O Tráfico Negro no Brasil e a Igreja

 


As tribos da África Ocidental praticavam a venda de homens negros como escravos. Procuravam assim os vencedores na guerra retirar algum lucro da vitória: trocavam por dinheiro ou mercadorias os adversários prisioneiros; para estes, era preferível ser vendidos como escravos a permanecer sob o domínio de africanos vencedores; estes tratavam ignominiosamente os vencidos.


No Brasil, a exploração das minas e demais riquezas naturais sugeriu aos portugueses a procura de escravos na África - coisa, aliás, que já outros povos (como, por exemplo, os árabes da península ibérica) praticavam, para atender aos serviços da agricultura e da indústria. Principalmente após D. Afonso, que reinou até 1453, os reis de Portugal perderam o controle sobre a importação de escravos, de modo que os colonos portugueses levaram multidões de africanos para a Europa. Consequentemente também os trouxeram para o Brasil, fazendo negócios altamente lucrativos tanto para quem vendia como para quem comprava os negros.


2. A Igreja não se calou diante de tais costumes. Entre os documentos que o atestam, além dos que já foram citados em PR, existe uma carta do Papa João VIII, datada de setembro de 873 e dirigida aos Príncipes da Sardenha, que diz:


-Há uma coisa a respeito da qual desejamos admoestar-vos em tom paterno; se não vos emendardes, cometereis grande pecado, e, em vez do lucro que esperais, vereis multiplicadas as vossas desgraças. Com efeito,- por instituição dos gregos, muitos homens feitos cativos pelos pagãos são vendidos nas vossas terras e comprados por vossos cidadãos que os mantêm em servidão. Ora consta ser piedoso e santo, como convém a cristãos, que, uma vez comprados, esses escravos sejam postos em liberdade por amor a Cristo,- a quem assim proceda, a recompensa será dada não pelos homens, mas pelo mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo. Por isto exortamo-vos e com paterno amor vos mandamos que compreis dos pagãos alguns cativos e os deixeis partir para o bem de vossas almas (Denzinger-Sch'ánmetzer, Enquirídio dos Símbolos e Def inições nº 668).


0 Papa Pio II, em 7 de outubro de 1462, condenou o comércio de escravos como magnum scelus (grande crime).


Em 1571 Tomás de Mercado, teólogo de Sevilha, declarava desumana e i 1 (cita a traficância de escravos, tanto mais que instaurava uma luta fratricida entre os próprios africanos. Em sua Summa de Tratos y Contratos, este autor afirmava não haver justificativa para negócio tão infame.


. Houve mesmo sacerdotes que se sacrificaram, tanto no Brasil como fora, em favor dos escravos. Sejam citados, entre outros, os Padres Afonso Sandoval S.J. e Pedro Claver. 0 primeiro foi o pioneiro do trabalho em prol dos negros em Cartagena das Índias, porto de tráfico no Mar das Antilhas; com grande coragem denunciou os maus tratos de muitos traficantes; através de seus escritos, tentou suscitar uma mentalidade antiescravagista; para melhor trabalhar, procurou conhecer a cultura africana a fim de entender mais perspicazmente aqueles pobres seres humanos que ele defendia.


Quanto a Pedro Claver, em 1610 chegou de Sevilha a Cartagena das Indias, onde o Pe. Sandoval lhe ensinou o amor aos negros. Na Colômbia foi ordenado sacerdote e passou a trabalhar com o Pe. Sandoval junto aos negros. No ano seguinte, foi para o Peru; retornou depois a Cartagena e assumiu também as missões entre os escravos das fazendas do interior. Durante toda a sua vida, cuidou de cerca de trezentos mil escravos. Em 1639, quando o Papa Urbano Vil 1 publicou um documento em favor dos escravos, viveu dias felizes. Todavia esse servidor dos escravos morreu paralítico, de doença contraída nas missões da região pantanosa de Tolu e Finu, aos 8 de setembro de 1654.


4. As Constituiçoens primeyras do Arcebispado da Bahia (1707) mais de uma vez se voltaram para a sorte dos escravos, procurando fazer que os senhores lhes propiciassem ou facilitassem os bens espirituais. Assim, por exemplo, no tocante ao sacramento do matrimônio, rezavam as Constituições:


-Conforme o direito divino e humano, os escravos e escravas podem casar com outras pessoas cativas ou livres e seus senhores lhes nio podem impedir o matrimônio nem o uso dele em tempo e lugar conveniente, nem por esse respeito os podem tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro, por ser cativo ou por ter outro justo impedimento, o não possa seguir, e, fazendo o contrário, pecam mortalmente e tomam sobre suas consciências culpas de seus escravos, que por este temor se deixam muitas vezes estar e permanecer em estado de condenação- (D. Sebastião Monteiro de Vide, Constituiçoens, titulo 71).


Os sacramentos da Eucaristia e da Penitência eram de fácil acesso aos escravos, principalmente na Quaresma, em vista do cumprimento do preceito pascal.


No concernente ao sacramento da Ordem, o impedimento para os escravos não era racial, mas provinha da própria condição de escravos. Regozijavam-se, porém, quando entravam em contatos com sacerdotes negros, que vinham da Costa de Angola ou da ilha de São Tomé, onde havia um cabido de cônegos todos negros.


5. Deve-se notar também o papel benéfico desempenhado pelas Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, cujas igrejas eram pontos de encontro de escravos e livres; aí cultuavam a Deus e faziam suas devoções como também exprimiam suas aspirações e deixavam vir à tona seus íntimos sentimentos.


Dentre os Estatutos dessas Confrarias merecem destaque alguns tópicos como os seguintes:


-Toda pessoa, preta ou branca, de um ou outro sexo, forro ou cativo, de qualquer nação que seja, que quiser ser Irmão desta Irmandade, irá à mesa ou à casa do Escrivão da Irmandade pedír-lhe faça assento de Irmandade--- (Cap. 1 do Compromisso da Irmandade da Paróquia do Pilar de Ouro Preto).


0 capítulo 11 do mesmo Compromisso reza:


-Haverá nesta Irmandade um Rei e uma Rainha, ambos pretos, de qualquer nação que sejam, os quais serão eleitos todos os anos em mesa a mais votos e serão obrigados assistir com o seu estado as festividades de Nossa Senhora e mais Santos, acompanhando no último dia atrás do pálio".


Vê-se que nestes textos desaparecem as diferenças raciais; além do que, escravos e livres São equiparados entre si.


6. Descendo através dos tempos, temos uma Carta do Papa Pio Vi i enviada ao Imperador Napoleão Bonaparte da França, em protesto contra os maus tratos infligidos a homens vendidos como animais; ao que acrescentava: "Proibimos a todo eclesiástico ou leigo ousar apoiar como legítimo, sob qualquer pretexto, este comércio de negros ou pregar ou ensinar em público ou em particular, de qualquer forma, algo contrário a esta Carta Apostólica" (citado por L. Conti, A Igreja Católica e o Tráfico Negreiro, em 0 Tráfico dos Escravos Negros nos séculos XV-XIX. Lisboa 1979, p. 337).


0 mesmo Sumo Pontífice se dirigiu a D. João Vi de Portugal nos seguintes termos:


Dirigimos este ofício paterno à Vossa Majestade, cuja boa vontade nos é plenamente conhecida, e de coração a exortamos e solicitamos no Senhor, para que, conforme o conselho de sua prudência, não poupe esforços para que... o vergonhoso comércio de negros seja extirpado para o bem da religião e do gênero humano


Pio VII também muito se empenhou para que no Congresso Internacional de Viena (1814-15) a instituição da escravatura fosse condenada e abolida.


7. Quanto à travessia do Oceano Atlântico por parte dos escravos trazidos em navios negreiros, verifica-se hoje que descrições de Castro Alves e outros autores são hiperbólicas e poéticas, fugindo à realidade histórica. Os brancos tinham interesse em prover à conservação da vida de seus escravos em condições tão boas quanto possível, visto que os negros deviam ser oferecidos aos colonos do Brasil, que os examinariam de perto antes de os comprar. Julga-se até que os traficantes contratavam médicos que acompanhavam a população dos navios negreiros.


2. Alforrias e "Mão Posta”


1. A alforria é ato de libertar um escravo. Tal prática foi notável no Brasil colonial não só em favor dos inválidos (como erroneamente já se disse).


Havia ocasiões propícias à concessão de alforria por parte dos senhores: festas familiares, confecção de testamento, visitas episcopais... A alforria podia ser concedida também como recompensa à lealdade no serviço.


-Além disto, registram-se os vários casos de escravos que compravam a sua liberdade ou a conseguiam através de padrinhos e madrinhas benfeitores.


Os libertos ajudavam os ex-companheiros de serviço a conseguirem a sua libertação. As próprias Irmandades emprestavam dinheiro para que o escravo se tornasse forro.


Podia outrossim ocorrer a chamada "coartação": o escravo e o patrão estipulavam o preço do resgate, que o servo ia pagando aos poucos; entrementes, o cativo já gozava de vários direitos do homem livre. Mais: os escravos que denunciassem um contrabando, eram libertados pelo Estado. Aqueles que encontrassem diamantes acima de vinte quilates, eram alforriados.


Na Bahia os negros organizaram "fundos de empréstimos" para facilitar a compra da alforria; essas organizações foram-se convertendo em sociedades emancipacionistas. A eficácia de tais instituições pode-se avaliar pelo seguinte depoimento de Herbert S. Klein, doutor pela Universidade de Chicago e autor do livro African Slavery in Latin America and the Caribibean, onde assevera:


-Na época do primeiro censo nacional brasileiro, em 1872, havia 4,2 milhões de pessoas de cor livres e 1,5 milhão de escravos. As pessoas de cor livres não apenas ultrapassavam em número os 3,8 milhões de brancos, mas também representavam 43%dà população brasileira, de 10 milhões de habitantes. Tudo isto mais de uma década antes da abolição da escravatura(pp. 241-X.


A Igreja incentivou as formas de libertação dos cativos, como bem di. zia D. Pedro Maria de Lacerda, bispo do Rio de Janeiro:


-Provernos que os aplausos tantas vezes dados a quem dava alforria, eram aplausos sinceros, nascidos de um coração ansi . oso de ver a liberdade refulgir mais e mais entre os homens à sombra da Cruz- (Carta Pastoral anunciando a Lei nº 2040 de 271091187 1).


2. A Manu posita (Mão posta) era a prática de angariar recursos para redimir cativos por parte de pessoas caridosas; estas eram chamadas "ma. nuposteiros-. Constituiam associações com seu Regimento; os membros dessas entidades tinham cada qual a sua função: ora a de esmolér, que pedia donativos.por ocasião das festas ou nas fazendas, nas igrejas, nas ermidas.... ora a de escriturar as receitas (escrivães), ora a de guardá-las e distribui-ias na qualidade de tesoureiro. . .


Aliás, existiam na Igreja a Ordem da SS. Trindade, desde 1198, e a dos Mercedários ou Nolascos desde 1222, destinadas a redimir os cativos detidos pelos Sarracenos. A existência dessas Ordens era, por si mesma, uma réplica à prática da escravatura: como explicar a arrecadação de elevadas somas para pôr em liberdade cativos, se, de outro lado, os próprios portugueses aprisionavam africanos e os reduziam à escravidão? Os Trinitários e os Mercedários suscitaram, por seu trabalho, uma mentalidade anticativeiro, que se exprimiu no Brasil através dos manuposteiros. Assim descreve o historiador Vítor Ribeiro a solenidade do resgate realizada pelas Ordens Religiosas:


Era revestida de pompas estranhas a expedição de resgates. Os redentores, depois de terem recolhido as esmolas em cofre especial, despediam-se de El-Rey e do seu convento, deixavam crescer longas barbas, embarcavam com o cofre, e iam à Mauritânia expor-se a mil perigos, vexames e emboscadas com a cautela que a experiência lhes ia aconselhando; negociavam os resgates por intermédio do governo de Bey ou das autoridades e, por fim, conseguindo libertar os cativos, reconduziam-nos ao reino, onde faziam e publicavam longas listas de resgates, com os nomes, idades, naturalidades, condições de cativeiro e libertação e custo dos resgates... Depois, em dia aprazado, fazia-se em Lisboa solene procissão em que entravam várias Ordens e Confrarias, especialmente a da Misericórdia e a de Nossa Senhora do Resgate, a qual dava volta à igreja velha da Misericórdia e regressava ao convento (cf. História de Portugal, vol. IV, Damião Peres (Dir.) Barcellos, Portucalense Editora 1932, p. 565).


0 Bispo do Rio de Janeiro, D. Pedro Maria de Lacerda, em 1871 escrevia na sua Carta Pastoral referente à Lei do Ventre Livre:


A Igreja Católica alegra-se imensamente à vista do que acaba de realizar-se entre nós. E como não? Por ventura não é a Igreja Católica que deu ao mundo São João da Mata e que aprovou a Ordem dos seus Religiosos da Santíssima Trindade, cujo fim principal foi resgatar os que gemiam cativos em poder dos Sarracenos? Não foi a Igreja Católica que aprovou a Ordem dos Religiosos das Mercês, instituída por São Pedro Nolasco com o fim de resgatar os cativos que viviam sob o poder dos infiéis, obrigando-os a um heroismo assombroso de caridade, ligando-os com um solene voto a se deixarem eles mesmos em ferros como penhora e reféns, se tanto fosse preciso para o resgate dos Cristãos? E a Igreja Católica não celebra há tantos séculos a 24 de setembro de cada ano a instituição dessa heróica Ordem Relígiosa, criada por inspiração de Maria Santíssima, a quem a Igreja reconhece tanti operis Institutricem? E graças a Deus, no quinto dia dentro do oitavário desta festa é que a nova lei brasileira foi sancionada pela Augusta Princesa Imperial Reqente---.


Os frutos da mentalidade humanitária despertada pelo Cristianismo são atestados por vários relatos de viajantes e cronistas que passaram pelo Brasil. Entre outros, merece atenção Henry Koster. Filho de ingleses, nascido em Portugal, chegou ao Brasil em 1809. No seu livro Travels in Brazil relata viagens ao Nordeste e refere-se à condição dos escravos:


Atesta Koster: 'Os escravos no Brasil gozam de maiores vantagens que seus irmãos nas colônias britânicas. Os numerosos dias santos para os quais a Religião Católica exige observância, dão ao escravo muitos dias de repouso ou tempo para trabalhar em seu proveito próprio. Em trinta e cinco desses dias e mais nos domingos é-lhes permitido empregar seu tempo como lhes agradar' ' Atribui à opinião pública força suficiente para obstar que os senhores diminuíssem o número destes dias, o que revela uma mentalidade altamente humanitária da sociedade de então.


Desce Koster a detalhes sobre as alforrias, porta aberta para a libertação dos cativos. . .


Destaca o papel não relevante das associações religiosas: 'Os escravos possuem sua Irmandade como as pessoas livres, e a ambição que empolga geralmente o escravo é ser admitido numa dessas confrarias, e ser um dos oficiais ou diretores do conselho da sociedade' ...


Focaliza a tema devoção dos cativos a Nossa Senhora do Rosário, algumas vezes, pintada com a face e as mãos negras'. Ressalta que 'os reis do Congo brasileiro invocam a Nossa Senhora do Rosário e são vestidos como vestem os brancos. Conservam, é verdade, a dança do seu país, mas nessas festas são admitidos pretos africanos de outras nações' É que tribos de diversas regiões africanas, muitas até rivais na África, aqui . se irmanavam sob o signo da Mie comum, a Virgem Maria, que tanto amavam e veneravam.


Que os escravos eram respeitados se deduz deste assento: 'Os escravos no Brasil são regularmente casados de acordo com as fórmulas da Igreja Católíca. Os proclamas são publicados como se fossem para pessoas livres. Tenho visto vários casais felizes (tio felizes quanto podem ser os escravos), com grande número de filhos crescendo ao redor deles' Nota ainda Koster que era permitido que os escravos se casassem com pessoas livres. Se a mulher era escrava, o filho permanecia cativo; mas se o homem era escravo e a mulher forra, o filho era também livre.


'Aos escravos pertencem os sábados de cada semana para providenciar sua própria subsistência, além dos domingos e dias santificados. Os que são diligentes raramente deixam de comprar sua liberdade. Os monges não guardam interferência alguma quanto às roçarias dadas aos escravos, e quando um desses morre ou obtém sua alforria, permitem que leguem seu pedaço de terra a qualquer companheiro de sua escolha. Os escravos alquebrados são carinhosamente providos de alimento e roupa'. (Grifo nosso).


Testemunha ainda que muitos agricultores tratavam sua escravaria com carinho. Aliás, alega textualmente: 'Embora os negros sejam sustentados por seus amos, existindo terras com abundância, permitem aos escravos plantar o que quiserem e vender as colheitas a quem lhes aprouver. Muitos criam galinhas e porcos e, ocasionalmente, um cavalo para alugar e possuir o dinheiro assim obtido(transcrito do livro de J. Balmes: A Igreja Católica em face da Escravidão, pp. 108-110).


São estes alguns aspectos da história da escravidão no Brasil que devem ser postos em relevo para que se tenha uma visão tão objetiva e fiei quanto possível do período analisado.


A Igreja e a Escravidão no Brasil:


0 artigo apresenta testemunhos de Papas, bispos e Sínodos da Igreja que se manifestaram contrários à escravatura ou em favor de tratamento mais humanitário dos escravos através dos séculos, e especialmente no decorrer da história do Brasil. De resto, o fato da escravatura há de ser considerado no contexto dos séculos passados e à luz das categorias de -pensamento e cultura de tais épocas. Certas conclusões referentes à maneira concreta de tratar a pessoa humana, por mais claras que hoje nos sejam, não puderam ser evidentes aos homens de épocas passadas, nem aos santos. Conseqüentemente, será preciso julgar a prática da escravatura não segundo os referenciais do século XX (que, embora se diga iluminado, ainda conhece o escravagismo), mas à luz dos parâmetros da cultura dos séculos passados. Assim perceber-se-á que a Igreja exerceu solicitude e procurou ser fiel ao Evangelho diante da própria instituição da escravatura.


Passemos, ao exame do papel dos prelados e clérigos diante da escravização do homem africano. Uma análise da documentação respectiva põe em relevo enérgicas advertências contra a instituição em foco.


1 . Testemunhos e exortações:


Serão citados dez depoimentos dispostos século por século.


0 Pe. Antônio Vieira (11608-1697)


0 Pe. Antônio Vieira S. J. é tido, por vezes, como aliado dos senhores da terra contra os escravos, quando, na verdade, assumiu posição de censura aberta aos inclementes patrões. Essa censura dirige-se, em última análise, ao próprio regime escravagista. Em mais de um sermão o grande pregador expõe o seu modo de pensar:


"Saibam os pretos, e não duvidem, que a mesma Mãe de Deus é Mãe sua porque num mesmo Espírito fomos batizados todos nós para sermos um mesmo corpo, ou sejamos judeus ou gentios, ou servos ou livres" (Sermão XIV, em Sermões, vol. IX Ed. das Américas 1958, p. 243).


Citando no final o trecho lCor 12,12, o Pe. Vieira observa que o Apóstolo assim falou <<por que não cuidassem, os que são fiéis e senhores, que os pretos, por terem sido gentios e serem cativos, são de condição inferior>> (ib. p. 246).


No sermão XXVII, o Pe. Vieira censura o tráfico de escravos:


"Nas outras terras, do que aram os homens e do que fiam e tecem mulheres se fazem os comércios: naquela (na África) o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende e compra. Oh! trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh! mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias e os ricos são das próprias'' ib, p. 64).


Considera o pregador a disparidade existente na sociedade escravagista:


" Os senhores poucos, os escravos muitos; os senhores rompendo alas, os escravos perecendo à fome; os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em pé, apontando para o açoite, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados com as mãos atadas atrás, como imagens vilíssimas da servidão e espetáculos da extrema miséria" ib., p. 64).


Interroga então Vieira:


"Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas corri o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu Não os aquenta o mesmo. sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel?" ib., p. 64).


E Vieira conclui que Deus não pode aceitar a escravidão. 0 sermão se encerra com séria admoestação:


0h! Como temo que o oceano seja para vós Mar Vermelho, as vossas casas como as de Faraó, e todo o Brasil como o Egito! Ao último castigo dos egípcios precederam as pragas, e as pragas já as vemos, são repetidas umas sobre as outras e algumas são novas e desusadas, quais nunca se viram na clemência deste clima. Se elas bastarem para abrandar os corações, razão teremos para esperar misericórdia na emenda; mas se os corações, como o de Faraó, se endurecerem mais, ainda mal, porque sobre elas não pode faltar o último castigo. Queira Deus que eu me engane neste triste pensamento, que sempre aqui, e na nossa corte, os mais alegres são os mais cridos, Sabei, porém, que é certo - e fique-vos isto na memória -que se Jaconias e seus irmãos creram em Jeremias, não seriam cativos; mas, porque deram mais crédito aos profetas falsos que os adulavam, assim ele, como seus irmãos, todos acabaram no cativeiro de Babilônia".


Foi em tais termos severos que o Pe. Antônio Vieira profligou a desumanidade da servidão no Brasil.


1.2. Senhores e escravos, conforme o Pe. J. Benci S.J. (1700)


Em 1700 foi publicado pelo missionário jesuíta Pe. Jorge Benci S.J. um livro importante e corajoso intitulado <<Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos>>'. Tal obra tornou-se base para a elaboração das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707 (ver subtítulo seguinte: 1. 3). 0 censor do livro, Frei Emanuel da Silva, emitiu a respeito o seguinte parecer:


"... contra dominorum nostrae Americae erga servos impíam tyrannidern, perutilern et necessarium clainorem censeo. - Julgo tratar-se de muito útil e necessário clamor contra a ímpia tirania dos senhores da nossa América para com os escravos".


Eis os principais traços da obra:


A escravidão é um mal, <<sendo o gênero humano livre por natureza e senhor não somente de si, senão também de todas as mais criaturas>>. <<0 senhorio, filho do pecado>>, ocasiona <<culpas e ofensas a Deus pelas sem-razões, injustiças rigores e tiranias que praticam os senhores com os servos>>.


Quanto aos deveres de uns para com os outros, argumenta o Pe. Benci:


"A diversidade que há entre o senhor e o servo, não consiste em que o servo esteja obrigado ao senhor, e não o senhor ao servo, mas na diversidade das obrigações que reciprocamente devem um ao outro".


"Usar dos escravos como de bruto é coisa tão indigna que Clemente Alexandrino julgou que não podia caber em homem de razão e de juízo. ,E, se isto não é obra de homem racional, muito menos o pode ser do homem cristão, a quem o mesmo Cristo encomendou tanto o amor e caridade com o próximo".


A seguir, o autor recorda o dever de não exigir trabalho dos escravos nos domingos e dias santos. Recomenda atenção ao vestuário dos servos, visto que <<o ornato dos servos é crédito dos senhores... Se alguém não tem posses para os vestir, não tenha posses para os ter>>.


No tocante à saúde, observa: <<No Brasil se acham senhores de entranhas tão pouco compassivas e em tanta maneira duras que, logo que vêem os servos enfermos (principalmente se a doença pede cura dilatada e custosa), os desamparam>>. Tais senhores <,não merecem ser contados no numero dos cristãos... Todos igualmente somos ovelhas de Jesus Cristo e remidos todos com seu preciosíssimo sangue>>.


0 tipo de trabalho exigido dos escravos há de ser moderado, de modo que <pecam por excesso os que os oprimem com trabalhos superiores a suas forças ou por excessivos ou por demasiadamente continuados>>.


No final da obra resume Benci o seu pensamento: ~<0 estado mais infeliz a que pode chegar uma criatura racional, é o cativeiro, porque com o cativeiro lhe vêm como em compêndio as desgraças, as misérias, os vilipêndios e as pensões mais repugnantes e inimigas da natureza>>. 0 ideal seria a libertação dos escravos, mas, visto que isto não pode ser obtido, Benci pede ao menos misericórdia:


"Antigamente os cristãos da primitiva Igreja, logo que recebiam o batismo, davam liberdade a seus servos, parecendo-lhes que com a liberdade da lei de Cristo não estava bem o cativeiro. Assim o fizeram os Hermes, os Cromácios, e outros muitos, de que estão cheias as Histórias Eclesiásticas. Não quero persuadir com isto aos senhores a que façam o mesmo aos seus escravos. Senhores, eu não pretendo que deis liberdade aos vossos servos; que, quando o fizésseis, faríeis o que fizeram os verdadeiros cristãos. 0 que só pretendo de vós, é que os trateis como a próximos e como a miseráveis; que lhes deis o sustento para o corpo e para a alma; que lhes deis somente aquele castigo que pede a razão; e que lhes deis o trabalho tal que possam com ele e os não oprima. Isto só vos peço, isto só espero, e isto só quero de vós: Panis et disciplina, et opus servo (pão, ensino e trabalho para o servo)".


Tais tópicos do livro do Pe. Jorge Benci S.J. são suficientemente significativos para mostrar que a escravatura foi objeto de especial solicitude da parte da Igreja desejosa de minorar o sofrimento dos cativos.


1 .3. As <<Constituiçoens Primeyras do Arcebispado da Bahia>>


Em 1707, na cidade do Salvador teve lugar o Primeiro Sínodo Diocesano do Brasil, que promulgou as <<Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia>>, que estiveram em vigor nas demais dioceses do país durante os séculos XVIII e XIX. Esse documento dedicou vinte e três tópicos à situação dos escravos.


Entre outras, merece atenção a exortação a que os senhores proporcionassem aos escravos comida, roupa e o descanso dos domingos e dos dias santos.


"Não é menos para estranhar o desumano e cruel abuso e corruptela muito prejudicial ao serviço de Deus e bem das almas, que muitos senhores de escravos têm introduzido: porque, aproveitando-se toda a semana dos miseráveis escravos, sem lhes darem coisa alguma para o seu sustento nem vestido com que se cubram, não lhes satisfazem esta dívida, fundada em direito natural, com lhes deixarem livres os domingos e dias santos, para que neles ganhem o sustento e vestido necessário. Donde nasce que os miseráveis servos não ouvem Missa nem guardam o preceito da Lei de Deus, que proíbe trabalhar em tais dias. Pelo que, para desterrar tão pernicioso abuso contra Deus e contra o homem', exortamos nossos súditos e lhes pedimos, pelas chagas de Cristo Nosso Senhor e Redentor, que daqui em diante acudam com o necessário aos seus escravos, para que possam observar os ditos preceitos e viver como cristãos".


Nesta passagem é significativa a menção de abuso contra o homem (não apenas contra Deus), menção que revela a consciência de que todo ser humano, mesmo nas condições da escravatura (que era um traço inerente aos costumes daquela época), merecia respeito.


0 Sínodo se interessou também pela catequese a ser ministrada aos escravos, todavia sem que se lhes impusesse o Batismo. 0 Título XIV das Constituições apresenta o elenco de perguntas que se faziam aos mais rudes no intuito de não os forçar a receber o sacramento:


"Queres lavar a tua alma com a água santa?"


"Botas fora da tua alma todos os teus pecados?"


"Não hás de fazer mais pecado?"


"Botas fora de tua alma o demônio?"


Logo a seguir, tem-se a advertência:


"E porque tem sucedido morrerem alguns desses boçais sem constar sua vontade de quererem ser batizados, no primeiro tempo em que se lhes puderem fazer as perguntas sobreditas ou por intérpretes ou na nossa língua, se tiverem alguma luz dela, importa muito para a salvação de suas almas, que se lhes façam ... "


Mais: "Os filhos dos infiéis não devem ser batizados sem licença dos pais, antes de chegarem ao uso da razão, ou idade em que peçam o Batismo".


"E, no que diz respeito aos escravos que vieram de Guiné, Angola, Costa da Mina ou outra qualquer parte em idade de mais de sete anos, ainda que não passem de doze, declaramos que não podem ser batizados sem darem para isto seu consentimento",


0 Sínodo também levou em conta o direito de matrimônio e de vida conjugal dos escravos:


"Conforme o direito divino e humano, os escravos e escravas podem casar com outras pessoas cativas ou livres, e seus senhores lhes não podem impedir o Matrimônio, nem o uso dele em tempo e lugar conveniente, nem por esse respeito os podem tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro, por ser cativo ou por ter outro justo impedimento, o não possa seguir e fazendo o contrário pecam mortalmente e tomam sobre suas consciências ar, culpas de seus escravos, que por esse temor se deixam muitas vezes estar e permanecer em estado de condenação".


Finalmente o documento se volta para o trato a ser dispensado aos escravos defuntos:


Estipula a pena de excomunhão maior para os senhores que mandavam <<enterrar seus escravos no campo e mato como se fossem brutos animais>>. E no número 833 exorta:


"Porque é alheio da razão e piedade cristã que os senhores que se serviram de seus escravos em vida se esqueçam deles em sua morte, lhes encomendamos muito que pelas almas de seus escravos defuntos mandem dizer Missas e pelo menos sejam obrigados a mandar dizer por cada escravo ou escrava que lhe morrer, sendo de quatorze anos para cima, a Missa de corpo presente".


É nestes termos que o Primeiro Sínodo Diocesano do Brasil quis mitigar a sorte dos escravos. Torna-se oportuno lembrar que a Igreja estava então sob o regime do padroado, que sujeitava as suas determinações à <<tutela>> e ao <beneplácito>> do monarca.


1 .4. A Bula <<Immensa Pastorum>> de Bento XIV (1741)


Poucos decênios após o Primeiro Sínodo Diocesano do Brasil, o Papa Bento XIV, fazendo eco a predecessores seus, houve por bem profligar a escravatura.


A Bula <<Immensa Pastorum>> assim redigida foi endereçada aos bispos do Brasil e de outras partes da América, a fim de que tentassem obter melhores condições de vida para os escravos.


0 documento lembra, de início, que <<não devemos ter maior caridade do que nos preocuparmos -em colocar nossa existência não só a favor dos cristãos, mas também da escravatura e inteiramente a favor de todos os homens>>. A seguir, expõe o problema a: <<Por isto recebemos certas notícias não sem gravíssima tristeza de nosso ânimo paterno, depois de tantos conselhos dados pelos mesmos Romanos Pontífices, nossos Predecessores, depois de Constituições publicadas prescrevendo que aos infiéis do melhor -modo possível dever-se-ia prestar trabalho, auxílio, amparo, não descarregar injúrias, não flagelos, não ligames, não escravidão, não morte violenta, sob gravíssimas penas e censuras eclesiásticas... >>


0 Pontífice ainda recorda, renova e confirma as declarações dos Papas Paulo III em 1537 e Urbano VIII em 1639. 0 primeiro ordenou ao arcebispo de Toledo que protegesse os índios da América e ameaçou de excomunhão, cuja absolvição ficaria reservada ao Papa, quem os subjugasse. Quanto a Urbano VIII, estipulou severas censuras canônicas para todos os que violentassem o livre arbítrio dos índios, convertidos ou não. Bento XIV chama desumanos -os atos de prepotência contra os escravos e estabelece haja excomunhão <<Iatae sententiae ipso facto incurrenda>> (isto é, excomunhão infligida desde que cometido o delito) e outras censuras canônicas para os que maltratavam, os índios. E por <<maus tratos aos índios>> explica o Pontífice que entende escravizar, vender, comprar, trocar, dar, separar de suas mulheres e filhos, esbulhar, levar para outros lugares, cercear de qualquer modo a livre ação, deter no cativeiro, como também, por qualquer pretexto, ajudar de qualquer forma os agentes destas iniqüidades. Exorta finalmente os Bispos a que <<com diligência, zelo e caridade cumprissem a sua tarefa>).


0 Marquês de Pombal, por alvará de 8/5/1758, mandou executar esta Bula em todo o Brasil apenas no tocante aos indígenas. Na verdade, o teor do documento refere-se a todos os homens, incluídos os de origem africana trasladados para o Brasil.


1.5 . A obra do Pe. André João Antonil S. J. (1711 )


Ante o fato consumado da escravatura no Brasil, o jesuíta Pe. André João Antonil escreveu a obra intitulada <<Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas>> (1711), obra que toma a defesa dos escravos vítimas de abusos dos senhores.


Assim, por exemplo, exorta os patrões a colocar à disposição dos escravos <<mantimentos e fardas, medicamentos, enfermaria e enfermeiro>>..,. <<Nada, pois, tenha o senhor do engenho de altivo, nada de arrogante e soberbo; antes, seja muito afável com todos e olhe para seus lavradores como para verdadeiros amigos>>.


Ao feitor diz o Pe. Antonil: <<Adoecendo qualquer escravo, deve livrá-lo do trabalho e pôr outro em seu lugar e dar parte ao senhor para que trate de o m andar curar e ao capelão para que o ouça de confissão e o disponha, crescendo a doença, com os sacramentos para morrer>>.


Voltando a dirigir-se aos patrões, o Pe. Antonil repreende os que não se preocupam com a vida moral dos seus servos, observando se vivem virtuosamente e cumprem seus deveres religiosos. Censura os senhores que impedem, os escravos de guardar os domingos e freqüentar a Missa por exigirem deles trabalho. Acrescenta: << ... E deve (o senhor) também moderar o serviço, de sorte que não seja superior às forças dos que trabalham, se quer que possam aturar>>. Repreendo outrossim os que batiam <<por qualquer coisa pouco provada ou levantada e com instrumentos de muito rigor, ainda quando os crimes são certos>>. Refere outrossim a praxe louvável de certos patrões:


"Costumam alguns senhores dar aos escravos um dia em cada semana para plantarem para si, mandando algumas vezes com eles o feitor para que se não descuidem e isto serve para que não padeçam fome nem cerquem cada dia a casa de seu senhor, Pedindo-lhe a ração de farinha. Porém, não lhes dar farinha, nem dia para plantarem e querer que sirvam de sol a sol no partido, de dia e de noite com pouco descanso no engenho, como se admitirá no tribunal de Deus sem castigo?"


Quem tem escravos, seja para eles como um pai, apregoa Antonil. Não lhes recuse a sua legítima recreação. Deixe-os cantar, bailar honestamente, fazer suas festas de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito e do titular da capela local. Sejam os patrões liberais para cobrir as despesas destas solenidades, incentivando desta forma seus servos. Em suma, Antonil prega a generosidade que faz dos servos amigos.


A posição do sacerdote jesuíta não foi singular nos séculos XVII/XVIII. Nota Katia de Queirós Mattoso em livro recente:


"0 clero regular dessa época procurava por todos os meios atenuar os aspectos insuportáveis da escravatura como instituição. Para ele, o escravo também possui uma alma que cumpre proteger" (Ser escravo no Brasil. Ed. Brasiliense S. A. São Paulo 1982, p. 118).


Passemos agora ao século XIX, no qual foi abolida a escravatura no Brasil.


1.6. A atitude de Gregórío XVI (1839)


Aos 3/12/1839, o Papa Gregório XVI, mediante uma epistola incisiva, quis corroborar em seu século as declarações de seus antecessores. Escreve, pois, taxativamente: <<Admoestamos os fiéis para que se abstenham do desumano tráfico dos negros ou de quaisquer outros homens que sejam>>.


Nesse documento o Pontífice percorre sumariamente a história da escravatura. Começa por lembrar que o advento do Cristianismo contribuiu se não para abolir, ao menos para mitigar as condições dos escravos:


"Logo que a luz da Boa Nova começou a espalhar-se entre os homens começaram também aqueles infelizes, que naqueles tempos, mormente pelas vicissitudes da guerra, caíram em grande número na mais dura escravidão, a sentir, pela maior parte, alívio na sua sorte, se pertenciam a senhores cristãos, porquanto, cheios como estavam do Espírito Santo, os Apóstolos ... admoestavam os senhores para que tratassem bem os seus escravos, concedendo-lhes o que fosse de direito e de eqüidade, e sobretudo para que se abstivessem de maltratá-los, devendo lembrar-se de que o verdadeiro senhor não só dos escravos, mas dos mesmos senhores, é aquele que está no céu, diante de quem não há distinção de pessoas".


Continua adiante o Pontífice:


"Não só os cristãos começaram a tratar os seus escravos como irmãos, mormente se tinham a mesma fé de seus senhores, mas começaram a mostrar-se mais inclinados a dar-lhes a liberdade se a mereciam, o que sobretudo costumava ter lugar pelas festas da Páscoa, como nos consta do testemunho de Gregório de Nissa".( Gregório de Nissa foi bispo em Nissa (Ásia Menor) no século IV.)


0 Papa Gregório XVI cita outrossim um antecessor seu, Clemente I, que conheceu pessoas que, <<ardendo em fogo de caridade, até tomaram sobre si cadeias alheias por não terem outro meio de resgatar seus irmãos>>.


Entre parênteses, é oportuno notar que na Idade Média foram fundadas duas famílias religiosas destinadas à redenção dos escravos:


A ordem dos Trinitários (Ordo SS. Trinitafis de Redempfione Captivorum), instituída em 1198 por São João da Mata (-'- 1213) para a libertação dos prisioneiros e dos escravos cristãos do domínio dos sarracenos;


A Ordem dos Mercedários (Ordo Beatae Virginis de Mercede Redemptionis Captivortim), fundada por S. Pedro Nolasco (+1256) e S. Raimundo de Penafort 1275); visava também à libertação dos escravos cristãos do cativeiro sarraceno.


Apesar destes antecedentes, o Papa Gregório XVI lamenta o fato de que muitos inescrupulosos haviam continuado a <<reduzir à escravidão os índios, os negros e outros desgraçados>> por <<torpe amor do ganho>>. São então mencionados Pontífices que se insurgiram contra a dureza de trato infligido aos escravos: Pio II, que a 7/10/1462 escreveu ao bispo de Rovigo, quando este ia viajar para a Guiné; Paulo III, que, aos 29/5/1537, se dirigiu ao Cardeal-arcebispo de Toledo; Urbano VIII, que, com a data de 22/4/1639, escreveu ao Coletor da Câmara Apostólica em Portugal; Bento XIV, Tue, aos 20/12/1741, enviou uma Bula aos bispos do Brasil e de outras terras da América; Pio VII (1800-1823), que, <<animado do mesmo espírito de religião e caridade que seus predecessores, empregou toda a sua influência para com os diferentes soberanos, a fim de quê o comércio da escravatura fosse inteiramente abolido entre os cristãos Gregório XVI aspirava a que <<semelhante infâmias fosse para sempre extirpada nos países católicos.


Eis os significativos termos com que se encerra a Bula:


Pelas passadas de nossos predecessores, admoestamos e conjura mos por Jesus Cristo todos os fiéis, de qualquer estado e condição que sejam, para que, daqui em diante, não continuem a oprimir tão injustamente os índios, negros ou outros quaisquer homens, privando-os de seus bens ou fazendo-os escravos, nem mesmo se atrevam a dar auxílio ou favor àqueles que tal tráfico exercitam, por meio do qual os negros, como se fossem animais bravios, e não homens, são reduzidos à escravidão de qualquer maneira que seja e, sem respeito para as leis da justiça e da humanidade, comprados, vendidos e condenados aos mais duros trabalhos, além do inconveniente de eternizar as guerras, e as discórdias nos países em que se faz o comércio da escravatura, em razão da esperança do ganho com que se animam os que se ocupam na apreensão dos negros. Tudo isto, portanto, Nós reprovamos, como altamente indigno do nome de cristão, em virtude da autoridade apostólica que Nos compete e, com essa mesma autoridade, proibimos que qualquer eclesiástico ou leigo, sob qualquer pretexto que seja, se atreva a favorecer ou proteger o tráfico da escravatura ou pregar e ensinar em público ou em particular, de qualquer maneira que seja, coisa alguma contra o que nestas nossas letras se acha determinado".


As enérgicas palavras do Pontífice dariam seus frutos poucos decênios mais tarde, como se sabe.


1.7. Leão XIII e a epístola <<In Pluírimis>> (5/05/1888)


Aos 5/5/1888 o Papa Leão XIII enviou aos bispos do Brasil uma epístola atinente à escravatura.


Diz, de início, estar ciente das medidas adotadas no Brasil em favor da libertação dos escravos - o que alimentava no Pontífice <<a gratíssima opinião de que os brasileiros queriam abolir e extirpar a imanidade da escravidão


A seguir, o Papa propõe um retrospecto da problemática:


"É profundamente deplorável a miséria da escravidão a que desde muitos séculos está sujeita uma parte não pequena da família humana".


Considera então episódio de Onésimo, o escravo fugitivo que São Paulo batizou e quis devolver ao patrão Filemon com uma carta de exortação a este; o relacionamento social inspirado pelo Cristianismo estava impregnado de profundos sentimentos humanitários, que aos poucos levariam a uma revisão da condição dos escravos:


"A Igreja não quis proceder com precipitação em procurar a emancipação e a libertação dos escravos, o que evidentemente não se podia fazer senão de maneira tumultuosa que redundaria em dano deles mesmos e em detrimento da sociedade".


"Os cuidados da Igreja no patrocínio dos escravos cresciam continuamente e, não perdendo nenhuma oportunidade, procurava conseguir prudentemente que lhes fosse dada a liberdade".


Entre os cristãos, lembra o Papa, introduziu-se o costume louvável. de dar <<a liberdade aos escravos por generosa manumissão>>. E recorda quanto fizeram os Papas em favor dos escravos:


S. Gregório Magno, <<que resgatou o maior número que lhe foi possível>>; Adriano I, o qual ensinou <<que os escravos podiam contrair livremente matrimônio, mesmo contra a vontade de seus senhores>>; Alexandre III, que <<em 1167 intimou terminantemente ao rei mouro de Valência que não fizesse escravo nenhum cristão>>; Inocêncio III, que <aprovou e confirmou a Ordem da Santíssima Trindade para a redenção dos escravos>> caídos em mãos dos sarracenos; Honório III e Gregório IX, que deram aprovação a instituição semelhante, a Ordem de Santa Maria das Mercês, que São Pedro Nolasco, tinha fundado com Regra severa, exigindo dos Religiosos que dela fizessem parte, se entregassem ao cativeiro em lugar dos cativos, se isto fosse necessário para os resgatar; Gregório IX, a exortar os fiéis que oferecessem seus servas a Deus e aos santos em expiação de suas culpas; Gregório Magno, a propor disposições de maior doçura nas leis civis, com total êxito, pois Carlos Magno as incorporou nos seus Capitulares e, depois, Graciano as adotou no seu Decreto.


Em suma, <<a Igreja defendeu sempre os escravos das violências e dos ultrajes dos senhores, aplicando para esse fim o rigor de suas penas>>. Desta maneira a Igreja conseguiu pôr termo à escravidão na Europa.


Frente à escravatura fora da Europa, principalmente a partir do século XVI nas terras da América, Leão XIII menciona que levantaram a voz em favor dos índios e dos negros os Papas Pio II, Leão X, Paulo III, Urbano VIII, Bento XIV, Pio VII, Gregório XVI. Em seguida, Leão XIII refere a sua atuação pessoal em prol dos miseráveis escravizados. E, por fim, volta-se para a situação no Brasil, louvando as iniciativas recentes destinadas a preparar a extinção da escravatura; ao que acrescenta:


"E agora, Veneráveis Irmãos, a vós queremos dirigir o Nosso pensamento e as Nossas Letras, para manifestar-vos e repartir convosco a grande alegria que experimentamos pelas decisões que nesse Império se adotaram, pertinentes à escravatura. Uma vez que foi estabelecido, por lei, que todos aqueles que se encontram ainda na condição de escravos, serão admitidos na classe e nos direitos dos homens livres, não só isto em si nos parece bom, fausto e salutar, mas achamos nesta realidade, confirmada e avalorada, a esperança de progressos consoladores para os interesses civis e religiosos".


Leão XIII teve a ventura de acompanhar a extinção da escravatura no Brasil ocorrida aos 13/5/1888 mediante a lei 3.353. A fim de comemorar enfaticamente tal evento, o Papa quis enviar à Princesa Isabel a Redentora a Rosa de Ouro, sinal da benevolência de Sua Santidade.


1.8. As Irmandades e a escravatura


Uma instituição importante do Brasil colonial foram as Irmandades ou Confrarias Religiosas, que certamente desempenharam papel de relevo no tocante à sorte dos escravos. 0 objetivo das Irmandades era congregar pessoas de fé em vista de uma vivência mais coerente do Cristianismo; na verdade, porém, as Confrarias exerceram o papel de consciência da igualdade de todos os homens entre si: afirmando os direitos dos escravos aos benefícios religiosos em pé de igualdade com os senhores, tornavam-se fator de educação e formação das mentalidades. Os escravos que se congregavam em Irmandades, sentiam-se seres humanos iguais aos seus patrões, certos de que gozavam diante de Deus das mesmas prerrogativas que estes tanto durante -esta vida como após a morte.


As Irmandades dos pretos se apresentavam, por vezes, tão bem organizadas quanto as dos brancos. Chegaram a construir suas igrejas e capelas próprias, para escapar à tutela dos brancos; esses templos serviam como lugares de mediação quando os brancos se desentendiam entre si. <<Assim, por exemplo, a Ordem Terceira de São Francisco, na Tijuca, preferiu instalar-se em um altar lateral da igreja do Rosário, enquanto construía sua sede. Eventualmente poderia ter tido algum altar na Sé ou em outra igreja de brancos, mas preferiu ficar sujeita, ao menos temporaria mente, a um grupo de pretos>> (Julita Scarano, Devoção e Escravidão, São Paulo, 1978, p. 33) 1. Comenta J. Scarano:


Conforme se vê, os Terceiros de São Francisco se submeteram ao julgamento de uma Mesa constituída de pretos, apesar de que sua confraria abrigava pessoas de categoria elevada: comerciantes ricos e altos dignitários" (lb. p. 34).


Como notam os historiadores, as Irmandades <<se tornaram o único meio que permitia aos negros, como grupo organizado, ,ombrear com os demais habitantes da colônia>> (ib., p. 6).


1.9. Arquidiocese de Mariana e esciravidão


Nos Anais da arquidiocese de Mariana (MG), onde era denso o número de escravos, destacam-se as vozes de dois prelados que se levantaram contra a escravatura.


1 A primeira é a de Dom Antõnio Ferreira Viçoso, que em 1840 escreveu sobre tal instituição. Retomando palavras de José Bonifácio, de Andrada, afirmava o então sacerdote, missionário lazarista:


1 A notícia, transmitida por J. Scarano, é baseada num texto do Livro de Eleição da Mesa da Irmandade de N.S. do Rosário dos Pretos, datado de 1742 a 1832.


"Eia, pois, legisladores do vasto Império do Brasil, basta de dormir; é tempo de acordar do sono amortecido em que há séculos jazemos. Não pode haver indústria segura e verdadeira, nem agricultura florescente e grande, com braços de escravos ... Mostra a experiência e a razão que * riqueza só reina aonde impera a liberdade e a justiça, e não onde mora * cativeiro e a corrupção".


0 pensamento de Dom Viçoso se exprimo ainda em uma carta dirigida em 1850 a um amigo. advogado que desejava dedicar-se à agricultura:


"Quanto à sua consulta se será bom largar a advocacia, à imitação de S. Ligório, e outros santos, e comprar Africanos para a agricultura, eu digo que não é lícita tal compra, porquanto, enquanto houver quem cá os compre, haverá quem os vá comprar (ou roubar à África), coisa tão oposta à humanidade. Minha razão repugna. Eu não os tenho, nem os quero.: , Com os Africanos, V.S. faria muito, é verdade, mas, além de atrair a ira de Deus com esta barbaridade, empatava grande capital; um ou dois que lhe morresse seria de muito prejuízo a seus interesses, e, sendo o compadre um dos legisladores, daria com tal compra escândalo a muitos".


2. 0 segundo pastor que importa citar, é Dom Antônio Maria Corrêa de Sã e Benevides, que escreveu em 1887 uma Pastoral sobre a escravatura; entre outras coisas, dizia:


"Falo-lhes em favor de grande número de nossos irmãos que ainda esperam o dia da liberdade, em favor dos grandes princípios plantados por Nosso Senhor Jesus Cristo, os quais o estado da escravidão impede que consigam seu cabal desenvolvimento e até contraria. Falo-lhes para * bem de tantos indivíduos, para promover a honra da pátria, a expansão * o progresso do Cristianismo, ambos interessados na pronta extinção do elemento escravo. Falo finalmente para uma obra que vem extinguir uma nódoa do Brasil, reformar -a moralidade pública e particular e promover com ela a salvação de muitas almas, tanto dos senhores, como dos escravos, que por causa da escravidão grandemente perigam".


0 prelado citava ainda as intervenções da Igreja em favor dos escravos nos Concílios regionais de Merida (Espanha) em 666; de Toledo, em 589, 656 e 675; de Macon, em 585; de Reims, em 625; de Chalons, em 650; de Armagli em 1177 e outros.


E concluía: <~Ajudem o movimento de libertação ... Tomem deveras a peito auxiliar a libertação dos cativos, não cessem de aconselhar e persuadir a todos para que a auxiliem na medida de suas forças>>.


E, para concretizar estes propósitos, Dom Benevides quis incentivar a fundação da <<Associação Marianense Redentora dos Cativos>>.


Poder-se-iam ainda citar depoimentos à? figuras emitentes da Igreja Católica que se pronunciaram contra a escravatura ou em favor de menos dura sorte para os escravos. Fizeram-no movidos por fé ardente, vivida dentro dos parâ


Os testemunhos até aqui aduzidos manifestam uma atitude da Igreja menos conhecida frente à instituição escravagista. Quem deseja ser justo, não pode deixar de levar em consideração tais depoimentos, que hão de ser lidos não dentro das categorias de pensamento da época contemporãnea (pois então poderiam parecer fracos), mas à luz do modo de pensar e viver da época de cada qual dos autores citados assim lidos, tais textos revelam o autêntico senso cristão que nunca deixou de animar a Igreja através dos séculos.


Na redação deste artigo muito nos valemos dos estudos publicados pelo emérito historiador e filósofo Cônego José Geraldo Vidigal de Carvalho no jornal "0 Arquidiocesano de Mariana, MG, aos 11/07, 25/07 1º /08, 15/08, 22/08, 291/08, 5/09, 12109, 19/09, 26/09, 3/10, 10 / 10.


A Ordem Beneditina e a Escravatura:


Diante da alegação de que a Ordem Beneditina possuía um criatório de escravos no Rio de Janeiro (ilha do Governador) no século passado, vai publicado um estudo de D. Mateus Rocha O.S.B., que, na base de sólida e minuciosa documentação, dissipa o mal-entendido.


Tendo em vista a alegação de que a Ordem de São Bento tinha um criatório de escravos no Rio de Janeiro (ilha do Governador) no século passado, a nossa revista publica um estudo de D. Mateus Rocha O.S.B., a quem a Redação de PR agradece a valiosa colaboração. 0 artigo há de ser lido em continuação do anterior (neste fascículo), em que tentamos expor a mentalidade da sociedade dos séculos XV-XIX, a influência do padroado, as justificativas e os protestos que o comércio de escravos suscitava entre os pensadores da época.


1. Criatório de escravos?


Em nossos dias, uma das críticas Iançadas contra a Igreja Católica em nosso país, no tocante à questão escravista, é a de que até mesmo algumas de suas Ordens Religiosas, por exemplo, "não só tinham escravos como também se dedicaram à reprodução de escravos".' As Ordens Religiosas em questão são a dos Beneditinos e a dos Carmelitas, ambas no Rio de Janeiro. Tais autores têm-se baseado sobretudo em Jacob Gorender -este, aliás, muito ponderado em suas afirmações, às quais dá caráter hipotético - e ainda em Manoela Carneiro da Cunha, que deixa de lado o tom cauteloso de Gorender e parte para uma afirmação categórica. Segundo estes dois autores, a Ordem de São Bento teria tido um criatório de escravos na Ilha do Governador, e a de Nossa Senhora do Carmo outro na sua fazenda de Macacu.


J. Gorender e M. Carneiro da Cunha se fundamentam, por sua vez, em Thomas Ewbank, um visitante inglês do século passado, residente nos Estados Unidos, que esteve por alguns meses no Rio de Janeiro em 1846, e publicou em 1856 um relato de sua viagem e observações em terras cariocas.


De inicio convém observar que as informações de ordem econômica e mesmo outras de Ewbank relativas ao Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro não merecem crédito, pois não correspondem aos fatos históricos. Escreve ele, em sua obra, a seguinte passagem (que traduzimos do original, p. 129): "Na Ilha do Governador, a maior da baía do Rio, possuem [os frades beneditinos] grande estabelecimento rural dirigido regularmente por numerosos frades. Numerosa geração!3 de meninos e meninas de cor é ali criada até à idade suficiente de serem enviados ao trabalho nas propriedades do interior"


Não era um grande estabelecimento o que os beneditinos mantinham na Ilha do Governador, mas uma modesta fazenda de gado, com algumas roças e uma horta. Nem era dirigido por numerosos frades, mas apenas por um deles, que ali residiu sozinho por vários anos, o Abade Titular de Santa Maria de Evora. Frei Luís de Santa Teodora França.


Na mesma propriedade funcionava também uma lavanderia em que se cuidava da roupa dos monges beneditinos residentes na cidade.


A turma de escravos compunha-se de 17 homens, 12 mulheres, das quais uma já velha, 17 meninos e 6 meninas. Os homens cuidavam dos trabalhos do campo, e as mulheres se ocupavam da lavanderia e demais trabalhos da casa.


Este número de apenas 11 mulheres, supostamente novas e fecundas, não pode configurar um criatório de escravos capaz de gerar escravos para abastecer mais oito fazendas e o Mosteiro, que, com os da Ilha do Governador, somavam então um total de 1. 157 escravos, assim distribuídos: Mosteiro: 108; Camorim: 66; Vargem Pequena: 88; Vargem Grande: 38; Condê (Iguaçu): 37; Outeiro (Iguaçu): 22; Olaria (Iguaçu): 47; Maricá: 51; Campos dos Goitacases: 655, além dos já referidos da llha.


Por este lado cai, portanto, a fantasia de um criatório de escravos do Mosteiro. Também a política de concessão de alforrias largamente praticada pelo Mosteiro desmente os que afirmam que os beneditinos incentivavam a procriação" e "mantinham criatório deliberado de escravos" (Gorender). Basta apenas referir que em uma única sessão de seu Conselho, no dia 31 de dezembro de 1858, o Mosteiro aprovou requerimento de 98 alforrias, das quais 7 foram concedidas gratuitamente. Das demais, 22 foram do sexo feminino, com idades que iam de 1 ano a 35 anos. E dentre estas, 7 tinham de 15 anos para cima. A pensar em criatório de escravos, de uma só vez o Mosteiro teria perdido 7 matrizes (mais da metade em relação às da Ilha do Governador) e mais 15 futuras.


A documentação manuscrita existente no arquivo do nosso Mosteiro não nos permite afirmar que os beneditinos do Rio de Janeiro tinham a preocupação sistemática com a reprodução vegetativa da escravaria"2 ou 3 se dedicaram à reprodução de escravos" . Se eles incentivavam os matrimônios legítimos, era em obediência às leis da Igreja e às determinações superiores dos Capítulos Gerais, que eram de obrigação para todos os Mosteiros do Brasil. Não se tratava de "uma preocupação sistemática" de nosso Mosteiro. Essas normas gerais tinham por finalidades santificar sacramentalmente as uniões e as famílias e promover a "moralidade cristã e a boa ordem nas fazendas, como se lê nas Atas dos Capítulos Gerais da Congregação Beneditina do Brasil.


Além do mais, convém lembrar o bom tratamento que os Mosteiros beneditinos do Brasil dispensavam a seus escravos, como no-lo testemunha Koster - e o que este autor diz a respeito dos beneditinos de Pernambuco, se aplica a todos os beneditinos do Brasil, pois o tratamento referido era fruto da orientação do órgão máximo da Congregação. Desse bom tratamento encontramos registros em nossa documentação manuscrita: os escravos, na doença, eram cuidados com o mesmo empenho de que eram objeto os monges: junta médica para os casos mais graves, cuidado especial aos doentes na chamada Enfermaria centralizada na Cidade, para onde eram trazidos os escravos doentes das fazendas próximas do Rio, quando precisavam de tratamento médico. Ali não faltavam os remédios prescritos, nem uma boa e variada dieta, em que estavam presentes (provavelmente em decorrência de prescrição médica) os seguintes itens: carne de galinha (na época reservada só aos doentes: monges ou escravos), de vaca (verde e seca), de porco, de carneiro, toucinho, lombo de porco, mocotó, arroz, feijão, peixe, pão, manteiga, araruta, açúcar grosso e refinado, ervas, vinagre, temperos, leite, roscas, biscoito, pão-de-ló., chocolate, chá mate, cará, couve, abóbora, "vinho generoso" do Porto etc.


Por certo não faltará algum historiador ou antropólogo moderno que veja neste tratamento um interesse econômico: a conservação e o aumento (reprodução) do plantei de escravos. E no tratamento consagrado aos monges?


2. Os beneditinos e a emancipação dos escravos:


Nestes tempos em que se tem fiscalizado o papel da Igreja em relação ao escravismo, conviria lembrar a atuação pioneira da Ordem beneditina no Brasil no movimento de libertação dos escravos, apontando as datas básicas:


1. Em 1780, a Junta Capitular da então Província do Brasil, celebrada em Portugal, declara "forras aquelas escravas que tiverem tido seis filhos atualmente vivos e de legitimo matrimônio." Infelizmente, no ano seguinte o Abade Geral da Congregação Beneditina de Portugal (da qual fazia parte o Brasil) anula essa decisão, sob o pretexto de que ela acarretaria "gravíssimos prejuízos... assim aos Mosteiros, como às mesmas escravas", porque as escravas alforriadas e os filhos nascidos depois da dita alforria ficariam sem o amparo dos 3 respectivos Mosteiros e estes privados de preciosa mão de obra cativa.


2. Em 1822, a pedido do Imperador Pedro I, concedeu o Mosteiro do Rio cartas de alforria gratuita a dez de seus escravos "para sentarem praça e... defenderem a Nação".


3. Em 1863, afinal, o Capitulo Geral da agora Congregação Beneditina do Brasil decreta que todas as escravas que tivessem tido ou viessem a ter seis filhos, mesmo que alguns já houvessem falecido, e estivessem legitimamente casadas na ocasião, teriam direito à alforria plena e gratuita.


4. Em 1866, o Capitulo Geral declara que, a partir de 3 de maio daquele ano, os filhos das escravas dos Mosteiros nasceriam livres, e os respectivos Mosteiros ficariam obrigados a sustentá-los, a proporcionar-lhes instrução primária, a ensinar-lhes uma "arte mecânica" e a dar-lhes futuramente preferência nos arrendamentos de suas terras.


5. Em 1867, o Mosteiro do Rio de Janeiro, por solicitação do Governo Imperial, concedeu alforria inteiramente gratuita a quinze dos 29 escravos ..que se ofereceram para Voluntários do Exercito", para a guerra do Paraguai, sendo os demais "julgados incapazes" (não pelo Mosteiro, mas pelo serviço competente do Exército).


6. Em 12.7.1869, resolve o mesmo Mosteiro conceder carta de liberdade gratuita a seus escravos que tivessem ou viessem posteriormente a alcançar a idade de 50 anos. Foi uma espécie de Lei dos Quinquagenários.


7. Por fim, em 29 de setembro de 1871, todos os Mosteiros beneditinos do Brasil decidem, pela voz de seus Abades, que, a partir daquela data, todos os seus escravos,5 num total de 4.000,6 entrando o Mosteiro do Rio com quase a metade, estavam livres e receberiam carta de alforria plenamente gratuita, o que foi feito já no mesmo ano, de modo que em 1872 já não havia um só escravo nos Mosteiros e em suas propriedades. Autores há, como Richard Conrad, 1 que acreditam haver o exemplo dos beneditinos influenciado também o movimento abolicionista em sua segunda fase.


Seria muito de desejar que aqueles que se comprazem em criticar e por vezes mesmo em denegrir a Igreja por sua posição em relação ao escravismo e seu alheamento à causa da Abolição, tomassem conhecimento do papel de muitos bispos nesta campanha, com suas cartas pastorais e seus ensinamentos, mas particularmente do que fez a Ordem Beneditina do Brasil, silenciosamente, mas de forma muito concreta e direta, na libertação dos escravos.


Dom Mateus Rocha OSB é monge sacerdote do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, formado em Teologia, antigo professor de Português, Latim e Grego, tradutor, pesquisador de História, Bibliotecário. Necrologista e Arquivista do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro e Arquivista-mor da Congregação Beneditina do Brasil.


Bibliografia:


1. GORENDER, Jacob, 0 Excravismo Colonial, 7ª edição, São Paulo, Editora Atica, p 349-350; CUNHA, Manuela Carneiro da, Negros, Estrangeiros.


2. Os Escravos Libertos e Volta àÁfrica, São Paulo, Brasiliense, 1985,1).46; Antropologiado Brasil, São Paulo, EDUSP/Brasiliense, p. 129-130. - 4ª edição) de GORENDER,


2 EWBANK, Thonias, Life in Brazil: or a Journal of a Visit to títe land of the Cacoa and Paim, Nova Iorque, 1856).


3) Livro dos Provimentos do Mosteiro de São Retiro do Rio de Janeiro: 1819 a 1865 (Códice 148 do AMR), fl. 174v.


4) Ata da Sessão do Conselho do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro de 31.12.1858 (Códice 1149 do AMR, fis. 13- 1 Sv).


5) Ata da Junta Geral da Província Beneditina do Brasil de 7.1.1780. em Códice 19 do Arquivo do Mosteiro Beneditino de São Paulo, 111 59v.


6) Carta do Abade Geral da Congregação Beneditina de Portugal, de 3.8.178 1, ao Provincial beneditino do Brasil (Doe 1599-1 do AMR).


7) Livro do Conselho do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro: 1760-1835 (Códice 1148 do AMR), fl. 73.


fonte: http://www.jassds.hpg.ig.com.br/IGREJA%20E%20ESCRAVIDAO.HTM

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