ainda mais desejos e apegos. A causa dessa avidez é a ignorância do significado das coisas sensíveis; o homem tende a não considerar o quanto elas são vazias. Se alguém morre com desejos não realizados, deve renascer, e o ciclo de dores continuará.


3 – O sofrimento cessa quando se extinguem todas as aspirações da mente e dos sentidos do indivíduo. Quem se liberta de todos os anseios experimenta a cura e goza de paz e felicidade indizíveis, num estado dito “Nirvana”.


4 – Pergunta-se, então: qual a via que leva a tal felicidade ? É a via média entre extrema mortificação e a desenfreada satisfação dos anseios sensuais. É esta a Quarta “nobre verdade”, que por sua vez compreende oito deveres:


Sila : a) discurso reto; b) agir reto; c) meios de subsistência justos; Samadhi: d) esforço justo; e) atenção justa; f) meditação justa (concentração); Panna: g) idéias justas; h) aspirações (pensamento) justas.


2.3. O Nirvana


A palavra “Nirvana” (sânscrito) significa desaparecimento ou extinção à semelhança da extinção do fogo. Buda afirmava que o mundo todo está em chamas, incendiado pelo fogo do desejo. Cada reencarnação reacende uma chama. O Nirvana a apaga definitivamente e põe termo à vida como os homens a entendem comumente. Por isso, não pode ser descrito com palavras; só o conhece quem o experimentou pessoalmente. Pode ser atingido nesta terra mesmo, embora isso seja difícil e fique reservado a poucos.


O Nirvana só é pleno após a última desencarnação. Então, todos os atributos pessoais desaparecerão; não haverá mais eu, tu, e ele, com suas notas características.


Na verdade, o budismo ensina que no homem não existe um eu ou uma alma permanente; professa a an-atta (não-alma). Essa doutrina é tida como o nervo do budismo; é aquilo que o distingue de todos os outros sistemas filosóficos-religiosos. O eu é apenas uma combinação, sempre em mudança, de forças e energias mentais e físicas, que se podem agrupar em cinco categorias.


- Matéria : solidez, fluidez, calor, movimento;

- Sensação: visão, audição, paladar, olfato, tato, memória;

- Percepção: as seis percepções correspondentes às seis sensações;

- Formação mental : vontade ou atividade mental;

- Consciência : a reação ou a resposta aos fenômenos.


Consequentemente, no Nirvana ou no estado de paz absoluta, o eu estará desintegrado, e não se poderá falar de felicidade pessoal. Haverá um nada, não em sentido negativo, mas sim um nada positivo, porque será a negação das realidades negativas. O bramanismo propõe a salvação mediante a fusão do eu e do Absoluto; o budismo, ao contrário, diz que não devem existir nem o eu nem o Absoluto; o budismo, ao contrário, diz que não devem existir nem o eu nem o Absoluto, mas a superação de ambos no Nirvana, ou em algo que é totalmente positivo e inefável.


Os budistas, mesmo os não consagrados à vida monástica, tendem a levar uma vida sempre mais sóbria, pois procuram extinguir em si mesmo todo desejo e anseio, a fim de poder atingir o Nirvana. Por isso, também os monges são como que os adeptos modelares do budismo; são os conselheiros e orientadores, por excelência, do povo budista.


Buda era contrário aos ritos religiosos e às orações e cerimônias litúrgicas. Por isso, não fundou casta sacerdotal nem quis organizar ou estruturar a sociedade dos seus discípulos.


3. COMPARANDO BUDISMO E CRISTIANISMO ...


Há quem diga que o budismo, na sua concepção originária, não é uma religião, pois volta a sua atenção para o homem mais do que para Deus, procurando levar seus adeptos ao auto-desenvolvimento e à insensibilidade frente às paixões.


O budismo tem em comum com o Cristianismo o anseio por uma vida pura e perfeita, isenta de paixões desregradas. Todavia, as diferenças são evidentes :


- o budismo prega a auto-salvação, ao passo que o Cristianismo prega a “hétero-salvação”. É Deus quem toma a si a salvação do homem (que este, sem dúvida, pode rejeitar);


- o Cristianismo se interessa pela salvação do homem, mas sem deixar de ser teocêntrico ou de estar voltado para Deus; a salvação do homem dá glória a Deus. Em última análise, o mundo e o homem existem porque Deus, que é o Sumo Bem, os fez para difundir a sua bondade e espelhar no homem a sua imagem e semelhança.


- o Cristianismo propõe ao homem o encontro com o “Grande Tu” ou o grande referencial de sua vida. Deixa de ser um sistema físico e mecanicista para ser a mensagem do Amor que “primeiro nos amou” (1 Jo 4,19) e que espera a condígna resposta do homem. A cruz de Cristo, Deus e homem verdadeiro, faz a ponte entre o céu e a terra, e dá ao sofrimento o sentido de um testemunho de fidelidade e amor. A dor foi transfigurada pela ressurreição na Páscoa.


- além dessas, há ainda uma diferença fundamental: enquanto o Cristianismo é monoteísta e fala de um Deus que é o primeiro Amor, o budismo é panteísta, isto é, identifica a divindade com o homem e o mundo. Essa premissa básica provoca uma diferenciação geral entre o sistema de Buda e o de Jesus Cristo. É, sim, ilógico identificar o homem – contingente e volúvel como é – com a própria divindade, que por definição é o contrário do contingente e volúvel. Deus é essencialmente distinto do homem, do mundo e das realidades visíveis, pois Ele é absoluto e eterno, ao passo que as criaturas sensíveis são relativas, transitórias e temporárias. O infinito não resulta das realidades finitas postas em evolução. Nem devemos imaginar que o eterno seja a soma de numerosíssimas parcelas de tempo.


4. POR QUE O BUDISMO ATRAI ?


Proporemos quatro considerações


1) Para quem reflete, o panteísmo é ilógico ou aberrante, como dito, pois afirma que tudo (pan) é Deus (Theós). Desta maneira identifica o finito e o Infinito, o relativo e o Absoluto, o temporário e o Eterno, o contingente e o Necessário, em última análise ... o Sim e o Não. Ora isto não se sustenta aos olhos da razão e, portanto, não se concilia com a mentalidade ocidental, que costuma ser rigorosamente lógica. É a falta de conhecimento exato da doutrina budista que a torna aparentemente compatível com as categorias científicas do homem de hoje. Quem se aprofunda em matéria religiosa, verifica a incompatibilidade da filosofia budista com a mentalidade científica do homem ocidental.


2) Na verdade, o que atrai no budismo, é a sua sede de valores invisíveis e superiores. Todo homem possui o anseio do Absoluto, que fica além das criaturas finitas e relativas como são. A ascese budista, a sua procura de claro encontro com a Divindade mediante um coração purificado é que fascinam o cidadão contemporâneo. Todavia é de notar que a Mística não é privilégio do budismo, ela é humana e, por isto, está muito presente no Cristianismo. Este conta na sua sua história com grandes figuras contemplativas, cheias do amor a Deus e ao próximo, como São Paulo Apóstolo, Santa Teresa de Ávila, Santo Inácio de Loiola, São Francisco de Assis, Santa Teresa de Lisieux, Santa Catarina de Sena ... Basta estudar um pouco a tradição cristã para descobrir belas e profundas páginas de elevação espiritual, que nada deixam a desejar para quem procura a intimidade com Deus (além do quê, não ferem a lógica).


3) Podemos também apontar no artigo de Ernesto Soto a referência a que “não existem no budismo nem Deus todo-poderoso; dogmas intocáveis, ou normais morais impostas ao exterior”. – Realmente estas proposições negativas satisfazem ao subjetivismo da mentalidade moderna, segundo a qual cada um faz sua religião, tem “sua verdade” e pratica sua ética no campo religioso – Todavia religião significa reconhecer a Suma Perfeição ou o Ser Supremo e, consequentemente pelo fato de afirmar que todo ser humano é a própria Divindade ou uma centelha da Divindade. Como dito, porém, o panteísmo é falso e ilusório. Há uma nobre grandeza em entregar-se a criatura ao Criador como sendo a fonte de todos os bens e o esteio da plena realização da criatura.


4) O Catolicismo também é rico de símbolos, que se exprimem através da Liturgia bem celebrada; esta se destina a fazer passar o orante do visível ao invisível e ao amor dos bens definitivos.


Em conclusão, verifica-se que não há como justificar pela lógica e pela mentalidade científica o atrativo do budismo sobre o homem ocidental. A expansão daquela filosofia religiosa vem a ser um apelo indireto para que os fiéis católicos dêem a conhecer ao mundo os valores da oração e da contemplação do Cristianismo. Vivenciando-se e expondo-os aos seus semelhantes, estarão correspondendo a profundo anseio da sociedade moderna.


Estevão Bettencourt O.S.B.


Data Publicação: 09/08/2007

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