Os livros proibidos




(Extraído da revista Pergunte e Responderemos de D. Estêvão Bettencourt -março de 2003)


A revista GALILEU, edição de dezembro 2002, publica um artigo sobre os apócrifos, que repete quanto foi dito recentemente por outros periódicos. Os apócrifos revelariam diversos Cristianismos nos primeiros séculos. Após lutas internas, terá prevalecido a atual forma de Cristianismo. - Esta relativização da verdade carece de sólida fundamentação, pois não distingue apócrifos cristãos e apócrifos gnósticos; estes últimos são dualistas e apresentam uma cosmovisão radicalmente diversa da que se encontra nos apócrifos cristãos; de cristão têm apenas p aspecto. Dentro da literatura cristã propriamente dita pode haver enfoques diversos da personalidade e da mensagem de Jesus. Vêm a ser a expressão da variedade na unidade.


A Revista GALILEU, edição de dezembro 2002, pp. 17-23 publicou m artigo de Pablo Nogueira sobre "Os Livros Proibidos. Os segredos os Livros que ficaram fora da Bíblia". Trata dos apócrifos, tema já explorado por periódicos anteriores. A abordagem é tendenciosa, procurando remover o sensacionalismo. A seguir, examinaremos o conteúdo do artigo e lhe faremos comentários.


1. O conteúdo do artigo:


O autor julga que nos primeiros séculos houve "vários Cristianismos" ou várias imagens de Jesus em luta recíproca; prevaleceu finalmente a que hoje existe como vitoriosa: "No início várias visões de Jesus existiam simultaneamente. Só depois de séculos a Igreja começou a considerar umas como ortodoxas e outras como heréticas', explica Pedro Vasconcellos, professor de Teologia da PUC de São Paulo' (p. 9).


Em conseqüência terá sido posto de lado todo um acervo de escritos que falam de Jesus e seus amores para com Maria Madalena, líder e não prostituta,... falam dos ciúmes de São Pedro, do conceito de peca o... Essa bibliografia foi descoberta, em grande parte, no Egito (Nag lammadi) no ano de 1945, tem sido estudada com grande interesse, pois (dizem) revela o que a Igreja terá censurado e retirado dos círculos de leitura dos seus fiéis.


À p. 23 o autor cita Frei Jacir, professor de Teologia em Belo Horizonte, que diz: "Acredito que Jesus era um revolucionário, um anti-romano. Isso é claro no evangelho de Tomé e muitos textos canônicos também deixam entrever. Os canônicos receberam arranjos posteriores e se tornaram pró-Roma. Paulo fez questão de afirmar que era cidadão romano e terminou sua pregação quando o Evangelho chegou a Roma. Já a comunidade de Tiago, fixada em Jerusalém, era mais próxima ao Jesus revolucionário. Muitos textos dessa comunidade não vingaram. Somos fruto da Igreja paulina, que chegou até nós. Não sei se seríamos os mesmos se a igreja de Tiago tivesse vingado".

Este texto sintetiza bem o conteúdo do artigo em pauta. Vejamos o que dizer a propósito.


2. Como avaliar?

Cinco pontos merecem ponderações:


2.1. Título

Na primeira capa da revista lê-se o chamariz sensacionalista: "Livros Proibidos. Os segredos..." - Tais seriam os apócrifos.


Ora os apócrifos nunca foram proibidos a quem os quisesse ler em particular; só não podiam ser utilizados na Liturgia. Esses livros não contêm verdadeiras revelações mantidas em segredo pela Igreja, nem foram censurados no sentido moderno da palavra. Apenas caíram em descaso por seu caráter fantasioso ou mesmo dualista. Atualmente verifica-se que, embora não contenham autênticas revelações de Jesus, são importantes para se reconstituir a história da Igreja antiga; daí o interesse dos estudiosos por tal literatura.


2.2. Apócrifos cristãos e apócrifos gnósticos

Pablo Nogueira e os mestres que consultou não distinguem, como devido, apócrifos de origem cristã e apócrifos de origem gnóstica.


Os primeiros estão na continuidade da tradição que vem de Jesus e passa pelos Apóstolos; procuram preencher lacunas deixadas pelos Evangelhos canônicos; imaginam um Jesus taumaturgo desde a infância num estilo simplório e fantasioso.


Os apócrifos de origem gnóstica têm origem em corrente de pensamento dualista anticristão. Não são complementos genuínos dos apócrifos cristãos, pois supõem o dualismo (a matéria é má, o espírito é bom). Tais apócrifos é que apresentam um "outro Jesus".


Esta matéria já foi longamente abordada em PR 481/2002, pp. 242246 e 482/2002 pp. 302-307, artigos dos quais serão reproduzidos alguns trechos às pp. 109-111 deste fascículo.


2.3. Vários Cristianismos?

Existe um só Cristianismo que procede de Jesus e é entregue aos Apóstolos. Dentro dessa grande corrente pode haver aspectos diversos complementares entre si existe o modo de ver de S. Mateus, que focaliza Jesus como o novo Moisés; o de São Lucas, que vê em Jesus o novo Elias, o de São Paulo, que considera Jesus como a Cabeça do Corpo Místico... Esses enfoques não dividem o Cristianismo nem o põem em luta interna, mas são a expressão da pluralidade ou variedade na unidade.


É gratuito afirmar que tal ou tal comunidade perdeu seus escritos originais ou que esses originais foram enxertados e modificados para se adaptar ao pensamento de outra comunidade, se não há provas disto na série dos manuscritos do Novo Testamento. Qualquer suposta alteração dos textos originais tem que ser comprovada mediante apresentação dos textos não alterados e alterados. É somente na base de manuscritos do texto bíblico que se pode falar de modificações do texto sagrado; sem esta base as afirmações ficam sendo vagas e meramente subjetivas.


2.4. Influências gnósticas em João

À p. 22 lê-se: "A Igreja reconhece que há influências gnósticas no Evangelho de João. Isto aliás fez com que o relato demorasse décadas para ser incorporado ao cânon". Observa-se precisamente o contrário: São João combate a gnose dualista no seu Evangelho e nas suas cartas, pois acentua fortemente: "O Logos se fez carne" (Jo 1, 14); cf. 1 Jo 1, 1-4;.5, 5s.8... - A metáfora joanina "luz e trevas" tem significado moral (virtude e pecado) e não ontológico (como a teoria da gnose).


2.5. Imprecisões


Várias são as imprecisões do artigo:


1) À p. 18 lê-se: "O Cristianismo se torna religião oficial do Império em 335". Na verdade isto se deu em 380 por obra do Imperador Teodósio


I. 2) À p. 23 lê-se: "O Mestre revelou a Maria Madalena que não há pecado. Somos nós que fazemos o pecado quando agimos conforme a nossa natureza idolátrica". Deduzimos que então existe o pecado, o que naturalmente só pode provir dá criatura humana desordenada.


3) À p. 21 a Assunção corporal de Maria é proclamada dogma de fé em 1950 (data correta) e não 1954 (data errônea). Este artigo de fé não "virou dogma" no século XX. À Igreja não é lícito proclamar novos dogmas; ela apenas explicita o que já é professado pela fé dos antigos cristãos.


4) Pablo Nogueira ignora as recentes descobertas de manuscritos que permitem conjeturar tenham sido Mt e Mc redigidos em meados do século I; cf. PR 321/1989, pp. 50ss; 288/1986, pp. 194ss.


5) O Imperador Constantino não morreu em 313 (ano da Paz de Milão), mas em 337. Em suma, Pablo Nogueira repete o que seus colegas de reportagem escreveram, incidindo nas mesmas falhas de quem não é perito no assunto.


APÊNDICE: OS EVANGELHOS APÓCRIFOS


A palavra grega apókryphon significa "oculto". No início da era cristã era chamada "apócrifa" a literatura não lida em público na Liturgia, mas passível de leitura particular, a gosto dos fiéis. Nada tinha (ou tem) de esotérico, escondido ao grande público. Existem apócrifos do Antigo e do Novo Testamento; referem o que a imaginação do povo de Deus concebia, desenvolvendo temas abordados pelos livros canônicos. Interessam-nos nestas páginas os Evangelhos apócrifos de Tiago, Tomé, Nicodemos...


Tais escritos têm dupla origem:


- vários provêm da parte de cristãos simples, admiradores de Jesus e desejosos de exaltá-lo, a ponto de fazer dele um taumaturgo Todo-Poderoso desde a infância. Tais são o Evangelho Árabe da Infância, o Evangelho Armênio da Infância, a História de José Carpinteiro... A respectiva linguagem é popular e, por vezes, incorreta. Os milagres atribuídos a Jesus são extravagantes ou, vez por outra, de mau gosto. Não são anteriores ao século II;


- outros Evangelhos apócrifos têm origem em escolas heréticas, especialmente em correntes do Gnosticismo dualista (a matéria seria má, o espírito bom). - Como réplica a essas doutrinas heréticas, existem apócrifos que têm por fim defender a fé ortodoxa; tal é o Protoevangelho de Tiago, datado de 150 aproximadamente, que professa (através de narrativas fantasiosas) a virgindade de Maria no parto e após o parto: os "irmãos" de Jesus seriam filhos de São José, que, viúvo e idoso, terá sido designado pela Providência Divina para ser o esposo de Maria.


Os Evangelhos apócrifos não gnósticos se classificam em quatro categorias:


1) Apócrifos da Natividade de Maria ou de Jesus: o Protoevangelho de Tiago e suas reelaborações latinas, como o Evangelho do PseudoMateus e o da Natividade de Maria;


2) Apócrifos da Infância: assim os Evangelhos árabe, armênio e latino da Infância de Jesus, a História de José Carpinteiro;


3) Evangelhos da Paixão do Senhor, da Descida à Mansão dos Mortos e da Ressurreição: tais são o Evangelho de Bartolomeu, as Atas de Pilatos;


4) Apócrifos assuncionistas, que narram a morte e a assunção de Maria aos céus. A bem da verdade, é preciso acrescentar que nos apócrifos nem tudo é fantasia ou heresia.


Existem aí várias notícias que a tradição cristã respeita: assim os nomes de Joaquim e Ana, genitores de Maria Ssma., a Apresentação de Maria no Templo aos três anos de idade, o nascimento de Jesus numa caverna entre o boi e o asno, os três reis magos com seus nomes Melquior, Gaspar e Baltasar, os nomes dos dois ladrões Dimas e Gestas, o nome Longino do soldado que desferiu o golpe de lança, o encontro com Verônica na Via Dolorosa...


Os artigos de fé referentes à descida de Jesus à mansão dos mortos e à Assunção de Maria, tão minuciosamente relatados pelos apócrifos, têm sua origem na Tradição oral anterior a tais escritos. Estes dão colo rido vivo às verdades da fé. Não se pode esquecer que, conforme São João (20, 30 e 21, 25), ficou fora da Tradição escrita ou dos Evangelhos muito do que Jesus fez e disse.


Ainda uma observação: São Lucas, em seu Evangelho (1, 3), afirma que em 70 aproximadamente muitos já haviam tentado escrever a respeito dos ditos e feitos de Jesus. Daí a pergunta: terão passado para a literatura apócrifa esses escritos de autores anônimos? - Os estudiosos hoje respondem negativamente; os Evangelhos apócrifos são posteriores aos canônicos (o quarto Evangelho data de 100 aproximadamente), embora possam provir de uma tradição oral antiga.


As alegações relativas a Maria Madalena e seus amores são tiradas da literatura apócrifa gnóstica. Os gnósticos eram dualistas, infensos à matéria e ao matrimônio (tenha-se em vista o Evangelho de Tomé: Je sus seria misógino). Todavia no chamado "Evangelho de Maria" Jesus aparece sensual, tendo Maria Madalena por amante. A contradição evidencia que esses escritos carecem de autoridade histórica e não afetam a figura de Jesus casto e sóbrio. De resto, quem consulta os Evangelhos canônicos, verifica que Madalena não estava sempre ao lado de Jesus, embora fizesse parte do grupo de mulheres que acompanhavam o Senhor, servindo-lhe com seus bens (cf. Lc 8, 1-3). Esse acompanhamento não era constante, pois Jesus aparece muita vezes a sós com seus discípulos; ver Mc 6, 31 s; 9, 33-35; 10, 28-31 ...

A conduta de Madalena no Evangelho não oferece base para se dizer que havia aí algo de pecaminoso. De resto, o articulista parece confundir (como fazem muitos) Maria Madalena com a mulher de má vida que aparece em Lc 7, 36-50 e que é guardada no anonimato; esta banha os pés de Jesus com suas lágrimas e os enxuga com seus cabelos - o que Madalena não fez; Madalena foi libertada de sete demônios, o que não quer dizer que era prostituta ou luxuriosa; ver Lc 8, 2.


(Extraído da revista Pergunte e Responderemos de D. Estêvão Bettencourt -março de 2003)

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