Escritura, tradição e revelação

 


Fonte : CNBB
Autor: Dom Demétrio Valentini

Escritura, tradição e revelação - Dom Demétrio Valentini

08 de outubro de 2007


Outubro é pródigo em datas simbólicas, que apontam para valores importantes da vida. O Dia da Criança, a festa de Nossa Senhora Aparecida, São Francisco de Assis, São Benedito o Preto, São Judas Tadeu.


No próximo dia 18, comparece outro santo, talvez mais discreto, mas muito presente na vida da Igreja. Trata-se de São Lucas, autor do terceiro Evangelho e dos Atos dos Apóstolos.


Médico, convertido à fé cristã, colocou sua cultura a serviço do Evangelho, acompanhando Paulo e Pedro nos caminhos da missão. Assumiu o encargo de documentar os fatos, como ele mesmo afirma, "depois de ter investigado tudo cuidadosamente", redigindo por escrito "um relato ordenado" dos "fatos ocorridos entre nós, conforme nos transmitiram aqueles que desde o começo foram testemunhas oculares".


Quanta sabedoria, e que boa teologia, estão presentes nestas palavras iniciais de Lucas! Ele valoriza a "tradição" dos que tinham sido "testemunhas oculares". Ao mesmo tempo, sabe que esta "tradição" iria precisar do confronto objetivo com a forma escrita em que esta "tradição" ia sendo colocada.


De iniciativas como a de Lucas, resultou o tesouro que temos hoje, materializado na Bíblia Sagrada. Ela é resultado do apreço e da valorização da tradição viva dos fatos importantes que iam revelando a intervenção de Deus na história humana.


Portanto, na visão de Lucas, não existe nenhuma contradição entre "tradição viva", e "escritura sagrada". Ao contrário, a "escritura sagrada" é registro da "revelação" surpreendente que Deus foi fazendo através de "acontecimentos", que foram vividos com intensidade por "testemunhas oculares", que os transmitiam com credibilidade e segurança.


Estas ponderações pareceriam inócuas, se não tivéssemos presente a grande questão, ainda não de todo assimilada pelos cristãos, suscitada a respeito do relacionamento entre "tradição oral", "escritura sagrada", e "revelação divina".


Percebemos que se trata de integrar bem o significado de três palavras, que não se excluem entre si, nem se contrapõem, mas ao contrário convergem e se complementam.


Como nos recomenda a lingüística, para situar bem uma palavra precisamos ver o que ela significa. Pois as palavras são símbolos, a serviço de um significado.


Olhando com atenção, percebemos que o "significado" mais amplo é apontado pela palavra "revelação". Ela nos diz que Deus comunicou uma mensagem, que não seríamos capazes de descobrir por conta própria, mas que ele fez questão de nos transmitir, com isto indicando que nos admite a participar do seu mistério. Portanto, uma "revelação" que não se esgota no seu conteúdo objetivo, mas tem o seu peso maior nas conseqüências vitais que suscita.


A revelação, portanto, é um fato profundamente "vital", pois revela a vida de Deus e quanto esta vida de Deus intervém na vida humana.


Entender a revelação como um "fato vital", é o caminho que nos leva a compreender o "significado" teológico das outras duas palavras, "tradição" e "escritura", percebendo quanto ambas fazem parte do mesmo dinamismo de comunicação que parte de Deus e chega até nós.


Quem recebe a "revelação", a testemunha e a transmite. Primeiro, por demonstração vital, mostrando como a revelação repercutiu em sua vida. É a "tradição viva" da revelação de Deus. Depois, esta "tradição viva" é recolhida, e colocada por escrito, numa continuidade dinâmica da própria revelação divina, que assim garante e perpetua o depoimento vital dos que foram "testemunhas oculares", como nos diz São Lucas.


O assunto levaria a outras considerações, em torno da querela histórica levantada no tempo da Reforma, sobre a relação entre "tradição" e "escritura". O próximo Sínodo, previsto para outubro do ano que vem, volta ao assunto, retomando as sábias ponderações já alcançadas no Concílio Vaticano II. A "tradição oral" e a "tradição escrita" não estão em conflito, ao contrário, ambas estão a serviço da "revelação" permanente que Deus continua suscitando, pela força de sua Palavra e pela ação do seu Espírito.


* Dom Luiz Demétrio Valentini, 67, é bispo de Jales (SP)


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