Inscrição sobre Cristo pode ser falsificada




Jornal da Ciência e-mail 2164, de 19 de Novembro de 2002.


Inscrição sobre Cristo pode ser falsificada


Frase "irmão de Jesus" teria sido acrescentada a "Tiago, filho de José" em ossuário; autor da descoberta nega

* Reinaldo José Lopes escreve para a "Folha de SP":


O que foi anunciado em 21 de outubro como a mais antiga indicação arqueológica da existência de Jesus pode não passar de uma fraude, feita para lucrar com o comércio de relíquias sagradas. Essa é a suspeita de um grupo de especialistas sobre o "ossuário de Tiago", que carrega a inscrição "Tiago, filho de José, irmão de Jesus".

Para eles, detalhes da caligrafia e do dialeto do aramaico (o idioma falado pelos judeus da época de Jesus na Palestina) usados na última parte da inscrição mostram que ela teria sido feita por outra pessoa, séculos depois da gravação original -provavelmente para associar a urna funerária a Jesus e obter lucro com isso.


"Seria preciso ser mais cego que um morcego para não ver que duas pessoas diferentes fizeram a inscrição", diz a pesquisadora israelense Rochelle Altman, especialista de sistemas de escrita antigos e professora da Universidade Hebraica de Jerusalém que teve seu alerta lançado no site Israel Insider (web.israelinsider.com).


"Para mim, essa era só mais uma inscrição. Eu nem sabia o que estava nela quando me pediram para analisá-la. Quando vi o que estavam dizendo dela, fiquei surpresa ao ver que não tinham notado uma farsa tão incompetente", disse Altman à Folha.


O ossuário -caixa de rocha calcária para abrigar os ossos de pessoas exumadas- foi revelado ao público pela revista americana "Biblical Archaeology Review". Para o francês André Lemaire, especialista em hebraico e aramaico da Universidade Sorbonne, a análise do artefato sugeria que ele pertencera a Tiago, líder da igreja cristã de Jerusalém e chamado de "o irmão do Senhor" no Novo Testamento. O francês nega que tenha dado destaque a uma falsificação.


Segundo Lemaire, apontavam para o Tiago bíblico o estilo da inscrição, o fato de ossuários só terem sido usados pelos judeus palestinos entre 30 a.C. e 70 d.C. e a combinação de nomes.


Altman, porém, diz que duas mãos muito diferentes fizeram a inscrição. "A primeira parte, que diz "Ya'akov bar Yosef", usa um estilo formal e solene, marcando as letras com uma cunha inicial para demonstrar isso", diz Altman. "É a mão de alguém com boa educação e que conhece os documentos oficiais da época, que usavam um estilo parecido."


Contudo, o trecho "ahui d'Yeshua", ou "irmão de Jesus", é bem diferente, afirma a pesquisadora. "Foi feito por um gravador incompetente, que nem consegue distinguir o "yod" [a letra Y] do "waw" [o W]", diz Altman. "Ele não consegue manter o mesmo estilo de letras e chega a misturar caracteres arcaicos com outros muito modernos", avalia.


O americano Paul Flesher, da Universidade do Wyoming, concorda. Ele analisou as palavras usadas na inscrição e diz que, enquanto a primeira parte está em aramaico "padrão", difícil de atribuir a qualquer dialeto, a segunda traz traços típicos da versão dessa língua falada na Palestina do final do século 2º até o século 7º da Era Cristã -muito tempo depois da morte de Tiago, no ano 63.


Uma dessas marcas é o sufixo possessivo "-wy" (que, colado à palavra "ah", "irmão", quer dizer algo como "seu irmão") -a forma usual no tempo de Jesus seria "-why". A outra é o uso do "d" em "d'Yeshua", que também tem sentido possessivo, ou seja, quer dizer "de Jesus".


Os dois são usados ao mesmo tempo -o que indicaria uma linguagem mais coloquial, diferente do aramaico usado na época de Cristo, diz Flesher. "Do ponto de vista linguístico, essa conclusão é óbvia", afirma o pesquisador. Steve Mason, especialista nos textos judaicos do século 1º e pesquisador da Universidade de Oxford, concorda com a análise.


"A análise de Flesher faz muito sentido, e note que ela lança dúvidas sobre a segunda parte da inscrição, que é contestada por Altman de forma ainda mais persuasiva".


Para os pesquisadores, as análises combinadas apontam para uma fraude montada por volta do século 4º, quando o cristianismo já estava se transformando na religião dominante e a busca por relíquias de Jesus e dos apóstolos estava crescendo. "Ou também para criar uma evidência em favor de Tiago como irmão verdadeiro de Jesus, um debate que estava acontecendo entre os cristãos da época", sugere Altman.


Mesmo com a contestação, Flesher diz que Lemaire tem boa reputação como pesquisador e que a análise é atípica. "Isso nunca teria acontecido numa revista científica", afirma o americano. "Acho que ele ficou tão excitado com aquilo que deixou de lado todas as evidências contrárias à sua hipótese", afirma Altman.

(Folha de SP, 19/11)


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