Maria, Mãe do crentes, numa perspectiva ecumênica

 


Fonte: Maria, Um espelho para a Igreja

Autor: Raniero Cantalamessa


Procuremos agora entender o sentido deste título de maria, Mãe dos Crentes e Mãe da Igreja, a partir de algumas categorias bíblicas com a esperança que isso ajude também a tornar esta crença da Igreja Catolica compreensível - e não mais escandalosa - aos irmãos protestantes.


Esclareço antes de tudo, o principio que está na base das reflexões que se seguem. Se Maria, como foi visto, coloca-se fundamentalmente ao lado da Igreja, consequentemente as categorias e as afirmações de onde partir, para explicar quem é ela, são mais aquelas que se referem às pessoas humanas que constituem a Igreja, aplicadas a ela - "a fortiori", do que aquelas que se referem às pessoas divinas ou a Cristo, aplicadas a ela por redução. Para entender, por exemplo, da maneira mais correta o conceito delicado da mediação de Maria na Obra da Salvação, talvez seja mais útil e mais oportuno partir da mediação da criatura, como a de Abrãao , de Paulo, dos Apóstolos, do que da mediaçao divino-humana de Cristo. De fato, a distancia maior nao é a que existe entre Maria e o resto da Igreja, mas a que existe entre a Igreja de um lado e Cristo com a Trindade do outro lado; entre as criaturas e o Criador. Não é possível , ou é perigoso, fazer uma cristologia a partir "de baixo", isto é, a partir do homem antes que de Deus, porque "Ninguem subiu ao céu a não ser aquele que desceu do céu (cf. Jo 3,13); ninguém pdoe pleitear para Cristo a dignidade de Deus, se Ele não for Deus já na origem; pois é possivel tornar-se homem mais não tornar-se Deus . É possivel porém, e até obrigatório procurar uma mariologia a partir "de baixo". Houve um tempo no qual praticamente todos os titulos de Maria eram deduzidos de um princípio dogmático, como "cheia de graça", ou "Mãe de Deus" . Mas agora a Luz do tratado do Conc;ilio Vaticano II, podemos utilizar o outro caminho, por indução, a partir da Palavra de Deus.


A primeira analogia,a partir "de baixo ", que a Bíblia nos apresenta, para falar de Maria, é a de Abrãao. Värias vezes tocamos de leve na comparação entre Abrãao e Maria, mas agora chegou o momento de considerá-la mais profundamente. É um fato singular que Cristo, no Novo Testamento, nunca é chamado de novo Abrãao, ao passo que é chamado , pelo menos implicitamente, de novo Adão, novo Isaac, novo Jacó, novo Moisés, novo Aarão, etc. É Isaac, o filho, que é tipo de Cristo, mas em Maria, porque ele é consituido pai pela fé, e representa a fé: algo que o Novo testamento nunca atribui a Jesus, mais atribui a Maria, quando a proclama bem aventurada pela sua fé (Cf. Lc 1,45).


A comparação entre a fé de Abrãao e a de Maria esta esboçada no relato mesmo da Anunciação. A Maria , que em contraste com a promessa que lhe é feita lembra ao anjo a situação de virgem, é dada a mesma resposta (no texto dos LXX, a identidade é ainda mais clara) que foi dada a Abrãao, depois que Sara tinha feito a mesma observação a proposito da sua velhice e esterilidade : Nada é impossivel a Deus (Lc 1,37 ; Gn 18,17) (cf.M.THURIAN, Marie du Seigneur, figure de l''Eglise,Taizé 1963 (Trad. Morcelliana, Brescia 1987, 99.94ss).


Mas esta correspondencia aparece sobretudo a partir dos fatos. Na vida de Abrãao encontramos dois Grandes atos de fé. Primeiro, pela fé de Abrãao acreditou na Promessa de Deus que teria um filho, não tomando em consideração o seu proprio corpo, já sem vigor por ser quase centenário, nem o seio de Sara, já sem vida (Rm 4,19 ; cf. Hb11,11); depois pela fé que Abrãao quando foi posto a prova, ofereceu Isaac. E ofereceu o seu unico filho, apesar de ter recebido as promessas (Hb 11,17).


Também na vida de Maria encontramos dois grandes atos de fé. Maria acreditou quando Deus anunciava a ela, virgem, o nascimento de um filho que seria o herdeiro de todas as promessas. Acreditou, em segundo lugar, quando deus lhe pediu que assistisse a imolação do Filho que lhe tinha dado. Aqui se apagam todas as luzes e a pessoa humana entra, de verdade, nas trevas da fé. Parece que Deus se contradiz e esquece de suas promessas. Tinha sido dito :Será Grande e será chamado Filho do Altissimo, e ao invés, é como que esmagado pelos insultos e pelas pancadas, tinha sido dito: Reinará eternamente sobre o Trono de Jacó, e é cravado numa cruz! Até o ultimo momento Maria deve ter esperado - porque ela também caminhava na fé e na esperança e não na visão - que Deus intervisse, que as coisas mudassem de rumo. Esperou isso depois que Jesus foi preso, quando estava diante de Pilatos, antes que fosse emitida a sentença , e no Calvário antes que fosse batido o primeiro cravo até que inclinando a cabeça, entregou o espirito! Mas nada!


A Maria é pedido mais do que Abrãao. Com Abrãao Deus parou no último momento e poupou a vida do filho; com Maria não, mas ultrapassou a linha sem retorno da morte. Nisso percebe-se a diferença entre o Antigo e o Novo Testamento : "Abrãao empunha a faca, mas obtém novamente Isaac ; e a coisa não foi a sério. O cume da seriedade esteve na prova, mais depois volta a alegria desta vida. Bem diferente no Novo Testamento. Não era uma espada pendente de uma crina de cavalo sobre a cabeça de Maria Virgem, para ver se ela naquele momento manteria a obediencia da fé ; não, a espada chegou de fato a transpassar seu coração ,mas como isso ela teve um penhor sobre a eternidade : isso Abrãao não teve" (S.KIERKGAARD, Diário X4 A 572 (Trad. Ital. citada, nr.2689).


Agora vamos tirar a conclusão de tudo isso. Se Abrãao pelo que fez mereceu na Biblia o nome de "pai" (cf. Lc 16,24), de "Pai de todos nós", de todos os crentes ( cf. Rom. 4,16), que haverá de estranho de Maria for chamada de "Mãe de todos nós", mão de todos os crentes? Abrãao nao recebeu este título durante sua vida, mas na reflexão porterior do seu povo que é a Igreja. Durante a vida, também dela foi ressaltado apenas que acreditou no cumprimento das palavras do Senhor. O Titulo de Abrãao, "pai dos crentes " esta contida nas Escrituras; goza pois, pois de autoridade universal e indiscutida; mas nao deveria gozar pelo menos de respeito e de piedosa veneraçao o mesmo título quando foi dado a Maria pela Igreja, sendo que está tão fundamentado nas mesmas Escrituras?


Mas da comparação de Abrãao-Maria podemos receber uma luz ainda maior, que diz respeito não só aos simples título, mas também ao seu conteudo ou significado. Mãe dos crentes é um simples título de honra ou algo mais?


Calvino interpreta o texto de Gênesis - onde Deus diz a Abrãao : Todas as Familias da terra serão em ti abençoadas (Gen 12,3) - sentido que "Abrãao será nao só o exemplo e Patrono, mas também causa de bençao" (Calvino, Le Livre de la Gênese, I, Genebra 1961, p.195).


Um Conhecido exegeta protestante moderno escreve no mesmo sentido : "Perguntou-se se aquelas palavras (Gn12,3) querem afirmar apenas que Abrãao se tornará uma especie de fórmula para abençoar, e que a bênção por ele recebida se tornará proverbial....Mas, do ponto de vista hermenêutico, é errôneo limitar a um 'so significado, e ao mais tênue, uma proposição tão programática e estilisticamente elevada... Deve-se,pois retornar à interpretação tradicional que entende a palavra de Javé 'como uma ordem dada à historia'(B. Jacob). A Abrãao é reservada, no plano salvífico de Javé, a função de mediador da benção para todas as gerações da terra"( G. Von Rad, Das erste Buch Moses , Genesis, Gotinga, 1972 (Trad.Ital.Genesi, Paideia, Brescia 1978, p.204).


Tudo isso ajuda-nos muito a entender o que a tradição, a partir de Stanto Irineu, diz de Maria : "Ela não é só um exemplo de benção e de salvação, mas, de alguma maneira, dependente só da graça e da vontade de Deus,é também causa - secundária e instrumental - de salvação; a sua maternidade em relação à Igreja não é só de honra ou uma simples mandeira de dizer. "Como eva, pois desobedecendo tornou-se causa de morte para si e todo o genero humano, assim Maria...obedecendo tornou-se causa de salvação para si e todo o genero humano" (Santo Irineu, Contra as Heresias, III,22,4(SCh 211,p.442s).


Irmãos protestantes, as palavras "Todas as gerações me hão de chamar bem aventurada"(Lc 1,48) não as colocamos nós catolicos, na Escritura; colocou-as o Espirito Santo. Por acaso não devem também elas ser consideradas como "uma ordem dada por Deus à Historia", como as palavras dirigidas a Abrãao: Todas as familias da terra em ti serão abençoadas ? Se se reconhece uma função de "mediador" a Abrãao, como não reconhecer com maior razão a mesmo função também a Maria?


Não se pode afirmar que uma mediação real, como aquela de Abrãao, era ainda possível na economia do Antigo Testamento, mas na mão do Novo , quando temos afinal o Mediador Único entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus (cf. Tim 2,5). De fato a mediação única de Cristo se exerce também na Nova Aliança, através das mediações criadas e humanas, por ele mesmo instituidas, como as mediações dos sinais sacramentais e da pessoas dos apóstolos.


Estas observações não são feitas no espírito de quem diz aos outros : "Ex ore Tuo te iudico, eu te julgo pelas tuas mesmas palavras"; mas são feitas para mostrar a contribuição insubstituível que os irmãos protestantes podem trazer, com seu senso da Escritura, à edificação da fé comum, inclusive no tocante a Maria. Expressam não um juízo de coerencia ou de incoerencia, mas sim um convite e um desejo de comunhão. De fato, parece sempre mais claro que será exatamente no campo da Bíblia que católicos e protestantes poderão encontrar plena comunhão também a respeito da Mãe de Deus.


Se Maria está do lado da Igreja e pelo Concilio Vaticano II foi colocada coerentemente na constituição sobre a Igreja, Maria é também um capitulo, e capítulo importante, da escritura e da Palavra de deus e deve ser explicada levando-se em conta também a constuição sobre a revelação, a "Dei Verbum". "Deus-dizia Sao Gregorio Magno - às vezes nos instrui com as palavras, às vezes com obras" (S. Gregorio Magno, Homilias sobre o Evangelho XVII,1(PL.76,1139.).


E um texto da Dei Verbum diz no mesmo sentido, que a revelação se realiza de duas maneiras: através de acontecimentos e através de palavras (gestis vesbiques) (Dei Verbum 2.). Isto esclarece um fato muito conhecido da Biblia, que ela cont;em nao só palavras, mas também gestos e ações simbolicas, ou também vidas que são em si mesmas proféticas. Maria é uma dessas vidas proféticas e, enquanto tal, é veiculo de revelação, não só e não tanto por aquilo que diz, quanto por aquilo que faz e é.Maria é também ela, à sua maneira, uma "palavra visível", uam palavra "em ato", como Santo Agostinho define o sinal sacramental (Sto. Agostinho, Comentarios do Evangelho de João 80,3 (CC36, pg 529).


Uma segunda analogia,a partir de baixo, depois daquela de Abrãao, diz respeito aos apostolos. Na carta aos Efésios, lê-se que os crentes "estão edificados sobre o alicerce dos Apostolos e Profetas, tendo cristo por Pedra angular (Ef.2,20).Como é que aqui os apóstolos e os profetas são chamados de alicerces, se esta escrito que "ninguem pode por outro fundamento diferente do que foi posto, isto é Jesus Cristo (1 Cor 3,11)?


A resposta é a seguinte: há diferentes maneiras de estarmos "fundados" sobre alguém; e se podemos estar "edificados" sobre os Apostolos porque eles foram os primeiros a nos transmitir a Palavra da vida, muito mais se pode dizer que estamos "edificados"sobre Maria e somos"gerados" por Maria, pois foi ela que nos transmitiu o autor da mesma Palavra e o transmitiu não a esta ou aquela Igreja, como cada um dos apostolos, mas ao mundo inteiro.


Como Deus não desdenhou chamar criaturas - o homem e a mulher - para colaborar com ele no dar a vida natural, assim, se ele quiser, pode muito bem chamar uma criatura- Maria e, de mandeira diferente, qualquer pessoa- para colaborar com ele no dar a vida sobrenatural e ser "instrumento de sua graça". Mesmo assim a criatura continua sendo um nada diante de Deus; tudo é pura e unicamente graça. Não aconteça que, para ressalvar a transcêndecia de Deus, vamos fazer dele uma idéia mesquinha, como se fosse um Deus "ciumento"à maneira humana, como um deus grego e não no sentido bíblico. Na Bíblia o "ciume" de Deus diz respeito aos ídolos, não aos seus instrumentos e intermediarios.


É um fato animador descobrir que os proprios iniciadores da Reforma reconheceram a maria o título e a prerrogativa de Mãe, também no sentido de Mãe nossa e Mãe da Salvação: "Esta - escreve Lutero num sermão para a missa de Natal - é a consolação e a transbordante bondade de Deus: que o homem enquanto crê, possa gloriar-se de um bem tão precioso, que Maria seja a sua verdadeira mãe, Cristo seu irmão, Deus seu Pai....Se acreditares assim, então estás de verdade no seio da virgem Maria e és seu filho querido"(Lutero, Kirchenpostille (ed. Weimar,10,1,p.73)(Trad. Ital.in Scritti religiosi, citado p.546).


Zwínglio, nem sermão de 1524, diz que Maria é a "pura virgem Maria, mãe da nossa salvação"e afirma nunca ter "pensado, nem muito menos ensinado ou afirmado em publico algo de ímpio, desonroso, indigno ou mau"a seu respeito. (H. Zwínglio, Predigt von der reinem Gottgebärerin Maria, (in Zwiglio, Hauptschrifiten, der prediger I, Zurique 1940, p.159).


Como então chegamos a atual situação em que os irmãos protestantes tem tanta dificuldade a respeito de Maria, a ponto de alguns grupos marginais acreditarem até ser seu dever diminuir maria, por isso atacando continuamente os catolicos e, pelo menos deixando de lado tudo que dela diz a Escritura? Aconteceu com Maria de análogo àquilo que aconteceu com a doutrina eucaristica. O que devia ser para todos os cristãos sinal e fator mais forte de unidade e, no caso da Eucaristia, o sacramento mesmo da unidade, tornou-se ocasião mais patente de discordia e de desuniao.


Uma luterana muito fiel a sua fé, depois de lembrar varios textos de Lutero cheios de admiração para com Nossa Senhora , escreve: "Lendo estas palavras de Lutero, que até o fim de sua vida honrou a Maria, guardou suas festas e todos os dias cantou o Magnificat, percebe-se o quanto em geral nos afastamos da reta atitude que Lutero, tendo por base a scritura, nos ensinou a ter para com ela...Vemos o quanto nós, evangélicos, nos deixamos subnergir pelo racionalismo. O racionalismo não entendeu absolutamente nada do mistério da santidade de Deus...O homem racionalista quis compreeder tudo, e eliminou o que não conseguia entender...O racionalismo, que admite somente o que se pode entender com a razão, difundindo-se varreu das Igrejas evangélicas as festas de Maria e tudo o que lhe diz respeito, e deixou sem sentido qualquer referência bíblica a Maria: e ainda hoje sofremos dessa herança. Se Lutero com a seguinte frase: "Depois de Critsto ela é em toda cristandade a jóia preciosa, nunca suficientemente louvada", inculca-nos esse louvor, eu devo confessar que estou entre os que, por longos anos, não o têm feito, deixando assim também de cumprir o que diz a Escritura: "Desde agora a s gerações me hão de chamar bem-aventurada (Lc 1,48) . Eu não me tinha colocado entre estas gerações".


Todas essas premissas permitem-nos cultivar uma esperança no coração: que um dia, não distante, católicos e protestantes possamos ser já não divididos, mas unidos por Maria numa comum veneração para com ela, talves diferente nas formas e na expressão, mas concorde em reconhecer nela a Mãe de Deus e, num sentido difernte, também a Mãe dos crentes. Estamos chegando ao ano Dois Mil. Estaria certo que, no aniversário de Jesus, nos esquecêssemos completamente daquela que deu ao mundo? Seria cristão e, antes de tudo humano? Mas sobretudo, o Cristo que anunciamos seria de verdade a palavra feito carne, o Deus que entrou na história, que se tornou em tudo semelhante a nós: nascer, no viver e no morrer?

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